Miguel Guedes | Jornal de Notícias |
opinião
Nuno Melo, ironicamente,
imaginou-se no Pavilhão da Fantasia da Disney-Paris enquanto assistia ao
Congresso do PS mas o jogo do faz-de-conta rapidamente migrou para a Assembleia
da República-Lisboa. Por alucinação democrática, por cinco votos de consciência,
continuaremos país a viver no reino da Fantasia, fingindo que nada existe, que
a realidade não é o que é e que não acontece no dia-a-dia dos hospitais, que a
vontade inabalável que resulta do sofrimento atroz é liberdade e escolha
individual que não deve ser respeitada.
Para os deputados que chumbaram
os quatro projectos de lei sobre a despenalização da eutanásia, sobra uma
informação: a realidade impõe-se, os factos são mais pesados do que os grãos de
areia que preferem espalhar no chão. Porque a vida compreende a morte, a
liberdade de poder decidir é agora projecto adiado que não tem como não fazer
caminho na próxima legislatura. Num país que tantas vezes prefere atrasar-se
uma década quando legisla sobre a realidade (lembremos os casos da despenalização
do aborto ou do consumo de drogas), trazer a questão para o debate político foi
a maior vitória táctica de quem se bateu pela despenalização.
Com algumas excepções, o debate
que antecedeu a votação foi elevado e digno. Assistimos, porém, à teoria do
"alarme social" do inefável Abel Matos Santos que receava que as
pessoas de idade pudessem entrar doentes num hospital dizendo, e cito, "eu
não quero morrer, será que me vão eutanasiar?". Esta e outras formas
espúrias de manipular a realidade, criando cinicamente a confusão sobre a
possibilidade de um Estado-matador que espreita às portas da doença, são
insultuosas e difíceis de classificar. Viver a vida em modo de voo é uma opção
individual mas convém não enganar as pessoas em matéria de consciência. As palavras
de Laurinda Alves, escritas em modo "observador", são tão graves e
manipuladoras como alguns cartazes onde se lia "Por favor não matem os
velhinhos" ou "Eutanásia? Não mates, cuida!". Este tipo de
contra-informação faz parte da miséria humana mas, ainda assim, há limites.
Agora espera-se, de todas as trincheiras, algum pudor e silêncio.
Sobram algumas notas, assistidas.
Recusar debater uma questão porque não consta de um programa eleitoral é
declinar o poder legislativo da Assembleia da República. Evitar mais um veto
presidencial não é necessariamente fazer um favor a Marcelo. Criar obstáculos
ao um debate porque o debate não foi até aí suficiente, é hipotecar uma boa
decisão. Ao contrário dos seus camaradas espanhóis em 1998, os primeiros a
apresentar um projecto de lei na Câmara dos Deputados para despenalizar a morte
assistida, ver o PCP institucionalizar-se à Direita é doloroso.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
*Músico e jurista
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