Velhas normas e lógicas da era
fordista já não servem, mas o neoliberalismo propõe uma regressão feudal. É
hora de buscar alternativa que combine autonomia, desalienação e dignidade
Alain Supiot | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Charles Mourin, A
Aurora do Trabalho (1891)
Seria necessário ser cego para
negar a necessidade fundamental de reforma das leis trabalhistas. No decorrer
da história, os avanços tecnológicos sempre levaram à reestruturação das
instituições. Foi o caso nas revoluções industriais do passado, que depois de
derrubar a velha ordem – ao abrir as comportas para a proletarização, a
colonização e a industrialização da guerra e do extermínio — resultaram na
reconstrução de instituições internacionais e na invenção do Estado de
bem-estar social. O período de paz e prosperidade desfrutado por países
europeus no pós-II Guerra pode ser creditado a esse novo tipo de Estado e às
fundações sobre as quais ele foi construído: serviços públicos integrados e
eficientes, uma rede de segurança social cobrindo toda a população e leis
trabalhistas que garantiam aos trabalhadores um nível mínimo de proteção.
Essas instituições, nascidas na
segunda revolução industrial, foram agora colocadas em questão, minadas por
políticas neoliberais que levam a uma corrida social, fiscal e ambiental de
rebaixamento entre as nações; e pela revolução digital, que está tragando o
mundo do trabalho – manual ou do conhecimento [1]. Não se espera que
trabalhadores “conectados” sigam ordens como robôs mas que, ao contrario,
respondam em tempo real à informação que recebem. Esses fatores políticos e
tecnológicos trabalham juntos. Ainda assim, eles não poderiam ser associados,
porque o neoliberalismo é uma escolha política reversível, enquanto a revolução
digital é um fato irreversível que pode servir a diferentes fins políticos.
As mudanças tecnológicas que
alimentam os atuais debates sobre automação, fim do trabalho e “uberização” têm
duplo sentido. Podem tanto aprofundar a desumanização do trabalho engendrada
pelo taylorismo quanto levar à adoção de “condições humanas de trabalho”
estipuladas na Declaração
de Filadélfia, o documento essencial da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Este texto propõe-se a assegurar empregos em que os
trabalhadores tenham “a satisfação de dar a mais completa medida de sua
habilidade e realização e façam sua maior contribuição ao bem-estar comum” [2].
Essa perspectiva seria um aprimoramento do modelo de trabalho assalariado, ao
invés de um retorno à “mercantilização do trabalho”.
Emprego no século 21:
um acordo em evolução
Até os anos 1970, o emprego
envolvia uma barganha: obediência em troca de segurança. Os empregados
renunciavam a qualquer tipo de autonomia sobre seu trabalho em troca de um
número limitado de horas de trabalho, negociação coletiva e proteção contra a
perda do emprego. Esse modelo, implementado de várias formas legais em todas as
nações industrializadas, reduziu a justiça social aos termos quantitativos da
troca de trabalho e segurança física no trabalho e liberdade aos sindicatos.
Mas o trabalho em si – seu conteúdo e conduta – era excluído dessa barganha.
Tanto na sociedade capitalista como nos países “comunistas”, o trabalho era
considerado uma questão de “organização científica” – ou o chamado taylorismo.
Não havia lugar para a autonomia, que existia somente para executivos sênior e
autoempregados.
A revolução digital oferece uma
chance a todos os trabalhadores de adquirir maior autonomia. Mas, ao mesmo
tempo, ameaça sujeitar todo o mundo – incluindo os autoempregados, executivos e
categorias profissionais – a formas agravadas de desumanização do trabalho.
Essa revolução não é limitada à difusão das novas tecnologias. Ela está mudando
o centro de gravidade do poder econômico, agora menos concentrado na propriedade
material dos meios de produção do que na propriedade intelectual dos sistemas
de informação. Hoje, esse poder não é exercido principalmente por meio de
ordens a serem seguidas – mas de objetivos a serem alcançados.
Ao contrário de revoluções
industriais anteriores, não são as habilidades físicas que as novas tecnologias
poupam e superam – mas as ações mentais. Mais precisamente, as capacidades de
memorização e cálculo, que podem ser usadas para a execução de qualquer tarefa
programável. Estas tecnologias são incrivelmente poderosas, rápidas e
obedientes mas também, como diz o cientista da computação Gérard Berry,
totalmente estúpidas [3]. Elas possibilitariam aos humanos concentrar-se no
lado “poético” do trabalho – aquele que requer imaginação, detalhe e
criatividade, e portanto não é programável.
