Crónica dum momento que passa!
Martinho Júnior | Luanda
1- Muitos dos que hoje atiram
pedras ao Presidente cessante José Eduardo dos Santos, foram-no aplaudindo ao
longo de dezenas de anos...
Ao longo dos últimos anos, por
outro lado, quando havia que o defender face aos que se propunham a um caminho
que desembocaria em mais uma “revolução colorida”, ou “primavera
árabe” ao sabor dos desígnios do império da hegemonia unipolar, poucos o
foram fazendo, apesar das relativas evidências das filosofias de Gene
Sharp “no terreno”!
Foram os tempos em que a moeda
neoliberal apresentava dum lado a face dos “revús” e do outro a
dos “novos-ricos” impantes de suas ciências de apropriação e “mercado”,
numa manipulação que ocupava todo o espaço sócio-político, impondo a falácia de
suas próprias contradições…
2- Eu e meus camaradas da
Segurança do Estado, fomos julgados e condenados em 1986 por causa dum "golpe
de estado sem efusão de sangue" que nunca existiu (até hoje
aguarda-se quem assuma a “chefia” desse surrealista acontecimento).
A única implicação dos oficiais
operativos julgados e condenados, era a de defender a independência e a
soberania da República Popular de Angola em todas as frentes que lhes foi
possível, em tempo de guerra e com a intensidade dos que professavam “cabeça
fria, mãos limpas e coração ardente” !
Naquela altura, alguém se
pronunciou contra uma decisão não só injusta, mas histórica, que reverteria em
profundas transformações no país, entre elas o fim do Partido do Trabalho, das
FAPLA e a introdução ao ciclo neoliberal no seguimento do Acordo de Bicesse,
que começaria em 1992 com a guerra dos diamantes de sangue e teria sequência na
terapia neoliberal que se inaugurou a 26 de Fevereiro de 2002?...
Se houve alguém, força alguma, ou
voz pública alguma teve, capaz de ao menos ir esclarecendo o povo angolano dos
factos históricos que iam ocorrendo, em catadupa, uns atrás dos outros, num
ambiente internacional em que a hegemonia devassava todas as transversalidades
humanas!
Angola venceu o "apartheid",
cumprindo com a orientação do Presidente António Agostinho Neto, de que “na
Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul está a continuação da nossa luta”, mas
começou a soçobrar em relação às implicações dos impactos neoliberais de que
hoje as pessoas ganham alguma consciência apesar do consumismo, todavia foi
mesmo assim que se alcançou uma paz que, para ser de justiça social, muita
cultura de inteligência se terá de incrementar e levar por diante com
mobilização humana, clarividência e capacidade!
"Dos fracos não reza a
história", segundo diz um velho ditado...
Todavia, em relação aos fortes,
há que garantir em consciência sua profunda identidade para com o seu povo,
para com a humanidade e para com um respeito à Mãe Terra que tarda em surgir
como um acto civilizacional imprescindível!
3- O fenómeno do aquecimento
global, o fim de cada vez mais espécies vegetais e animais, assim como a
degradação ambiental do planeta, hoje não são segredos para ninguém…
Todavia em Luanda continua-se a
proceder como se esse fenómeno agravado com a superpopulação intempestiva da
capital angolana provocada sobretudo pelas sucessivas guerras, (1/3 da
população de Angola, ao nível de mais de 8 milhões de habitantes), fosse
irrelevante, ou um fenómeno longínquo.
Há poucos dias o engenheiro
Resende de Oliveira referiu-se a um desastre arquitectónico, mas a cidade, em
sua enorme área cosmopolita, (sobre)vive já à beira dum desastre ambiental.
A “requalificação” da
capital sob os impactos do capitalismo neoliberal, tem de facto sido um
pretexto para se aprofundar o“apartheid social”: os endinheirados do país,
saídos das provetas desse “modelo” de capitalismo ávido de lucros
fáceis e especulativos, para “lavar” o seu malparado dinheiro, ou
tirar partido das envolvências com “parceiros internacionais” fautores
de desequilíbrios de toda a ordem (e desordem), vão investindo em património à
beira-mar, embalados pela calma ondulação propiciada pela Corrente Fria de
Benguela e pelas tão disputadas brisas oceânicas que sopram do sudoeste,
contribuindo para expulsar os pobres, muitos deles refugiados das guerras
passadas, dessas paradisíacas paragens…
Os pobres, calejados em
inusitadas migrações, vão para o interior da planície, cada vez mais longe do
litoral, instalando-se em recentes comunidades, mas em regiões cada vez mais
tórridas, entre o casco urbano de Luanda e o forno do Dondo.
