terça-feira, 1 de maio de 2018

BRASIL | Tribuna Gaúcha: combate e resistência

   
De acordo com o pesquisador e jornalista João Batista Marçal (1941-2018), em sua obra “A Imprensa Operária do Rio Grande do Sul” (2004), a “Tribuna Gaúcha” foi o jornal mais corajoso e combativo da esquerda gaúcha, despertando perseguição e ira das oposições políticas da época.

Em 17 de fevereiro de 1946, a “Tribuna Gaúcha” começou a circular, em Porto Alegre, preenchendo uma lacuna importante, após a revista “Libertação” (1945), redigida por intelectuais comunistas, ter encerrada a sua circulação. Esta revista contou com nomes importantes, como Décio Freitas (1922-2004), Dyonélio Machado (1895-1985), Antônio Pinheiro Machado Neto (1924-1998), entre outros.

Órgão de massa do PCB / RS (Partido Comunista Brasileiro), o jornal foi criado para ser um diário, porém devido a tantas dificuldades, em alguns períodos, alternava a sua periodicidade. Durante uns dez anos, seus repórteres, redatores e diretores vivenciaram o vaivém das entradas e saídas das portas das prisões da capital. O título do jornal se alternava entre “Tribuna Gaúcha” ou apenas “Tribuna”, tratando-se, evidente, de um artifício para driblar os censores e a polícia devido às atividades clandestinas do Partido.

Na realidade, a criação desse periódico foi resultado de uma articulação comandada pela cúpula nacional do PCB, objetivando criar uma rede de jornais e revistas que atingisse o maior público possível no território brasileiro. Com esse intuito, contou com a colaboração de intelectuais das mais diversas áreas.

As várias sedes do jornal

A primeira redação da Tribuna Gaúcha se localizava na Rua General Câmara (antiga Rua da Ladeira), quase esquina com a Andrade Neves. No porão do prédio, ficavam as oficinas gráficas.  Em maio de 1952, a sede do jornal foi transferida para a Rua Vigário José Inácio, 215, esquina com a Rua Voluntários da Pátria (próximo das Ferragens Gerhard). Sob a direção de Ophir Pinheiro, ocorreu outra mudança de endereço: a sede se transferiu para a Av. Borges de Medeiros, à esquerda, perto da Rua da Praia (Rua dos Andradas).
  
   O jornal Tribuna Gaúcha - porta-voz do PCB – circulou até a metade de 1958, praticamente, 12 anos após a sua fundação. Outros jornais, numa espécie de rede e com o mesmo perfil ideológico, circularam noutros estados, a exemplo do Rio de Janeiro onde circulou a Tribuna Popular.

Memória  
   
O Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, localizado, na Rua dos Andradas, 959, em Porto Alegre, possui alguns números que foram doados pelo historiador e funcionário público concursado do Ministério Público Estadual Raul Carrion. Esta instituição, atualmente, está sob a direção da jornalista Elizabeth Corbetta.
   
Censura,  perseguição e assassinato
   
Na Rua da Ladeira (atual General Câmara), visando evitar a circulação da “Tribuna Gaúcha”, ocorriam prisões, espancamentos, tumultos e até derramamento de sangue em momentos críticos de repressão. A ordem poderia partir do Tribunal da Justiça, da Guarda Civil ou até mesmo de um delegado enfurecido com o conteúdo do jornal. Com a redação sempre vigiada, a cada edição se estabelecia um confronto. As portas do prédio permaneciam fechadas e, no seu interior, o jornal era rodado, enquanto os militantes pensavam numa forma de burlar a vigilância policial e distribui-lo em locais estratégicos e previamente determinados.

  Entre outras formas, para tentar romper com o cerco, a mais comum era escolher uma pessoa na redação que, ao sair da sede, iniciava um discurso contra o governo, atraindo a atenção dos repressores e desviando–os do seu foco: a redação.  Caso houvesse êxito estratégico, alguns militantes se deslocavam, de forma rápida, com pacotes de jornais, para serem distribuídos, na Rua Praia, em pontos nos quais o jornal já estava sendo esperado. Noutras situações, apesar das perseguições constantes, a “Tribuna Gaúcha” renascia, como num passe de mágica, a exemplo do que ocorreu quando da sua depredação, em 24 de agosto de 1954, data do suicídio do Presidente Getúlio Vargas.  

João Batista Marçal nos narra, em seu livro já citado, dois episódios que eram constantes em relação à “Tribuna Gaúcha”. Um deles ocorreu com o militante Laci Osório (1911-1999), que, após ter discursado, visando driblar o cerco à redação do jornal, foi preso, e o delegado lhe encostou uma arma no peito. É o próprio Laci que nos conta esta historia em seu livro “Questão de Vida – Memória em Tempo de Porto Alegre” (Ed. Movimento, 1981): “Ele tremia de pistola na mão. Tive medo do medo do beleguim.” Outro fato foi vivido pelo líder comunista, Ulysses Villar (1906-1994), que assim declarou: “Desci a ladeira abaixo de pau, mas trouxe para Uruguaiana os jornais que fui buscar”.
   
