Martinho Júnior | Luanda
1- Ao longo das quatro décadas da
independência de Angola, em nome da história, dos “direitos humanos” (decorrentes
do entendimento ao serviço dos processos dominantes), ou até evocando
pretensões com raiz no carácter do próprio colonialismo, muitas campanhas se
têm desenvolvido pelas mais diversas correntes doutrinárias e ideológicas, com
abertura a aproveitamentos que, duma forma ou de outra, vão encaixando nos
padrões do exercício do poder dominante que instrumentaliza os próprios Estados
Unidos e seus vassalos na multiplicidade de relacionamentos mantidos no
decorrer da globalização, em especial desde o início da década de 90 do século
passado (incluindo no recurso que fazem às novas tecnologias).
O vácuo que ocorreu com o
desaparecimento do socialismo no espaço euro-asiático, por tabela, ainda que em
relatividade própria, no africano, escancarou as portas a esse tipo de
correntes (a oportunidade da “Open Society”, um padrão para novos fluxos
de ingerência e manipulação conformes ao “perfil” do
filantropo-especulador George Soros, um “modelo” que se inscreve no
capitalismo neoliberal), bem como à alimentação de campanhas que acabam por
criar vínculos, quando é aplicado o “soft power” das potências, na
esteira dos velhos “expedientes de assimilação”, algo que vem ocorrendo em
relação a Angola, mais sensivelmente a partir do Acordo de Bicesse, assinado a
31 de Maio de 1991.
A esta distância é verificável a
quem serviu Bicesse, seguindo a trilha de um dos seus principais artífices,
Durão Barroso, que se apresentará em Turim à reunião de 2018 do Bilderberg…
É evidente que desse modo passou
a haver a oportunidade para, em nome da história, da antropologia e até da
filosofia, se arranjarem todo o tipo de narrativas de conveniência, que
subsistem não por causa dos lindos olhos dos cidadãos do mundo, ou no caso de
Angola dos angolanos, mas por que as campanhas fazem parte intrínseca do
domínio, aninhando-se nos braços de seus interesses egoístas, de suas
ingerências multiformes e de suas múltiplas manipulações e ingerências mais ou
menos subversivas que ocorrem em função dos seus imensos recursos acumulados à custa
do sacrifício dos povos e das potencialidades de ordem geométrica atiçadas pela
especulação (não só financeira, mas neste caso de índole psicossocial).
Muito recentemente abordei este
vasto e naturalmente controverso assunto na intervenção “Vitória estratégica
para toda a humanidade” e a propósito, além do mais, do chavão “Guerra
Fria”, ele próprio motivador duma campanha que, sem olhar a meios, foi guerra
psicológica sobretudo contra a União Soviética e o socialismo, capaz até de
substituir a objectividade histórica comprovada e relativa ao desenrolar dos
acontecimentos antes, durante e imediatamente a seguir à IIª Guerra Mundial até
meados do século XX, com influência em todo o mundo por causa das correntes
derivadas dos mais poderosos interesses, os da aristocracia financeira mundial,
até aos nossos dias.
Essa é uma das funções dos bancos
de família, poderosos bancos “transatlânticos” que tomaram a Reserva
Federal dos Estados Unidos (conforme testemunho vivencial de Louis T. McFadden
em 1934, “An astounding exposure”) e foram decisivos na criação e gestão
do papel-moeda Dólar, que propositadamente deixou de ter indexação ao ouro para
passar a tê-la em relação aos produtos energéticos, com o petrodólar à cabeça,
expediente consolidado após o encontro entre o Presidente Roosevelt e o rei Ibn
Saud no Suez, a bordo do cruzador pesado USS Quincy atracado no porto de Suez,
a 14 de Fevereiro de 1945 (final da IIª Guerra Mundial).
2- Tem sido relativamente fácil
aos que tocam para a frente campanhas contra os países mais vulneráveis da
Terra, onde se encaixam praticamente todos os países africanos, preencher o
espaço vazio, por que por outro lado, a revolução das novas tecnologias
socorreu esse poder imperial dominante, que organizou todo o tipo de escalonamentos
globais e os irrefutáveis vínculos do domínio e de opressão inscritos na
sua “polícia do mundo”.
É evidente que o Movimento de
Libertação em África tornou-se para essas correntes uma autêntica “letra
morta”, um alvo que por tabela foi abatido com o colapso do socialismo, até por
que o poder hegemónico unipolar dominante, o império de cultura anglo-saxónica
pretende, inclusive por via de ideologias elitistas, que os africanos não
conheçam as raízes históricas e antropológicas que visem consolidar e nutrir o
rumo de suas tão vulneráveis identidades, nações e estados!...
