quarta-feira, 16 de maio de 2018

TOURADAS | Quando a herança é um massacre


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Continuamos a assistir a um Portugal marialva que não se rende. Encontramo-lo à volta da arena em pose estéril e rija, a toque de corneta a que atribuem significado olímpico, ensaiando salamaleques à conta da história e da tradição dos avós de linhagem. Lamentavelmente, isto não é do povo nem das elites. As touradas são um espectáculo abominável que foi sucessivamente extinto em todos os países do Mundo à excepção dos oito países que restam. Portugal é um deles.

"E diz o inteligente que acabaram as canções". O projecto de lei a dar entrada na Assembleia da República, pela mão do PAN, para acabar com as touradas em Portugal é um ajuste de contas com uma história que se faz incompreensivelmente tarde. Talvez por falta de coragem, os "espectáculos tauromáquicos" que tão bem serviram para Tordo e Ary ilustrar a ditadura no ocaso continuaram a resistir às alterações legislativas que, ao longo do tempo, foram contrapondo a civilização à barbárie. Fazer das touradas uma actividade para maiores de 18 não chega, a não ser que alguém me convença de que alguém que acabe de chegar à maioridade fica menos bem servido com a "Laranja mecânica" de Kubrick pela brutalidade comparada. A cultura de violência numa arena, exibida como mestria de execução com bandarilhas, não tem idade e saqueia a destempo a herança cultural de um povo.

A herança cultural do entretenimento atira o que já passou para os documentários. Ou para os filmes de época. Apesar da televisão pública ter insistido em transmitir corridas de touros durante anos a fio, elas já não fazem obra de actualidade. Em Portugal, o número de espectáculos tauromáquicos tem caído a pique (181 em 2017), enquadrando-se regionalmente em Albufeira (26) e Lisboa (13). Em 50% das 27 praças de touros existentes, arrenda-se o espaço a fantasmas na maioria dos dias que sobram entre a realização de uma ou duas corridas anuais. Desde 2010, as liturgias com touros sofreram um abalo de 53% do seu público de fiéis. Imperativo civilizacional: parar de chamar herança cultural a uma actividade que se eleva pela imagética da bestialidade e não põe fim à sua vida antes da morte que se anuncia. Parte da herança cultural de um povo, aquela que noticia e informa futuro, é a de saber pôr um ponto final ao que já não encontra descendentes.

Isto dos direitos das pessoas também dá muito trabalho. Coloca-se muita ênfase no sofrimento animal. Que existe, indigno e evidente. Mas ultrapassa a compreensão dos mortais que continuemos a assistir a financiamento público para uma actividade torcionária que se implica com crianças, jovens e adultos para exaltar uma parte do pior que têm em si em nome do brilho de uma espólio de brutalidade decadente. Que se extinga.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

* Músico e jurista

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