quinta-feira, 31 de maio de 2018

Portugal | Assembleia da Fantasia


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Nuno Melo, ironicamente, imaginou-se no Pavilhão da Fantasia da Disney-Paris enquanto assistia ao Congresso do PS mas o jogo do faz-de-conta rapidamente migrou para a Assembleia da República-Lisboa. Por alucinação democrática, por cinco votos de consciência, continuaremos país a viver no reino da Fantasia, fingindo que nada existe, que a realidade não é o que é e que não acontece no dia-a-dia dos hospitais, que a vontade inabalável que resulta do sofrimento atroz é liberdade e escolha individual que não deve ser respeitada.

Para os deputados que chumbaram os quatro projectos de lei sobre a despenalização da eutanásia, sobra uma informação: a realidade impõe-se, os factos são mais pesados do que os grãos de areia que preferem espalhar no chão. Porque a vida compreende a morte, a liberdade de poder decidir é agora projecto adiado que não tem como não fazer caminho na próxima legislatura. Num país que tantas vezes prefere atrasar-se uma década quando legisla sobre a realidade (lembremos os casos da despenalização do aborto ou do consumo de drogas), trazer a questão para o debate político foi a maior vitória táctica de quem se bateu pela despenalização.

Com algumas excepções, o debate que antecedeu a votação foi elevado e digno. Assistimos, porém, à teoria do "alarme social" do inefável Abel Matos Santos que receava que as pessoas de idade pudessem entrar doentes num hospital dizendo, e cito, "eu não quero morrer, será que me vão eutanasiar?". Esta e outras formas espúrias de manipular a realidade, criando cinicamente a confusão sobre a possibilidade de um Estado-matador que espreita às portas da doença, são insultuosas e difíceis de classificar. Viver a vida em modo de voo é uma opção individual mas convém não enganar as pessoas em matéria de consciência. As palavras de Laurinda Alves, escritas em modo "observador", são tão graves e manipuladoras como alguns cartazes onde se lia "Por favor não matem os velhinhos" ou "Eutanásia? Não mates, cuida!". Este tipo de contra-informação faz parte da miséria humana mas, ainda assim, há limites. Agora espera-se, de todas as trincheiras, algum pudor e silêncio.

Sobram algumas notas, assistidas. Recusar debater uma questão porque não consta de um programa eleitoral é declinar o poder legislativo da Assembleia da República. Evitar mais um veto presidencial não é necessariamente fazer um favor a Marcelo. Criar obstáculos ao um debate porque o debate não foi até aí suficiente, é hipotecar uma boa decisão. Ao contrário dos seus camaradas espanhóis em 1998, os primeiros a apresentar um projecto de lei na Câmara dos Deputados para despenalizar a morte assistida, ver o PCP institucionalizar-se à Direita é doloroso.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista

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