A presença feminina
   
 Fato curioso se dava em relação às mulheres militantes, quando estas entravam em ação como o último recurso para romper com a vigilância em frente ao prédio da redação. Após adentrarem no local, em dupla, saiam calmamente.  Até então seria um fato comum, caso não fossem os quilos a mais que poderiam simular uma gravidez de gêmeos. Na realidade, tratava-se de jornais enrolados na cintura ou nas pernas dessas mulheres, dependendo do vestuário. Geralmente, não despertavam suspeitas e desciam a ladeira, conversando, com descontração, sobre futilidades do cotidiano.

Entre nomes de mulheres importantes, ligadas à “Tribuna Gaúcha”, encontram-se: Julieta Batistioli (1907-1996) - “A Pastorinha” – que foi a primeira vereadora comunista do Rio Grande do Sul; a poetisa, professora e pianista Lila Ripoll (1905-1967) e a jornalista Edith Hervé de Souza (1916-1998).  Em se tratando de uma extensa lista, podemos citar, ainda, Ofélia do Amaral Botelho, a poetisa Beatriz Bandeira e a jornalista Eunídia dos Santos (1920-1995). Esta última, nascida, em Porto Alegre, é considerada a primeira mulher a dirigir um jornal comunista no Brasil, tendo exercido um papel fundamental em sua sustentação financeira.
   
O ícone Eloy Martins

Uma figura, que passou a fazer parte do imaginário citadino, foi o líder metalúrgico Eloy Martins (1911-2005), natural de Laguna (SC).  Eleito, em 1947, para a Câmara Vereadores de Porto Alegre, destacou-se pela coragem como enfrentou os adversários políticos e a repressão da época, Inúmeros foram os confrontos nos quais foi agredido e preso. A foto que registrou Eloy Martins, vendendo a “Tribuna Gaúcha”, na Rua da Praia, tornou-se um ícone da esquerda gaúcha.

Sofrimento e resistência

Na redação do jornal, gráficos e jornalistas permaneciam em vigília constante diante das ameaças de destruição do parque gráfico. A redação se assemelhava a um quartel onde redatores, editores, tipógrafos e diretores formavam um exército de homens e mulheres atentos e vigilantes em relação aos adversários, que não davam trégua entre uma edição e outra do demonizado periódico.
  
Considerado um dos melhores redatores da Tribuna Gaúcha, Carlos Alberto Brenner não suportou a pressão e não quis mais viver. Advogado, natural de Santa Maria, ele fez parte do grupo oriundo da revista “Libertação” (1945). Outro caso de perseguição ocorreu com o poeta, artista plástico, jornalista e revolucionário Fernando Melo (1922-1949). Assassinado, em Caxias do Sul, pela polícia local, este jornalista, além de participar da Tribuna Gaúcha, era um dos editores do semanário caxiense “Voz do Povo”. Já o excelente jornalista e editor da Tribuna Gaúcha, José Gonçalves Thomaz (1927-1956), natural de Uruguaiana, foi vitimado por um câncer, causado, provavelmente, por uma excessiva carga emocional. Outro nome importante, nascido, em 1926, na cidade de Uruguaiana, foi José Nelson Gonzales. Repórter e editor da “Tribuna Gaúcha”, ele foi preso em várias ocasiões.
    
Os intelectuais

O jornal “Tribuna Gaúcha” contou, além dos já citados, com outros nomes ilustres, como Dyonélio Machado (1895-1985) Cyro Martins (1908-1990), Júlio Teixeira (1910-1986), Álvaro Moreira (1888-1964), Dalcídio Jurandir (1909-1979), Aparício Torelly / Barão de Itararé (1895-1971), Décio Freitas (1922-2004), João Aveline (1919-2005), entre outros.

Diante da ausência do propagado “ouro de Moscou”, O MAIP (Movimento de Ajuda à Imprensa Popular) era o órgão que se encarregava de arrecadar os minguados “tostões”, com os quais a incansável Eunídia dos Santos (1920-1995) conseguia garantir a circulação do jornal.

O Guerrilheiro Negro

Ao encerrar esta verdadeira odisséia da “Tribuna Gaúcha”, não poderia deixar de registrar o nome do jornalista Edmur Péricles de Camargo (1914-1971?). Conhecido como o Gauchão, seu caso é investigado pela Comissão da Verdade, que apura mortes e desaparecimentos durante o período da ditatura civil-militar (1964-1985), De acordo com Marçal (2004), considerado o “guerrilheiro negro”, a sua trajetória faz por merecer que seja escrita uma biografia aprofundada. Edmur foi preso pelos órgãos da repressão na Argentina, em escala de vôo, em Buenos Aires, e na madrugada do dia seguinte foi posto num avião da FAB (Força Aérea Brasileira) que o trouxe até o Brasil, tendo desaparecido, desde então, nas mãos dos agentes públicos que serviam ao regime ditatorial do Estado brasileiro.

O Jornal a “Tribuna Gaúcha” se constitui num ícone na história da imprensa operária no Rio Grande do Sul. Em suas páginas, encontra-se a marca indelével de grandes nomes do nosso jornalismo, que assumiam em suas matérias, com coragem e destemor, as suas posições político-ideológicas.

*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom

Bibliografia
MARÇAL, João Batista; MARTINS, Mariângela. Dicionário Ilustrado da Esquerda Gaúcha. Porto Alegre: Libretos, 2008.
MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972). Porto Alegre. 2004.
--------------------------------- Rio Grande do Sul século XX: Organizações operárias: Uma história feita de sangue e intolerância. Porto Alegre: Gráfica Relâmpago, 2011.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.

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