Rio, Cabul, Manila, Soweto,
Chicago: “guerra às drogas” foi imposta em toda a parte, apesar de seu notável
fracasso. EUA usam redes de tráfico para golpes e assassinatos. Felizmente,
cresce oposição ao proibicionismo. Vencerá, no Brasil?
Alfred W. McCoy | Outras Palavras | Tradução: Inês
Castilho e Simone Paz
Vivemos num tempo de mudanças, em
que as pessoas questionam velhos pressupostos e buscando novas direções.
Contudo, há no debate atual sobre cuidados de saúde, justiça social e segurança
nas fronteiras uma questão negligenciada que deve estar no topo da agenda de
todos, dos Socialistas Democráticos aos republicanos ultra-liberais: a mais
longa guerra dos Estados Unidos. Não é a feita contra Afeganistão – é a “guerra
às drogas”.
Por mais de um século, os EUA têm
trabalhado por meio da ONU (e sua predecessora, a Liga das Nações) para
construir um duro regime de proibição global às drogas. Ele tem como base leis
draconianas, aplicadas por meio de policiamento generalizado, e resulta em
encarceramento em massa.
Nos últimos cinquenta anos, os EUA também travaram sua
própria “guerra às drogas”, que complicou sua política externa, comprometeu sua
democracia eleitoral e contribuiu para a desigualdade social. Talvez tenha
finalmente chegado a hora de avaliar os danos que tudo isso causou e considerar
alternativas.
Embora eu tenha sinalizado pela
primeira vez, num livro de
1972, que a CIA tentou abafar o
comércio de heroína no Sudeste Asiático, custou a maior parte da minha vida
compreender como os complexos caminhos da guerra às drogas deste país, do
Afeganistão à Colômbia, da fronteira com o México ao centro de Chicago,
moldaram a sociedade norte-americana. No verão passado, o diretor francês
de um documentário me entrevistou durante sete horas sobre a história das
drogas ilícitas. Conforme íamos do século XVII até o presente, e da Ásia até a
América, vi-me tentando responder a pergunta que não quer calar: o que, de
fato, me ensinaram 50 anos de observação, além de alguns fatos aleatórios,
sobre o caráter do tráfico ilícito de drogas?
Num sentido mais amplo, o último
meio século acabou por me ensinar que as drogas não são apenas “tóxicos”; os
traficantes não são apenas “bandidos”, e os usuários não são apenas “viciados”
(isto é, outsiders inconsequentes). As drogas ilícitas são grandes commodities
globais que continuam a influenciar a política dos EUA, nacional e
internacionalmente. E as guerras contra as drogas criam lucrativos submundos
secretos, nos quais essas mesmas substâncias florescem e se tornam ainda mais
lucrativas. A ONU estimou uma
vez que o tráfego transnacional, que fornecia drogas a 4,2% da população adulta
do mundo, era uma indústria de US$ 400 bilhões, o equivalente a 8% do comércio
global.
Por vias que poucos parecem
entender, as drogas ilícitas tiveram uma profunda influência nos Estados Unidos
modernos, moldando sua política internacional, suas eleições nacionais e suas
relações sociais domésticas. No entanto, o sentimento de que as drogas ilícitas
pertencem a um baixo mundo marginalizado tornou a política de drogas dos EUA
algo relacionado apenas à aplicação da lei – não à saúde, à educação ou ao
desenvolvimento urbano.
Durante esse processo de
reflexão, voltei a três conversas que tive lá atrás, em 1971, quando era um
estudante de graduação de 26 anos pesquisando meu primeiro livro,The Politics
of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade (A política da heroína:
cumplicidade da CIA no comércio global de drogas). No decorrer de uma
odisseia de 18 meses em torno do planeta, encontrei três homens, profundamente
envolvidos nas guerras às drogas, cujas palavras eu era então muito jovem para
compreender completamente.
O primeiro é Lucien Conein, um “lendário”
agente da CIA cuja carreira secreta ia de paraquedista no Vietnã do Norte, em
1945, para treinar guerrilheiros comunistas com Ho Chi Minh, até a organização
do golpe da CIA que matou o presidente vietnamita do Sul Ngo Dinh Diem, em
1963. No curso de nossa entrevista, em sua modesta casa perto da sede da CIA em
Langley, Virginia (EUA), ele expôs exatamente como os agentes da CIA, assim
como tantos mafiosos da Córsega, praticavam as “artes clandestinas” de conduzir
operações complexas fora dos limites da sociedade civil, e como essas “artes”
eram, na verdade, o coração e a alma das operações secretas – assim como do
tráfico de drogas.
