A salvação do peemedebista
dependeu da investida do ministro do Trabalho contra o combate ao trabalho
análogo ao da escravidão
Miguel Martins e Rodrigo Martins |
Carta Capital*
Rejeitado por 77% dos brasileiros
e aprovado por míseros 3%, segundo a última rodada do Ibope, o presidente mais impopular desde o fim da
ditadura pagou caro para salvar o próprio pescoço, embora não tenha colocado a
mão no bolso para pagar a fatura.
Apenas nos últimos dois meses,
Michel Temer liberou quase 1 bilhão de reais em emendas parlamentares para
sepultar na Câmara a segunda denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da
República contra o peemedebista, por obstrução da Justiça e formação de
quadrilha.
Além de leiloar cargos no segundo
escalão, o governo ampliou ainda as concessões a empresas no programa de
refinanciamento de dívidas com a União, abrindo mão de 2,4 bilhões de reais. A
conta também inclui as mudanças que inviabilizam o combate ao trabalho análogo
à escravidão, antiga reivindicação da bancada ruralista. “Não troco votos por escravos”,
diziam os solitários cartazes empunhados por deputados da oposição.
Diante da recusa do governo em rever a portaria
que altera os conceitos que definem o trabalho escravo no Brasil, o Conselho
Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) decidiu, na quarta-feira 25, pela primeira
vez em sua história, instaurar uma investigação contra o ministro do Trabalho,
Ronaldo Nogueira, por prática atentatória à dignidade humana.
Suspensa por decisão liminar da
ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, a
portaria reduz a caracterização de uma relação escravagista às situações em que
há restrição à liberdade dos trabalhadores. Afasta-se, assim, a possibilidade
de enquadrar os empregadores que os submetem a jornadas exaustivas e a
condições degradantes, o que diminui o alcance das políticas de prevenção,
repressão e reparação às vítimas.
O artigo 149 do Código Penal
prevê de 2 a 8 anos de reclusão para quem reduzir alguém à condição análoga
àquela do escravo, “quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo,
por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador
ou preposto”.
A portaria do Ministério do
Trabalho, de natureza infralegal, usurpa a prerrogativa do Congresso Nacional
de mudar o texto, observa Ângelo Fabiano Farias da Costa, presidente da
Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (artigo à pág. 30). Não
bastasse, o novo regramento transfere da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho
Escravo (Detrae) para o gabinete do ministro a atribuição de publicar
a chamada “Lista Suja”, cadastro de empregadores flagrados na prática do crime.
Em nota, a Organização
Internacional do Trabalho disse que a portaria ameaça “interromper uma
trajetória de sucesso que tornou o Brasil uma referência e um modelo de
liderança mundial no combate ao trabalho escravo”.
Para Antonio Carlos de Melo,
coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT no Brasil, a
interpretação restritiva do crime fragiliza ainda mais os trabalhadores em
situação de extrema pobreza, sobretudo em um contexto de elevado desemprego.
“Quando bate o desespero, ele
pode aceitar qualquer condição imposta para ter alguma fonte de renda. Os
exploradores de mão de obra escrava desejam lucro fácil e rápido, não hesitam
em reduzir custos em detrimento da dignidade humana.” Desde 1995, mais de 52
mil cidadãos foram libertados de situações de trabalho análogo à escravidão.
“Cerca de 80% dos casos dizem
respeito à submissão de trabalhadores a jornadas extenuantes e condições
degradantes de trabalho”, afirma Adílson Carvalho, coordenador-geral da Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
“Já tivemos casos de pessoas que
morreram de exaustão no corte de cana-de-açúcar, após trabalharem muitas horas
sem descanso debaixo do sol intenso”, afirma. “Da mesma forma, vemos muitos casos
de empregados obrigados a dormir ao lado de animais, dividindo o mesmo abrigo,
a mesma água não tratada, sem acesso a banheiro, alimentando-se com comida
contaminada.”
Desde que tomou posse, após o
afastamento de Dilma Rousseff pela Câmara, Nogueira tem
imposto obstáculos para a divulgação da Lista Suja, além de promover cortes
orçamentários que levaram à interrupção das atividades de fiscalização, critica
o advogado Darci Frigo, presidente do CNDH. “Essa portaria é apenas o último
ato de uma política de desmonte da área dedicada ao combate desse crime”,
lamenta.
Nomeado em 12 de maio de 2016, no
mesmo dia que Temer assumiu interinamente a Presidência, Nogueira tentou, desde
cedo, intervir no trabalho da Detrae, chefiada por André Roston, remanescente
da administração anterior.
Nas semanas seguintes à deposição
da petista, o ministro passou a se reunir com a equipe da divisão com o
objetivo de impedir a divulgação da Lista Suja. Diversos organismos ligados à
luta contra a prática, entre eles o Ministério Público do Trabalho e
representantes da Conatrae, acionaram a Justiça em defesa da divulgação.
Em dezembro de 2016, o juiz
Rubens Curado Silveira, da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, ordenou, em
decisão liminar, que o ministro voltasse a publicar a lista. O governo tentou
recorrer da decisão no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região e no
Tribunal Superior do Trabalho, mas não logrou êxito.
Diante do revés, o governo
divulgou, em março, uma lista com 85 empregadores escravagistas. Duas horas
depois da publicação no site do Ministério do Trabalho, 17 nomes foram
retirados, sob alegação de que houve erro por parte da instituição.
A justificativa era a de que os
nomes retirados ainda não tinham esgotado todos os seus recursos na Justiça
contra as acusações. Entre as empresas que foram retiradas da relação está a
Citrosuco, produtora de suco de laranja. À CartaCapital interlocutores
relataram uma reunião entre representantes da empresa e do ministro Nogueira nos dias que
antecederam a divulgação da Lista Suja.
A pressão do agronegócio,
atividade campeã em acusações de trabalho escravo, ocorria de forma mais direta
entre deputados da bancada ruralista e Nogueira. Em entrevista à GloboNews, o
ministro da Agricultura, Blairo Maggi, admitiu que a portaria entrou nas
negociações para preservar o mandato de Temer.
“Temos um momento confuso e a
classe produtora resolveu levar essa reivindicação ao presidente. Ele atendeu,
e nós só temos a comemorar.” O agronegócio não era, porém, o único setor
interessado. Os corredores do Ministério do Trabalho costumavam ser
frequentados por representantes da construção civil e do setor têxtil, também
alvos relevantes das denúncias.
Em agosto, Roston participou de
uma audiência pública no Senado, em que apresentou dados oficiais sobre a falta
de recursos para apurar as denúncias de trabalho escravo. Originalmente,
Nogueira foi convidado pelos senadores para a audiência, mas a tarefa recaiu
sobre o chefe da divisão de fiscalização.
Para Carlos Fernando da Silva Filho, presidente do
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, o servidor, exonerado do
cargo no início de outubro, agiu corretamente ao expor a asfixia financeira.
“Há uma queda progressiva do
orçamento e das ações de inspeção do trabalho desde 2012, mas neste ano houve
uma pane seca. O governo cortou cerca de 70% dos recursos previstos e boa parte
das atividades de fiscalização foi suspensa em meados de julho. Somente após muita
pressão o governo liberou 5 milhões de reais, valor insuficiente para a demanda
e para cobrir os prejuízos das operações abortadas.”
*Publicado em Carta Capital 30/10/2017
00h30, última modificação 27/10/2017 18h57
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