O império da hegemonia unipolar
pretende que o único rumo seja o determinado por si e “em toda a linha”…
massivamente e desde raízes por si programadas; não pode haver outra leitura a
fazer!
A título de exemplo: os
procedimentos neoliberais que Angola absorveu desde o Acordo de Bicesse e
particularmente no seguimento do fim da última convulsão militar que foi um
autêntico choque, deliberado e programado para se introduzir a terapia,
encarregaram-se eles próprios de fazer o corte e por isso a marginalização da
comunidade de membros do ex-MINSE (de facto a comunidade mais ideologicamente
comprometida com o Movimento de Libertação em África após a independência de
Angola), assim como a produção da moldagem da juventude angolana às ideologias
afins ao neoliberalismo, ou seja, provocar que a juventude tenha tanta
dificuldade em conhecer e entender o passado entre o 11 de Novembro de 1975 e o
4 de Abril de 2002 e seja, em simultâneo, tão facilmente “absorvida” por
outros comportamentos “simpáticos” à “esquadria” da cadeia
de domínio!...
Dessa marginalização à
consideração da comunidade de membros do ex-MINSE como um “potencial
inimigo”, vai apenas um pequeno passo, sensível e “muito útil”: o
comportamento de rigor ao estimar-se o estado angolano como o fiel depositário
dos interesses de todos os angolanos, não pode ser aceite pelos formatados
mercenariamente pelo capitalismo neoliberal ávidos de propriedade e de lucro
fácil (quantas vezes derivado de especulações, ou mesmo da devassa de
parcerias, comissões ou roubos que levam à trilha do “apartheid social”),
muito menos por aqueles que fomentaram todo o tipo de corrupções que começaram
substancialmente a vingar desde o dia 2 de Março de 1986!
Uma radiografia sobre a deriva da
superestrutura ideológica dum estado que começava praticamente com um programa
socialista identificado com o marxismo-leninismo e acabou sofrendo os mais
nocivos impactos do capitalismo neoliberal desde o início da “guerra dos
diamantes de sangue” (inclusive laços que foram estimulados pela NATOe
foram“alimentados” pela “mestria” dum Durão Barroso), passa
necessariamente pelo conhecimento do que ocorreu aos instrumentos do poder do
estado, neste caso angolano, do que ocorreu em relação aos seus próprios
organismos de defesa e segurança, desde o antecedente que constituiu a
Conferência de Lusaka do MPLA (de 18 a 23 de agosto de 1974)!
3- Voltando à pista externa, essa
é a razão da manutenção do dólar (petrodólar) como moeda-padrão internacional,
mesmo que já não esteja indexada ao padrão ouro e por que é uma utilidade
intrínseca à prossecução da banca aristocrática que tomou a Reserva Federal, ou
a garantida manipulação sobre os preços estipulados pelos organismos
internacionais como o Banco Mundial e o FMI, para a esmagadora maioria das
matérias-primas, bens e serviços…
Por outro lado, às
matérias-primas típicas da produção no âmbito da revolução industrial,
somaram-se outras matérias-primas indispensáveis às novas tecnologias e África,
uma ultraperiferia económica e financeira sistematicamente vulnerabilizada e
dominada, continuou a ser “um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o
seu pedaço”, ainda que os africanos tenham massivamente a ilusão que não o é!
Essa “esquadria” impunha
as suas regras que para a aristocracia financeira mundial determinavam-se no
sentido de ninguém as poder romper (daí o papel de “polícia do mundo”, conseguido
com a instrumentalização da vocação imperial dos Estados Unidos), algo que
procuram salvaguardar de forma reforçada desde a década de 90 do século
passado, pelo que foi mantida uma atenção redobrada a todo o tipo de “criatividades” que
fugissem aos seus mecanismos de controlo, assim como à malha apertada dos seus
interesses e conveniências, desde a intervenção nos Balcãs pulverizando a
Jugoslávia!...
