terça-feira, 27 de março de 2018

ENTENDAM A DIALÉCTICA!

Zillah Branco* | opinião

O PS, como todos na sociedade, viveu o processo desencadeado no 25 de Abril de 74 sofrendo contradições internas, pessoais e geracionais, que refletem a formação de esquerda ou de direita, dialécticamente contraditórias. Mário Soares aliou-se a dois representantes do imperialismo - Kissinger e Willy Brandt - que com financiamentos e trabalhos secretos conduziram o PS a negar a sua anterior aliança com a luta dos democratas portugueses. Combateu tenazmente as acções de Vasco Gonçalves na defesa das nacionalizações da banca e das empresas essenciais ao desenvolvimento nacional, no apoio à Reforma Agrária e à organização dos pequenos agricultores para fazerem face à cobiça das multinacionais que assumiam o comando da revolução industrial no campo expulsando os camponeses para as cidades ou o circuito da emigração. Colocou o PS como "social-democrata" contra a esquerda organizada nacional.

Com tal postura o PS, ao combater o entusiasmo libertador que abalava a população portuguesa, tornou-se responsável pela incultura política associada ao medo histórico contido na onda de anti-comunismo fossilizado que a direita (moderna e antiga) impôs com mentiras divulgadas e bombas assassinas dominando uma população que não tivera acesso à formação escolar e social em meio século de ditadura.

Vários dos seus ilustres camaradas abandonaram o PS que adotava a vocação da direita com um projecto liberal capitalista. O inimigo principal havia sido transferido do combate à ditadura fascista para a guerra fria imperialista contra a esquerda liderada pelo PCP. Deixando as acções terroristas para os partidos de direita - CDS e PPD - manteve-se perante o eleitorado como defensor da Revolução dos Cravos. E assim dominou o governo com uma política neo-liberal que partilhou com a direita - PSD atrelado ao CDS.

Aderiu à UE, sempre pela mão dos antigos mentores, vendendo a pátria por investimentos aplicados no visual do território a ser modernizado e no enriquecimento da banca e empresas privadas, e impedindo o desenvolvimento social que tocava directamente o povo português: impulso à pequena produção agrícola e artesanal, controle da produção empresarial para manter as leis trabalhistas e os benefícios necessários ao Estado Social que atende gratuitamente a população com serviços de saúde, formação escolar, assistência social aos idosos, invádos e desempregados, que a esquerda e muitos democratas sem partido defendiam.

Pintou de dourado um "Portugal de ricos" que oferece as suas qualidades naturais de paisagem e de uma antiga cultura camponesa aos turistas ricos. Deixou-se invadir por uma cultura capitalista importada que afogou o dinamismo natural do povo portugues e das forças produtivas existentes com tradição milenar específica. Adoptou o ingles como segunda lingua (subserviente ao imperialismo) e estilhaçou o idioma que serviu de base a povos da América, África e Ásia, na criação de linguas próprias enriquecidas pelos contactos históricos com várias etnias, além de constituir a expressão da riqueza literária de Portugal. Enfim, reduziu Portugal a uma peça do xadrez da UE, sem soberania para recusar, pelo menos, participar nas guerras invasoras do Oriente Médio e Norte da África, ou das repúblicas europeias de expressão socialista.

Mas a dialética não se apaga com um sopro, nem com a guerra fria. Os governos do PS foram de mal a pior até chegarem a Sócrates, formado pela juventude PSD e pela escola da média (especializada em projectar futuros membros do Clube de Bildenberg ou de governantes dóceis). Os desmandos foram tais, que contribuiram muito para a crise mundial do capital que escoa em maior volume para paraisos fiscais e formas de corrupção, retirando os lucros prometidos aos seus modestos depositantes e levando-os à miséria e muitas vezes à morte (como foi o caso do BES e tantos outros bancos internacionais).

Diante de tal cenário caótico, uma nova geração que leva à sério o título de "socialdemocrata" como um compromisso de honra com a população para criar um Estado Social controlado com base na equidade e justiça, abriu o Congresso do PS em 2013 exigindo uma auto-crítica.  É verdade que o jovem orador, apesar de bastante aplaudido, teve o seu nome retirado do site do Congresso e foi visivelmente censurado pela mesa dirigida por Maria Belém. Mas, a sua coragem teve eco e lançou uma ponte para evitar que o PS, ainda de Seguro e seus anquilosados próceres, sofresse o esvaziamento que Passos Coelho provocava no PSD. Sentiram a necessidade de limpar a expressão "socialista" de toda a carga de reacionarismo que conspurcara os seus princípios republicanos nas cedências vergonhosas à direita que serve ao imperialismo nas suas devastações planetárias.

