É difícil, mas indispensável,
acompanhar de maneira informada o processo do Brexit. Os grandes media fazem
coro a traçar um cenário apocalíptico para o futuro da Grã-Bretanha, e a UE
negoceia o processo de forma verdadeiramente chantagista e terrorista. Do que
se trata é de desencorajar qualquer veleidade de saída, sobretudo se esta for
inconveniente para a Alemanha. Que ela resulte de manifestação da vontade
popular é coisa a que a UE, como é sabido, não dá qualquer importância.
José
Goulão* | opinião
Sobre o Brexit fala-se e escreve-se
muito, diz-se pouco e o essencial, como norma, fica escondido. Avalia-se o
processo segundo as pessoas que encabeçam as tomadas de decisão, resume-se o
diferendo à oposição entre eurocépticos e europeístas, atribui-se peso político
decisivo ao velho mito do antagonismo entre as ilhas e o continente, montam-se
elaboradas análises em torno do acessório e assim se vai dissolvendo o
fundamental perante uma opinião pública pouco e mal informada: nas ilhas e no
continente.
Ora o essencial é o tratamento
exemplar que os eurocratas, como servidores dos interesses que mexem os
cordelinhos da União Europeia, pretendem dar ao processo de saída do Reino
Unido – se chegar a haver uma saída, pois a dúvida ainda é legítima.
Isto é, Bruxelas deseja que a
atitude que adoptou perante o Reino Unido, depois de este apresentar a intenção
de sair, seja absolutamente dissuasora de qualquer outra tentativa de outro
Estado membro para seguir o mesmo caminho. A mensagem transmitida a cada um dos
membros da União é óbvia, apesar de implícita: se um país com o estatuto de
potência de topo da organização, como o Reino Unido, é obrigado a sujeitar-se a
tais humilhações dos seus dirigentes e órgãos institucionais, imagine-se a
sorte reservada a um simples plebeu, principalmente um pequeno ou médio país.
Se o rolo compressor cilindra o Reino Unido desta maneira, o que não faria a
uma Grécia, Portugal, mesmo a uma Itália, Espanha, Polónia se, por absurdo,
decidissem requerer a saída. Uma coisa, de facto, é os povos estarem saturados
da União Europeia até às raízes dos cabelos e chegarem até a pronunciar-se
democraticamente pela saída; outra coisa, bem diferente, seria conseguirem sair
e sobreviver nessa condição. A diferença revela quanto valem hoje os mecanismos
democráticos.
A engrenagem autocrática da União
Europeia não hesita perante o recurso à chantagem e a comportamentos de
vendetta, eficazes para servirem de exemplo. Não é por acaso que em Bruxelas se
diz à boca cheia, embora no recato dos bastidores, que «na União Europeia
entra-se mas não se sai» – assim se definindo a tão alardeada «solidariedade»
para que se cumpra «o sonho» dos «pais fundadores». Mais um mito transformado
em causa política para que a doutrina ditatorial do mercado prossiga o seu
caminho com a menor dose possível de sobressaltos.
Sugar até ao tutano
A generalidade das estimativas,
devidamente silenciadas, revela que os povos das Ilhas Britânicas ficaram a
perder com a entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia, hoje
União Europeia. Os índices sociais revelam condições de vida hoje bastante mais
degradadas para os sectores mais desfavorecidos, enquanto a opulência das
grandes fortunas alastrou.
ANTES E DEPOIS
Antes de aderir à CEE, em 1973, o
Reino Unido:
- tinha 2,8 milhões de pobres;
- desconhecia o fenómeno dos sem-abrigo;
- não tinha trabalho precário;
- possuía serviços públicos de qualidade e a preço acessível;
- era a 5.ª potência económica mundial
- tinha 2,8 milhões de pobres;
- desconhecia o fenómeno dos sem-abrigo;
- não tinha trabalho precário;
- possuía serviços públicos de qualidade e a preço acessível;
- era a 5.ª potência económica mundial
Em 2018, após 45 anos de CEE e UE, o Reino Unido:
- tem 14 milhões de pobres;
- tem 80 mil sem-abrigo;
- tem 10 milhões de trabalhadores em regime precário;
- tem serviços públicos de menor qualidade e mais caros;
- perspectiva-se como a 10.ª potência económica mundial (a manter-se na UE).