A Líbia dirigida pelo coronel
Kadafi rompeu com essas regras, abrindo a janela duma trilha que visava um
renascimento africano que estava fora da “esquadria”, chegando a chocar
até directamente com os interesses e conveniências intrínsecos ao “pré
carré” da “FrançAfrique”, pelo que em 2011, ainda que à revelia da
ONU e de qualquer outra instituição “não-alinhada”, ficou decidida não só
a sua sorte, mas também o grau de caos, de terrorismo e de desagregação
injectados com as contramedidas dominantes, do âmbito do império da hegemonia
unipolar, aguardando um futuro concerto de volta à “esquadria” dominante,
ainda que afectando praticamente toda a bacia mediterrânica, a norte e o Sahel,
a sul até ao paralelo da bacia do Congo, do Lago Chade e dos Grandes Lagos!…
É o desaparecimento de Kadafi que
serviu para a introdução das linhas wahabitas radicais em África, financiadas
pelos interesses coligados ao petrodólar (agentes das monarquias arábicas,
britânicos, gauleses e estado-unidenses), que têm alterado o ambiente
sócio-político no Médio Oriente e em todo o continente africano, neste caso
numa expansão que vai em direcção ao sul e acaba de afectar já, a título de
exemplo, o norte de Moçambique, explorando a antropologia humana em equilíbrio
instável entre as regiões das maiores extensões de desertos quentes do globo e
o espaço vital sobretudo das bacias do Congo, do Nilo, do Níger e do Zambeze,
assim como dos lagos interiores (desde o Lago Chade aos Grandes Lagos)!
4- Os “jogos” que
compõem a “esquadria” do império face aos outros, inclusive dentro
duma NATO que tem sido usada até no ninho de drogas que passou a ser o
contemporâneo Afeganistão e pode passar a ser usada noutro ninho similar como o
é a Colômbia, começam agora e ter rupturas, como são os casos mais flagrantes
provocados pelo evoluir da situação no Iraque e na Síria.
Essas rupturas tornam-se também
intestinas e, no caso da NATO, à deriva da Turquia cujas envolvências pouco têm
a ver com o Atlântico Norte, começa-se a desenhar a deriva franco-alemã na
direcção da emergência a leste (começam a“espreitar” as múltiplas
especialidades que darão consistência à Rota da Seda), por que os interesses
das oligarquias da União Europeia já não têm outra alternativa senão sair
da “camisa de forças” que as obriga à vassalagem e ao papel
subjacente na “esquadria” da hegemonia unipolar do império que de forma
tão oportunista se faz sentir nos países do leste europeu que fizeram um dia
parte do Pacto de Varsóvia e até no Cáucaso.
Um caso flagrante que está na
ordem do dia é o acordo de fornecimento de gás russo à Finlândia, Suécia,
Alemanha, Áustria, Holanda e os que se seguirão, por via dum pró activo North
Stream 2, que obriga a uma reactiva oposição dos países Bálticos, da Ucrânia e
dos Estados Unidos, com reflexos na gestão intestina da NATO.
Impossível os europeus
encontrarem melhor solução que socorre não só as suas preocupações ambientais,
mas também abre uma janela para integrar o pelotão de interesses na Belt and
Road, na Rota da Seda que começa a unir por dentro da imensidão continental
euro-asiática, o Pacífico ao Atlântico.
As campanhas de guerra
psicológica que se arrastam como crónicos vírus desde a IIª Guerra Mundial,
começam a ser postas em causa por que, se uma grande parte do acervo histórico
está noutras mãos e fazem parte de outras culturas, isso impede não só que uma
mentira de tantas vezes repetida se torne em verdade, mas também permite que a
história e os vínculos (grande parte deles de natureza antropológica, mas
também de natureza económica) que nutrem outras correntes, de geração em
geração, socorra os conteúdos e o carácter das emergências multipolares e das
cada vez mais eficazes resistências à barbárie de injustiças que assolam toda a
humanidade e desrespeitam a natureza da Mãe Terra!
Entre as últimas campanhas
inscrevem-se as dos casos Skripal, a partir da Grã-Bretanha e Babchenko, a
partir da Ucrânia, deliberadamente dirigidas contra a Rússia, mas com enredos
tão mal montados que ambos sobreviveram à morte…
É evidente que essa campanha nada
pôde contra o North Stream 2!
5- Em Angola e em África, lutar
contra o subdesenvolvimento tirando partido da plataforma de paz e aplicando
uma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável inspirado numa lógica com
sentido de vida que advém do rumo do Movimento de Libertação, é não só colocar
um pé no futuro, mas também dar início, finalmente, à corrente dum telúrico
renascimento africano intimamente associado à sobrevivência humana, que forjará
por seu turno o seu rumo, na força crítica e inteligente capaz de assumir a
necessária noção consciente sobre muitas das nocivas campanhas que se arrastam
desde o passado de trevas da escravatura, do colonialismo e do “apartheid”!