Neste contexto as eleições conduzidas pela TV controlada pela direita e investimentos mal explicados repetiram o programa neo-liberal recomendado pela Troika. A esquerda, liderada pelo PCP, abriu uma porta ao PS - em fase de auto-critica - para que, assumindo compromissos com critérios sociais e não financeiros, para poder governar o país que exigia a correção dos muitos erros praticados em nome de uma falsa "austeridade" que apenas enriquecia o poder financeiro da UE e destruia o povo e a soberania da Nação.

O atual PS herdou um país enfraquecido pela continuada extinção das conquistas democráticas do 25 de Abril e a prática do neo-liberalismo imposto pela UE. O grande incêndio de 2017 demonstrou que há muito vem sendo desgovernado o campo para ceder à espoliação das terras e matas por empresas privadas com apoio multinacional. Para garantir proteção mínima o atual governo só vê (à luz do neo-capitalismo, e não da necessária auto-critica) a possibilidade de carregar os camponeses que restam para a periferia de cidades e deixar a terra para os grandes empresários que a cobiçam. Não se atreve a retomar o que a esquerda elaborou em 1974 para modernizar um campesinato com a sua força produtiva apoiada pelo Estado.

Mas, na queda de prestígio da velha direita diante de algum alívio nacional ao sacrifício da população (com a memória e a Constituição progressista de Abril) e às denúncias dos crimes incontroláveis do sector financeiro (devido ao que apelidaram "a geringonça" que aproximara o PS dos aspectos sociais exigidos) os grandes problemas que estão à vista de todos foram também reconhecidos pela TV. Porque? Agora o tema de interesse popular é apresentado pelos partidos de direita, que também recordam a costela "socialdemocrata" e põem a "boca no trombone" (com discursos que revelam o que a esquerda repete há décadas sem apoio mediático), com o conhecimento por dentro dos erros que ajudaram a cometer nos governos alternados há mais de 40 anos), que os direitos dos trabalhadores não são respeitados, os salários estāo congelados, a saúde e o ensino perdem investimentos que vão para as empresas privatizadas, os pequenoa agricultores vão sendo expulsos do campo, não há apoio social para acompanhar os idosos, as mães desempregadas ou sem marido perdem o direito de educarem seus filhos, enfim... não há Estado Social. Portugal volta a ser "um jardim a beira-mar plantado, com bela arquitectura e boa culinária, servida por pessoas risonhas e submissas", para o requinte dos turistas ricos! E o povo que construiu esta Nação emigra!

Para mais, o que é um problema em todos os países capitalistas, os defensores de um sistema honrado judicial vêm-se impossibilitados de limpar a sociedade dos sangue-sugas do sistema neo-liberal que é o motor da contra-democracia imposto pelo imperialismo global. Há uma crescente convergência com as permanentes críticas feitas mundialmente pela esquerda consequente.

De facto o PS, agora curvado à UE e seus aliados (com os quais concorre eleitoralmente), está "entre a cruz e a caldeirinha". Para usar uma expressão bem portuguesa: "temos pena". No entanto, podemos apontar o caminho dialéctico da saída: coragem para defender o socialismo real, como apontou a auto-crítica já proposta.

Estes problemas ocorrem em todo mundo capitalista em decorrência da crise sistémica. Os povos estão em luta contra as invasões, os golpes, as provocações de conflitos internos por grupos financiados pelo imperialismo, mas também dos abusos de poder e os roubos avassaladores dos recursos nacionais em prejuízo exclusivamente das condições de vida dos povos. A solução depende da capacidade de compreensão dos que prezam a democracia, a liberdade social, a solidariedade humana, a honra pessoal e a soberania da pátria, acima dos interesses mesquinhos de poder e riqueza.

Zillah Branco - *Cientista Social, consultora do Cebrapaz. Tem experiência de vida e trabalho no Chile, Portugal e Cabo Verde.

Sem comentários:

Mais lidas da semana