Manuel Carvalho da Silva* |
Jornal de Notícias | opinião
O presidente da República (PR),
que surpreendeu grande parte dos portugueses pela forma descomplexada com que
acomodou a solução governativa que havia horrorizado o seu predecessor, pelo
estilo pouco convencional com que tem exercido o cargo e, ainda, pela
desenvoltura com que se pronuncia diariamente sobre assuntos que são da
competência de outros órgãos de soberania, volta a surpreender com
pronunciamentos e decisões que parecem revelar uma outra face da Presidência,
até agora pouco exposta.
Neste texto vou referir-me apenas
a posições assumidas pelo PR a respeito da proposta de Lei de Bases da Saúde, e
à decisão de nomear o comentador João Miguel Tavares para a presidência da
Comissão das Comemorações do próximo 10 de Junho.
Começo pela Lei de Bases. Pode o
presidente estabelecer que partidos devem votar favoravelmente uma lei? Está
atribuído às escolhas do PR o dom de garantir a uma lei a credibilidade a
adequação e a perenidade necessárias? Não. Compete à Assembleia da República
(AR) propor (ou acolher propostas do Governo), discutir e aprovar as leis de
acordo com o que a Constituição consagra. E não há forças políticas ou
deputados de primeira e de segunda.
Pode o PR anunciar o veto a uma
lei, antes de estar discutida? Não. Porque ao fazê-lo exerce pressão ilegítima
sobre a AR e oferece o poder de veto a forças que ele posiciona para o poderem
usar. O anúncio que o presidente fez configura-se como perigosa birra política
ou chantagem. É comum ouvi-lo responder (e bem) a jornalistas que lhe perguntam
o que vai fazer com a lei A ou B: "não sei, porque ainda não me chegou e
só depois é que a analisarei e me pronunciarei". Por que razão neste caso
se nega tão frontalmente?
A matéria é muito importante para
os portugueses. O PR deve dar-lhe atenção e tem o direito de exercer a sua
magistratura de influência junto do Governo, dos partidos e de outros atores.
Mas nos parâmetros constitucionais. Se esta sua chantagem vingasse,
iniciar-se-ia um caminho de revisões da Constituição à la carte, a partir das
agendas e desejos de presidentes. Por isso deve ser rechaçada sem hesitações e
a AR tem meios para o fazer.
A Lei de Bases em vigor foi
aprovada em 1990 apenas pelo PSD e pelo CDS. Ela, no geral, permitiu garantir
saúde aos portugueses mas, ao longo destes 28 anos, perdeu estabilidade e
tornou-se instrumento crescente do depauperamento e sangria do SNS, a favor dos
chorudos negócios privados com a saúde.
As posições do PR surgem num
contexto que não pode ser ignorado: i) há fortes pressões e chantagens sobre o
SNS - algumas camufladas por problemas que o Governo já devia ter resolvido -
visando dar campo e força ao setor privado; ii) o CDS afirma esse objetivo e o
PSD quer "incentivar o privado"; iii) o presidente, talvez por
inspiração divina surgida no Panamá, já introduziu o chipe da (possível)
segunda legislatura; iv) a Direita e o centrão de interesses clamam contra a
possibilidade (direito e dever) de a atual maioria política, agora ou no
futuro, encetar reformas estruturais.
Passemos ao 10 de Junho.
Estranhou a muitos a nomeação de João Miguel Tavares (JMT) para presidir àquela
Comissão. A estranheza começa a ter substância. JMT fez leituras sobre
condecorados do passado e descobriu (artigo, "Público" 31/01) que o
mais condecorado de todos se chama Marcelino da Mata e é negro. Daí deduz, com
alguns acrescentos patéticos de outrem, que toma como seus, por exemplo, que
Portugal não é um país racista. JMT ignora verdades que o incomodam, ao mesmo
tempo que amplia e manipula factos e mentiras para sustentar os seus propósitos.
Transforma a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo.
Cumpri 40 meses de serviço
militar obrigatório, 26 dos quais na guerra colonial. Ouvi contar façanhas
desse sujeito e de outros do mesmo calibre: alguns dos seus atos configuram-se
como crimes de guerra. De JMT pode esperar-se esta surpresa entusiástica por
aquela figura ter recebido tantas condecorações entre 1966 e 1973, jamais que
estranhe o facto de o militar mais condecorado hoje não ser nenhum dos muitos,
honrados e generosos, Capitães de Abril.
Esta nomeação não lembrava ao
Diabo e coincide com expressões da outra face da Presidência.
* Investigador e professor
universitário
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