É evidente que, chegando-se a
esse patamar, muitas questões se irão levantar na confrontação de dados e no
conhecimento crítico que urge ampliar e aprofundar entre África e a América,
acerca dos afrodescendentes que só existindo em função do movimento
transatlântico da escravatura e do colonialismo, sobrevivem marginalizados, ou
isoladamente espalhados pelas pequenas ilhas das Caraíbas, ou pelos guetos
humanos no imenso espaço do “Novo Continente”, num “apartheid” não
declarado, mas evidente, com as saudáveis excepções de Cuba e ultimamente da
Venezuela Socialista e Bolivariana!
Nessa linha de pensamento, ocorre
a urgência que o génio dum Eduardo Galeano, seja assumido numa visão
transatlântica e fluente entre os dois continentes, com toda a legitimidade
histórica que isso implica, algo que pode ser sustentado com o exemplo
incomparável e incontornável de solidariedade e internacionalismo conforme
Cuba, plenamente identificada com o Movimento de Libertação em África, “de
Argel ao Cabo da Boa Esperança”!...
Para abrir o caminho da luta
armada contra o colonialismo e o “apartheid” o Movimento de
Libertação em África era obrigado a assumir-se como uma vanguarda em torno dum
líder e foi isso que se levou por diante no MPLA, em torno do Presidente
Agostinho Neto.
Para em paz se realizar a longa
luta contra o subdesenvolvimento, aproveitando as possibilidades consensuais
que se abrem com a democracia e o seu aprofundamento, os líderes precisam criar
consensos e plataformas capazes de responder aos desafios, colocando na
vanguarda a abertura dum processo de inteligência patriótica e não elitista, um
amplo processo educacional que resgate para o conhecimento dos angolanos tudo o
que à partida diga respeito ao relacionamento do espaço
físico-geográfico-ambiental com o homem.
6- Posso lembrar em reforço a uma
construção progressista no Atlântico Sul, abrindo espaço a um Tratado do
Atlântico Sul progressista sob o olhar silencioso de Fidel, mas comprometido
com a versatilidade do seu repto, um repto dialético muito para além de sua
própria vida, a premente necessidade de continuar a batalha das ideias entre o
que à civilização diz respeito enquanto presente e futuro e o que à barbárie
pertence, que toda a humanidade pretende que faça finalmente parte do passado:
… “Levando o ardor progressista
desde contra o baluarte do colonialismo francês no Norte de África…
… Até contra o bastião mais
retrógrado e fascista que existia à face da Terra após a IIª Guerra Mundial, em
seu perverso domínio em toda a África Austral…
… Precisamente no sentido inverso
ao projetado pelo império anglo-saxónico sob inspiração de Cecil John Rhodes…
do Cabo ao Cairo…”
Há pilares progressistas nas duas
margens do Atlântico Sul, em África e na América, capazes de formular um
Tratado vocacionado para a paz, contrapondo-se à agressividade carregada de
intestinas contradições da NATO: Angola, Namíbia e África do Sul, tal como
Cuba, Venezuela e Uruguai.
Se antes Cuba revolucionária
encontrou os parâmetros necessários para reforçar uma vanguarda de luta armada
contra o colonialismo e o “apartheid”, agora com a paz Cuba revolucionária
é uma intérprete fiel, por via da solidariedade internacionalista especialmente
consolidada na educação e na saúde, do que substancialmente mais interessa para
com África, algo que é uma ponte contemporânea entre os africanos e os
afrodescendentes, uma ponte que tanto interessa à América e a África, livre de
qualquer propaganda e num entendimento recíproco capaz de alterar muitas das
trevas e dos vícios que advêm do passado!
Martinho Júnior - Luanda, 4 de
Junho de 2018
Imagens:
Propaganda da Guerra Colonial, um
elemento esclarecedor dos processos de assimilação, aplicados aos conceitos de
acção psicológica e guerra contrassubversão;
Simbologia das unidades
especialistas em Guerra Psicológica das Forças Armadas dos Estados Unidos;
Contra factos, escasseiam
argumentos e a propaganda nada pode – Road and Belt, a nova Rota da Seda
sino-russa;
Em nome dos interesses da União
Europeia, a vassalagem em relação aos Estados Unidos começa a abrir múltiplas
brechas;
Xi Jiping e Putin estimulam a
emergência multipolar, com novos moldes de relacionamento e poderosas
articulações geoestratégicas
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