quinta-feira, 1 de março de 2018

Portugal | POLÍCIAS E LADRÕES


Bacelar de Vasconcelos | Jornal de Notícias | opinião

O relatório elaborado pela delegação do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Degradantes ou Desumanos que visitou Portugal em outubro de 2016 foi divulgado, a pedido do Governo, na passada terça-feira. Este órgão do Conselho da Europa avalia periodicamente a situação dos países signatários quanto ao respeito pelos direitos humanos, visando em particular a condição das pessoas privadas de liberdade: presos preventivamente ou em cumprimento de pena, jovens internados em centros educativos ou quaisquer suspeitos detidos por autoridades policiais. O confinamento torna as pessoas mais vulneráveis a toda a espécie de abusos, desde a tortura aos tratos desumanos e degradantes ou qualquer outra forma de violência gratuita. A apreciação global do Comité do Conselho da Europa é positiva e reconhece, em 2018, a importância das reformas levadas a cabo para dar satisfação às críticas apontadas pela missão anterior, em 2013. Contudo, o relatório diagnostica problemas estruturais que persistem na sociedade portuguesa e apresenta recomendações que merecem a mais séria ponderação, desde logo, por parte dos responsáveis pelos estabelecimentos prisionais e pelas polícias, mas que interpelam também os magistrados do Ministério Público, os juízes, os governantes e os deputados.

Lamentavelmente, Portugal insere-se no grupo de países da Europa Ocidental onde se verifica o maior número de casos de violência policial, afirma a delegação do Conselho da Europa. Entre as vítimas, predominam os estrangeiros e cidadãos nacionais de grupos minoritários, o que aponta inequivocamente para motivações preconceituosas de natureza racista e xenófoba. Por outro lado, a ausência de consequências criminais resultantes das queixas apresentadas, alimenta uma perceção de impunidade que favorece a complacência para com esses comportamentos. A deficiente informação estatística disponível não permite conclusões rigorosas quanto ao número de queixas comunicadas ao Ministério Público que foram objeto de procedimento judicial e mereceram, afinal, sentenças condenatórias. Mas parece evidente que nem todos os casos de violência policial tenham sido denunciados, que nem todas as queixas tenham sido comunicadas à Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e, por fim, que a morosidade da intervenção da IGAI e a falta de competências para requerer exames médicos forenses que possam comprovar as lesões alegadas, determinam inexoravelmente o insucesso dos procedimentos judiciais que apesar de tudo foram suscitados. Neste sentido, o relatório recomenda a autonomia da IGAI e o reforço das suas competências de investigação. Uma recomendação adicional insiste na necessidade de garantir, em articulação com a Ordem dos Advogados, o direito à presença de um advogado, desde o momento da detenção pela autoridade policial e não apenas quando o suspeito é levado perante um juiz.

No que diz respeito aos estabelecimentos prisionais, a chefe da delegação, Julia Kozma, manifestou a apreciação "muito positiva de que as reformas estão a ser levadas a sério". O relatório, porém, continua a manifestar apreensão relativamente à sobrelotação de algumas prisões, às condições de habitabilidade de outras e ao recurso excessivo a sanções disciplinares de confinamento celular (isolamento). A situação dos reclusos inimputáveis, carecidos de tratamento psiquiátrico, no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, ainda em 2016, é classificada como chocante. Também é deplorada a exiguidade de recursos do Mecanismo Nacional de Prevenção, sob a autoridade do Provedor de Justiça, e que está incumbido de visitar os estabelecimentos onde se encontram pessoas privadas da liberdade, incluindo os centros educativos para jovens, e fazer as recomendações que entender adequadas nomeadamente quanto ao respetivo enquadramento legal.

É pela dignidade reconhecida aos mais frágeis e vulneráveis - vítimas, suspeitos e condenados - que se mede a qualidade de uma democracia. Não é preocupação muito popular mas é aqui que se inscrevem as mais pesadas responsabilidades dos cidadãos e dos representantes que elegeram.

*Deputado e professor de direito constitucional

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