A revolução digital será também
uma fonte de novos perigos se, ao invés de colocar computadores a serviço dos
humanos, organizar o trabalho humano no modelo de trabalho dos computadores. Ao
invés da subordinação dar lugar a maior autonomia, o trabalho tomaria a forma
de subordinação a números. Equivaleria a estender à mente a garra que o
taylorismo mantinha sobre o corpo.
Essa tentativa quixotesca de
programar seres humanos aliena-os da experiência da realidade. Ela explica o
crescimento de problemas de saúde mental e o aumento do mesmo tipo de fraude
contábil já vista nas economias planejadas da União Soviética. Encarregado de
atingir metas impossíveis, um trabalhador tem pouca escolha: ou se afunda em
depressão, ou joga com o sistema para satisfazer indicadores de desempenho fora
da realidade. A fantasia cibernética subjacente à governança por números
adequa-se perfeitamente à promessa neoliberal de globalização. Mais
precisamente à autorregulação de uma “grande sociedade aberta” pelas forças de
um mercado que tudo abarca. Essa é a razão por que esse tipo de governo está se
espalhando, em detrimento do que a Declaração Universão de Direitos Humanos
define como Estado de Direito.
Não é, portanto, nas velhas fórmulas
do neoliberalismo que podemos busca as ferramentas legais para dominar a
tecnologia de informação e civilizar seu uso de modo a libertar, ao invés de
alienar, a mente humana. Essas fórmulas, administradas em doses maciças no
decorrer dos últimos quarenta anos, ajudaram a formatar o mundo em que vivemos.
Um mundo de uso abusivo dos recursos naturais e dominação da economia pelas
finanças, gerando nitidamente o crescimento de desigualdades de todos os tipos,
a migração em massa de pessoas que fogem da guerra e da pobreza, a volta da
violência religiosa e do nacionalismo, o declínio da democracia e o crescimento
do poder de homens fortes com ideias fracas. Diria o senso comum que, ao invés
de insistir no erro, aplicando mecanicamente as “reformas estruturais”
prescritas pelos responsáveis por esse desastre, deveríamos aprender com esses
erros, particularmente no campo das leis.
O que é particular no
neoliberalismo – e o diferencia do liberalismo clássico – é o modo como ele
trata as leis em geral, e as leis trabalhistas em particular. Elas passam a ser
vistas como um produto legislativo em competição num mercado internacional de
regulações em que reina suprema a corrida para rebaixar os padrões sociais,
fiscais e ambientais. O Estado de Direito é portanto substituído pelo
“shopping” legal, subordinando a lei a cálculos econômicos ao invés do
contrário.
Redesenhar as leis trabalhistas,
olhando além do emprego
Como os governos não querem mais
assumir nenhuma das principais alavancas macroeconômicas que afetam o emprego
(controle de moeda e das fronteiras, taxa de câmbio, gasto público), eles
empurram com mais força a última alavanca que restou: as leis trabalhistas, que
são tidas como um obstáculo ao emprego. Isso embora nenhum estudo sério dê
suporte a esse argumento.
Como os limites ao “direito” de
demitir foram abolidos, as promessas extraordinárias que acompanham cada nova
desregulação do mercado de trabalho nunca se materializaram. As taxas de
desemprego continuam muito altas [4]. Mas não tem havido revisão das leis
empresariais (elas permitem, por exemplo, recompra de ações que levam ao
enriquecimento dos acionistas sem dar nada em troca, destruindo o capital e
minando o investimento), das leis contábeis, ou das leis sobre finanças (tais
como a existência de bancos privados que são “muito grandes para falir” e que
portanto usufruem de uma inviolabilidade negada a Estados endividados) [5]. Os
efeitos negativos de tais mudanças, nos investimentos e no emprego, estão
provados. No noticiário atual, reduzir a indenização por demissão injusta é
visto como “reforma corajosa”, enquanto limitar os ganhos de opções de ações
que um executivo pode receber em razão de tais demissões é tido como
“demagogia”.
