domingo, 3 de fevereiro de 2019

Portugal | A outra face da Presidência


Manuel Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

O presidente da República (PR), que surpreendeu grande parte dos portugueses pela forma descomplexada com que acomodou a solução governativa que havia horrorizado o seu predecessor, pelo estilo pouco convencional com que tem exercido o cargo e, ainda, pela desenvoltura com que se pronuncia diariamente sobre assuntos que são da competência de outros órgãos de soberania, volta a surpreender com pronunciamentos e decisões que parecem revelar uma outra face da Presidência, até agora pouco exposta.

Neste texto vou referir-me apenas a posições assumidas pelo PR a respeito da proposta de Lei de Bases da Saúde, e à decisão de nomear o comentador João Miguel Tavares para a presidência da Comissão das Comemorações do próximo 10 de Junho.

Começo pela Lei de Bases. Pode o presidente estabelecer que partidos devem votar favoravelmente uma lei? Está atribuído às escolhas do PR o dom de garantir a uma lei a credibilidade a adequação e a perenidade necessárias? Não. Compete à Assembleia da República (AR) propor (ou acolher propostas do Governo), discutir e aprovar as leis de acordo com o que a Constituição consagra. E não há forças políticas ou deputados de primeira e de segunda.

Pode o PR anunciar o veto a uma lei, antes de estar discutida? Não. Porque ao fazê-lo exerce pressão ilegítima sobre a AR e oferece o poder de veto a forças que ele posiciona para o poderem usar. O anúncio que o presidente fez configura-se como perigosa birra política ou chantagem. É comum ouvi-lo responder (e bem) a jornalistas que lhe perguntam o que vai fazer com a lei A ou B: "não sei, porque ainda não me chegou e só depois é que a analisarei e me pronunciarei". Por que razão neste caso se nega tão frontalmente?

A matéria é muito importante para os portugueses. O PR deve dar-lhe atenção e tem o direito de exercer a sua magistratura de influência junto do Governo, dos partidos e de outros atores. Mas nos parâmetros constitucionais. Se esta sua chantagem vingasse, iniciar-se-ia um caminho de revisões da Constituição à la carte, a partir das agendas e desejos de presidentes. Por isso deve ser rechaçada sem hesitações e a AR tem meios para o fazer.

A Lei de Bases em vigor foi aprovada em 1990 apenas pelo PSD e pelo CDS. Ela, no geral, permitiu garantir saúde aos portugueses mas, ao longo destes 28 anos, perdeu estabilidade e tornou-se instrumento crescente do depauperamento e sangria do SNS, a favor dos chorudos negócios privados com a saúde.

As posições do PR surgem num contexto que não pode ser ignorado: i) há fortes pressões e chantagens sobre o SNS - algumas camufladas por problemas que o Governo já devia ter resolvido - visando dar campo e força ao setor privado; ii) o CDS afirma esse objetivo e o PSD quer "incentivar o privado"; iii) o presidente, talvez por inspiração divina surgida no Panamá, já introduziu o chipe da (possível) segunda legislatura; iv) a Direita e o centrão de interesses clamam contra a possibilidade (direito e dever) de a atual maioria política, agora ou no futuro, encetar reformas estruturais.

Passemos ao 10 de Junho. Estranhou a muitos a nomeação de João Miguel Tavares (JMT) para presidir àquela Comissão. A estranheza começa a ter substância. JMT fez leituras sobre condecorados do passado e descobriu (artigo, "Público" 31/01) que o mais condecorado de todos se chama Marcelino da Mata e é negro. Daí deduz, com alguns acrescentos patéticos de outrem, que toma como seus, por exemplo, que Portugal não é um país racista. JMT ignora verdades que o incomodam, ao mesmo tempo que amplia e manipula factos e mentiras para sustentar os seus propósitos. Transforma a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo.

Cumpri 40 meses de serviço militar obrigatório, 26 dos quais na guerra colonial. Ouvi contar façanhas desse sujeito e de outros do mesmo calibre: alguns dos seus atos configuram-se como crimes de guerra. De JMT pode esperar-se esta surpresa entusiástica por aquela figura ter recebido tantas condecorações entre 1966 e 1973, jamais que estranhe o facto de o militar mais condecorado hoje não ser nenhum dos muitos, honrados e generosos, Capitães de Abril.

Esta nomeação não lembrava ao Diabo e coincide com expressões da outra face da Presidência.

* Investigador e professor universitário

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