As privatizações arrasaram a
qualidade e encareceram os serviços essenciais para a vida em sociedade. Hoje
são 10 milhões os trabalhadores em regime de precariedade, modalidade que só
passou a ser aplicada já com o país na CEE.
No outro lado da escala, se nos
anos setenta do século passado a parcela de 20% dos mais ricos tinha um
rendimento quatro vezes mais elevado que a dos 20% mais pobres, hoje esses
rendimentos são cinco vezes maiores.
O Reino Unido era a quinta
potência económica mundial quando entrou na CEE; por este caminho, as
projecções actuais atribuem-lhe o 10º lugar em 2030.
Através destes dados percebe-se
facilmente que a utilização abrangente do termo «eurocéptico» é mal-intencionada
e mistificadora; e se a maioria dos detentores dos rendimentos mais elevados
votou da mesma maneira que a maioria dos mais desfavorecidos no referendo sobre
o Brexit, as razões foram tão semelhantes como as receitas de um cavalheiro da
City e o salário de um trabalhador precário de uma fábrica de componentes para
telemóveis.
Dizem igualmente os índices conhecidos, e pouco divulgados, que a economia britânica iria sofrer de facto com o Brexit, mas apenas nos primeiros dois anos; passada essa fase regressaria ao crescimento e a um ritmo que muito rapidamente ultrapassaria o do conjunto dos países da União Europeia.
Não surpreende, portanto, que o preço imposto pelo Conselho Europeu ao Reino Unido para poder sair da União Europeia seja a enormidade de
Aliás, segundo as sondagens, a
vantagem dos partidários do Brexit sairia provavelmente reforçada em novo
referendo – sendo essa a verdadeira razão que tem impedido a sua convocação.
Humilhação
É importante recordar que o
governo do Reino Unido levou à União Europeia uma proposta de saída, o chamado
Plano Chequers (1), no sentido de permanecer no mercado único, sem livre
circulação de pessoas, bens e serviços e sem dependência do Tribunal Europeu do
Luxemburgo.
As circunstâncias da rejeição
desta opção foram humilhantes, porque a primeira-ministra britânica, Theresa
May, chegou a ser obrigada a permanecer no exterior de uma reunião do Conselho
Europeu e acabou por aceitar uma cedência total às exigências da União – e que
teve como resultado seguinte a derrota na Câmara dos Comuns.
No entanto, a pretensão assumida
agora pela maioria dos deputados de Londres para renegociar o acordo é
liminarmente rejeitada por Bruxelas, tal como aconteceu ao Plano Chequers.
A comunicação social mainstream
usa, por sistema, a metodologia mistificadora da fulanização dos processos de
decisão para não aprofundar o que verdadeiramente está em causa.
Seguindo então brevemente por esse
caminho, mas alargando o leque dos envolvidos, iremos encontrar a figura do
presidente do Conselho Europeu, o neoliberalíssimo polaco Donald Tusk, como o
homem de mão dos interesses que transformaram o Brexit num caso exemplar e que
impõe a capitulação total do Reino Unido.
É Tusk quem rejeita liminarmente
o Plano Chequers e dá a cara por uma manobra de chantagem que é a imagem de
marca do processo dito «negocial»: manter a Irlanda do Norte na União
Aduaneira, ao contrário do restante Reino Unido, de modo a que não sejam
reinstaladas as fronteiras entre aquele território e a República da Irlanda e
não se reabram assim as portas do sangrento conflito irlandês. Ou seja, haveria
controlos alfandegários entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido, com a
particularidade de alguns deputados eleitos por aquele território serem
essenciais à existência da coligação que sustenta o governo de May.