Qualquer reforma séria das leis
trabalhistas deveria ter como alvo mais democracia econômica – ou a própria
democracia política continuará a se dissolver. Idealmente, reformas verdadeiras
deveriam dar a todo mundo mais autonomia e controle sobre suas vidas
profissionais, criando mais salvaguardas ativas, que permitam às pessoas tomar
iniciativas, e complementar as salvaguardas passivas herdadas do modelo
fordista. Mas isso não pode ser feito sem levar em conta as profundas mudanças
na organização das empresas e do trabalho que vêm ocorrendo desde os anos 1980.
A primeira condição para tal
reforma seria estender as leis do trabalho para além do emprego, de modo a que
protejam todos os tipos de trabalho economicamente dependente. Hoje, a
revolução digital e o modelo de start-up estão ressuscitando esperanças de
empoderamento por meio do autoemprego e pequenas cooperativas. Mas na realidade
as linhas entre autoemprego independente e autoemprego dependente estão sendo
apagadas, com os trabalhadores presos por laços de fidelidade que reduzem sua
autonomia em vários graus. Do mesmo modo, a ideia de que plataformas digitais
que reúnem trabalhadores e usuários de seus serviços beneficiará o autoemprego
não é confirmada pelos fatos, como demonstram as ações coletivas apresentadas
por motoristas da Uber, com algum sucesso, para forçar a empresa a
reconhecê-los como empregados.
Face a essa mudança, a
dependência econômica deveria ser o critério essencial para um contrato de
emprego, como recomendado por uma série de propostas provocadoras elaboradas
por um grupo de acadêmicos franceses [6]. Adotar esse critério simplificaria as
leis do trabalho, e ligaria o grau de proteção recebido pelos trabalhadores à
sua dependência. A gestão de resultados tem sido acompanhada pelo retorno da
velha estrutura legal da “propriedade feudal”, na qual um arrendatário
garantiria lealdade ao dono da terra em troca do direito de trabalhar um lote
de terra. O ressurgimento de tais laços tornou-se possível devido a ferramentas
digitais que permitem aos proprietários controlar o trabalho de outros sem lhes
dar ordens.
Esses laços de lealdade formam a
estrutura legal da economia de rede e são encontrados, de diferentes modos, em
todos os níveis de trabalho: dos chefes executivos sujeitos aos caprichos dos
acionistas ou clientes até os empregados assalariados, de quem é demandada
flexibilidade – eles têm de estar disponíveis o tempo inteiro. Os debates sobre
a uberização iluminam a necessidade de uma estrutura legal que possa manter as
promessas (de autonomia) e mitigar os riscos (de exploração) inerentes a essas situações
de lealdade.
Reformas visionárias
Neste novo contexto, qualquer
reforma que coloque no centro das relações de trabalho as negociações diretas
entre patrões e empregados é irrelevante. Este enfoque pode ter sido adequado
nos Estados Unidos em 1935, quando a Lei Nacional de Relações de Trabalho foi
adotada como parte do New Deal. Mas ele não resolve os problemas colocados pela
organização atual do trabalho – interconectada e transnacional.
A primeira questão é: que
mecanismos permitem aos trabalhadores recuperar algum grau de controle sobre o
sentido e o conteúdo de seu trabalho? Na França, o direito dos asssalariados à
expressão coletiva, consagrado nas Leis Auroy, de 1982, inauguraram este
processo, que poderia ter prosseguido se a concepção e a organização do
trabalho tivessem se transformado em ponto de negociação coletiva e consciência
individual. Hoje, este tema é tratado apenas de modo negativo, quando o
trabalho, sob a ordem atual, leva a suicídios ou distúrbios psicossociais. É
preciso voltar a tratá-lo de modo propositivo.
É preciso que haja condições de
conduzir negociações coletivas nos níveis corretos, não apenas no de cada
indústria ou empresa. Dois destes níveis merecem atenção particular: o da
cadeia produtiva e o do território. Tal tipo de negociação permitiria que
aflorassem, por exemplo, os interesses específicos de empresas hoje
dependentes. Elas poderiam articular-se os empregados, diante do poder das
companhias de que todos dependem. Também permitiria envolver todas as parts
interessadas no dinamismo de uma dada região. O cara-a-cara dinâmico entre
empregador e empregado, numa empresa ou num ramo de produção, deixou de ser
adequado. É preciso convocar a presença de outras partes, em torno da mesa de
negociação.