“Requalificado” o Morro da
Fortaleza onde está o Museu Militar e a Bandeira Monumento, com a instalação
dum Shopping que caracteriza o poder e a insensibilidade dum “umbigo grande” de
última hora, é a vez de demolirem o edifício fronteiro conhecido por “Treme-Treme”,
que no entender de muitos, não tem oportunidade para reabilitação, por
que “estraga a imagem” do local.
Outros dizem apressadamente:
o “Treme-treme” está superlotado e em risco de desabar… como se fosse
o único em Luanda nessas condições (os outros “salvam-se” por que
estão fora de áreas sujeitas a intensas cobiças).
Depois, sabem, está superlotado
de indigentes e isso é uma afectação inconcebível para uma Marginal “espelho” do
Dubai.
Demolindo-o, muito provavelmente
erguer-se-á mais outra torre de vidro, ou o seu esqueleto (a avidez não chega
para tudo e para muitos nem sequer acabou por dar efectivamente lucro, pois os
fluxos de dinheiro acabaram), como a que está mesmo ao lado coroando a Marginal
4 de fevereiro, ainda por habitar.
Na baixa haverá mais espaço para
os ratos, por que não há humanos que tenham finanças suficientes para alugar
apartamentos em tais monstros de cimento e vidro, nem para pagar o exorbitante
consumo de energia a que obrigam as suas estruturas, típicas desse anunciado
Dubai.
Os desalojados em “requalificação” irão
para o Zango 0, ou para o quilómetro 44, onde uma cidade sem parques nem zonas
verdes, se espalha sob o intenso calor da planície que vai até ao Dondo, 200 km
para o interior.
Decerto que muitos deles irão
engrossar amiúde os fluxos humanos que hoje acorrem palúdicos e febris aos
hospitais e clínicas, pois a prevenção em relação aos fenómenos do clima, ou
não existe, ou é débil, desembocando num desastre com consequências que não se
conseguem atenuar.
4- À situação propícia ao
desastre ambiental, em resultado duma “requalificação” que nesses
termos é um decifrável “apartheid social”, o capitalismo neoliberal trouxe
a edificação sem precedentes de condomínios.
Esses condomínios, muitos deles
de altos muros, levam os “felizes contemplados”, os novos condes e
condessas da “ocasião que faz o ladrão”, a abstraírem-se do resto do casco
urbano, como se estivessem embarcadiços, a navegar de ilha em ilha, fugindo à
perversidade do calor e da pobreza circundante “como o diabo foge da cruz”!
Muitos desses condomínios foram
sendo instalados também à beira-mar, a sul de Luanda, resultando de
desalojamentos apropriados, disputando a panorâmica, o marulhar das águas, ou
as brisas do sudoeste, algo que afinal também se compra e tem o seu elevado
preço… em Luanda já nem o ar que se respira é grátis!
Foi com eles que começou o “apartheid
social” e se tem propiciado aos “novos-ricos” a sua soberba e a
sua arrogância para com o resto da sociedade e para com o povo (uma palavra que
se foi tornando abolida do vocabulário socio-político angolano).
Agora as justificações vão
servindo para tudo e o que é facto é que com “requalificações” do
género, privilegiando uns poucos e sacrificando a esmagadora maioria, “de
boas intenções está este inferno cheio”!
É este o “dia-a-dia na
cidade” e, alienada pelos desencontrados espelhos em que tão mal se
reflete, a esmagadora maioria continua incapaz de, num quadro dum projecto
nacional condigno, partir para uma sustentável qualidade de vida que todo o
povo angolano merece!
De “apartheid social” em “apartheid
social”, Luanda “treme-treme” sem soluções, esgotada, palúdica,
dobrada pelos rins sob a afectação da febre tifóide, por vezes afectada de
agudas diarreias, ou de doenças pulmonares sazonais, sem dúvida e sem remédio à
beira dum desastre ambiental!
Martinho Júnior - Luanda, 29 de
Abril de 2018
Foto do edifício “Treme-treme” na
contagem acelerada para o seu próximo fim, proverbial enquanto mensagem
bíblica: “foram muitos os chamados, mas são cada vez menos os escolhidos”…
Sem comentários:
Enviar um comentário