Donald Tusk é amigo de infância
da chanceler alemã Angela Merkel; não é difícil perceber, portanto, a mão alemã
em todo o processo de sabotagem e manipulação, estabelecendo-se, a partir daí,
o padrão de comportamento da União Europeia. A Alemanha já terá feito,
certamente, as contas aos milhares de milhões de euros de quebra do seu PIB com
a saída do Reino Unido.
O que fará ainda mais sentido se
ficarmos a conhecer outras figuras que marcaram o processo de «negociações». O
francês Michel Barnier, extremamente próximo de Macron (2), foi o chefe
negociador; mas teve como sua «número dois» precisamente uma alemã, Sabine Weyang,
que desempenhou o principal papel executivo no processo.
Por este caminho da
personalização poderíamos ainda tropeçar na figura de Tom Tugendhat, o deputado
britânico que chefia a ala anti-Brexit do Partido Conservador de May, e cuja
esposa, Anessie Tugendhat, trabalha na Embaixada de França em Londres. França
que, a exemplo da Alemanha, está na linha da frente contra o Brexit (3).
Assim se chegou à situação
actual: a capitulação de May perante a União foi rejeitada pelo Parlamento de
Londres, que pretende o relançamento das negociações para a saída, entretanto
já recusada por Bruxelas.
Deste modo, como alternativa ao
«Brexit duro» não haverá um «Brexit suave» porque a União Europeia, além de
«negociar» impondo, afirma agora que nada mais há para discutir.
E a senhora May, há muito com o
seu governo preso por arames, mas sobrevivendo, assumiu uma fuga para a frente
ao dizer que «para um mau acordo antes acordo nenhum».
O impasse que a situação sugere é
aparente. O governo de Londres já não tem margem de manobra; o Parlamento
britânico também não, porque Bruxelas recusa a sua alternativa.
O mais certo é a crise política
desembocar em alterações, a prazo, das posições governamentais e parlamentares
de Londres, nas quais o Brexit se dissolva como «verdadeiro pesadelo que é»,
como foi qualificado por um diplomata de um dos 27, oriundo de um país do
Leste.
Seja como for, o Reino Unido fará sempre o papel de grande derrotado em todo este processo. Só sairá capitulando, pagando o que tem e o que não tem; ficando, deixará bem claro que a opinião dos cidadãos manifestada em referendo não contou para nada.
Ficou dado o exemplo.
A União Europeia, como engrenagem
autocrática, não admite dissidências.
Fonte:
https://www.abrilabril.pt/internacional/o-brexit-e-engrenagem-autocratica-da-ue
Notas:
1- O leitor pode aceder na íntegra ao documento oficial britânico aqui.
2- Europeista convicto, Michel Barnier é também próximo de Nicolas Sarkozy e de
Durão Barroso, tendo sido conselheiro de ambos. Ministro em vários governos de
direita, pertence ao Conselho de Estado françês. Comissário Europeu. Entre
cargos governamentais e na UE, esteve ligado a um grupo de negócios francês na
área da biologia e dos medicamentos. Fundou o grupo de reflexão Nova República
para promover o diálogo entre políticos e empresários sobre as questões
europeias.
3- Tom Tugendhat é uma figura do establishment político-militar britânico.
Aristocrata, tem dupla nacionalidade britânica e francesa. Além da posição da
esposa, Anessie Tugendhat, refira-se que o seu sogro dirige o grupo de
observadores da OSCE na Ucrânia. Militar desde 2003, no Intelligence Corps
(Serviço de Informações do Exército britânico). Fluente em árabe, fez a guerra
no Iraque e no Afganistão, tendo recebido condecorações «operacionais» e a
Ordem do Império Britânico. Promovido a tenente-coronel em 2013. Faz parte do
Comité dos Negócios Estrangeiros. Considerou publicamente o «caso Skripal» como
um acto de guerra russo contra o Reino Unido.
*em O Diário
Gostaste do que leste?
Divulga o endereço deste texto
e o de odiario.info entre os teus
amigos e conhecidos
Sem comentários:
Enviar um comentário