Uma terceira ideia para uma
reforma verdadeira tem a ver com a partilha de responsabilidades no interior
das redes de empresas. Estas redes permitem que quem as controla exerça poder
econômico intenso, mas exima-se de suas responsabilidades em relação a
subordinados. Trata-se, portanto, de ligar a responsabilidade de cada membro da
rede ao grau de autonomia de que de fato desfruta [7]. Tal reforma permitiria
clarear as áreas cinzentas existentes em torno do conceito contemporâneo de
“responsabilidade social” – que representa, para o neoliberalismo, o que o
paternalismo foi para o liberalismo. Onde necessário, a mudança obrigaria a
empresa dominante a responder conjuntamente por danos causado pelas
organizações que ela cria e controla.
No plano internacional, deverámos
assumir por inteiro a sentença inscrita na Carta de Filadélfia da OIT. “O
fracasso de qualquer nação em assegurar condições humanas para o trabalho é um
obstáculo no caminho de outras nações, que desejam melhorar as condições em
seus próprios países”. E deveríamos levar em conta que a divisão internacional
do trabalho e nosso impacto ambiental sobre o planeta são temas inseparáveis.
Padrões sociais e ambientais
devem ter, portanto, a mesma força legal que as normas que regem o comércio
internacional. Isso exigirá a criação de um órgão para disputas internacionais
com poder de autorizar os países que asseguram trabalho digno e proteção do
ambiente a fechar seus mercados para os que não os respeitam [8]. No plano
regional, blocos como a União Europeia poderiam recuperar legitimidade política
liderando tal reforma e renovando um compromisso adotado em seus tratados – em
relação a “condições melhres de vida e trabalho, para tornar possível sua
harmonização”, ao inveś de encorajar uma corrida social e fiscal rumo ao fundo
do poço, como ocorre hoje.
Uma reforma ambiciosa das leis
trabalhistas deveria incluir também o trabalho hoje não pago – como o cuidado
com as crianças e os parenes idosos, vital para a sociedade e hoje ignorado
pelos indicadores econômicos. Desde que a luz artificial tornou possível o
trabalho durante as 24 horas do dia, as leis trabalhistas ofereceram uma
estrutura espacial e temporal compatível com nosso relógio biológico e o
direito humano ao respeito pela vida privada e familiar. Esta estrutura é agora
ameaçada pelo neoliberalismo e pela tecnologia da informação, que juntas
estendem o trabalho assalariado para todos os lugares e todas as horas [9]. O
preço, particularmente em termos de vida familiar, é exorbitante – mas nunca
reconhecido por aqueles obcecados com o trabalho aos domingos e às noites.
Exatamente o que está destruindo os últimos vestígios de tempo social que
escaparam à mercantilização da vida humana.
-------
[1] Michel Volle (2017). Anatomie
de l’entreprise. Pathologies et diagnostic. In Pierre Musso (Ed.), L’Entreprise
contre l’État?Manucius, Paris.
[2] Declaração de Filadélfia
(1944).
[3] Gérard Berry (2008). Pourquoi
et comment le monde devient numérique. Annuaire du Collège de France.
[4] A taxa oficial de desemprego
é de 11,1% na Itália, 17,8% na Espanha e 21,8% na Grécia.
[5] Ao substituir um antigo
princípio de contabilidade, este padrão indexa o valor dos ativos de uma
empresa a seu preço de mercado estimado, destacando o que é riqueza puramente
hipotética. Ver, de Jacques Richard (2005). “Une comptabilité
sur mesure pour les actionnaires”. Le Monde diplomatique, Novembro de
2005.
[6] Emmanuel Dockès (2017). Proposition
de code du travail. Dalloz, Paris.
[7] Alain Supiot e Mireille
Delmas-Marty (2015). Prendre la responsabilité au sérieux. PUF, Paris.
[8] O uso de novas formas de ação
coletiva, incluindo o boicote a certos produtos, também deveria ser
reconhecisdo com ou direito inerente à liberdade de associação e ao direito de
organização.
[9] Laurent Lesnard (2009). La
famille désarticulée. Les nouvelles contraintes de l’emploi du temps. PUF,
Paris.
Sem comentários:
Enviar um comentário