O segundo é o coronel Roger
Trinquier, cuja
vida no submundo de drogas da França foi desde o comando de
paraquedistas nas montanhas de cultivo de ópio do Vietnã, durante a primeira
guerra da Indochina, no início dos anos 50, até servir como representante do
general Jacques Massu em sua campanha de assassinato e tortura na Batalha de
Argel, em 1957. Durante a entrevista em seu elegante apartamento em Paris,
Trinquier explicou como ajudou a financiar suas próprias operações de
paraquedista por meio do tráfico ilícito de ópio na Indochina. Ao sair daquela
entrevista, senti-me quase esmagado pela aura de onipotência nietzscheana que
Trinquier claramente adquirira em seus muitos anos nesse reino sombrio de
drogas e morte.
Meu último mentor no tema das
drogas foi Tom Tripodi, um agente
secreto que treinou exilados cubanos na Flórida para a invasão da Baía
dos Porcos pela CIA em 1961 e, no final dos anos 1970, infiltrou-se nas redes
mafiosas da Sicília para a Agência de Repressão às Drogas dos EUA. Em 1971, ele
apareceu na frente da porta da minha casa em New Haven , Connecticut,
identificou-se como agente sênior da secretaria de Narcóticos do departamento
do Tesouro e insistiu que a secretaria estava preocupada com o meu futuro
livro. Bastante hesitante, mostrei-lhe apenas algumas páginas de rascunho do
meu manuscrito de A política da heroína (The Politics of
Heroin) e ele prontamente ofereceu-se a me ajudar a torná-lo o mais
preciso possível. Nas visitas seguintes, eu lhe passaria os capítulos e ele se
sentaria numa cadeira de balanço, mangas da camisa arregaçadas, o revólver no
coldre de ombro, rabiscando correções e contando histórias notáveis sobre o
tráfico de drogas. Como aquela, do tempo em que a secretaria descobriu que a
inteligência francesa estava protegendo os cartéis da Córsega que
contrabandeavam heroína para a cidade de Nova York. Muito mais importante,
porém, através dele compreendi como alianças ad hoc entre traficantes
criminosos e a CIA ajudaram a agência e o tráfico de drogas a prosperar,
regularmente.
Olhando pra trás, posso agora ver
como cada um daqueles agentes veteranos descreviam-me um universo político
clandestino, um submundo secreto no qual agentes governamentais, militares e
traficantes de drogas estavam livres dos limites da sociedade civil e
empoderados para formar exércitos secretos, derrubar governos e até mesmo,
talvez, assassinar um presidente estrangeiro.
Em seu núcleo duro, esse submundo
era então, e continua sendo hoje, um reino político invisível habitado por
atores criminosos e praticantes das “artes clandestinas” de Conein. Para dar
uma noção de escala desse meio social, em 1997 as Nações Unidas informaram que
cartéis transnacionais do crime tinham 3,3 milhões de membros, que traficavam
drogas, armas, seres humanos e espécies animais em risco de extinção, em todo o
mundo. Entretanto, durante a Guerra Fria todo os grandes poderes – Grã
Bretanha, França, União Soviética e Estados Unidos – implantaram serviços
clandestinos expandidos no mundo inteiro, tornando as operações secretas uma
faceta central do poder geopolítico. O fim da Guerra Fria não mudou em nada
essa realidade.
Por mais de um século, Estados e
Impérios usaram seus poderes expandidos para campanhas morais de proibição que
transformaram, de tempos em tempos, o álcool, o jogo, o tabaco e, acima de
tudo, as drogas num comércio ilícito que gera dinheiro suficiente para
sustentar esses mundos inferiores secretos.
Drogas e política externa
norte-americana
A influência das drogas ilícitas
na política externa dos EUA esteve evidente, entre 1979 e 2019, no fracasso
abissal de suas infindáveis guerras no Afeganistão. Durante um período de 40
anos, duas intervenções norte-americanas naquele país criaram todas as
condições para esse tipo de submundo secreto. Enquanto mobilizava
fundamentalistas islâmicos para combater a ocupação soviética daquele país, nos
anos 80, a
CIA tolerava o tráfico de ópio por seus aliados mujahedinafegãos, ao mesmo
tempo em que os armava para uma guerra de guerrilha que devastaria o campo,
destruindo a agricultura convencional e o pastoreio.
Na década seguinte ao fim da
intervenção das superpotências, em 1989, uma guerra civil devastadora e o
governo do Talibã aumentaram a dependência do país em relação às drogas,
ampliando a produção de
ópio de 250 toneladas em 1979
a 4.600 toneladas em 1999. Esse aumento dramático
transformou o Afeganistão de um país de economia agrícola diversificada no
primeiro do mundo em monocultura de ópio – isto é, completamente dependente de
drogas ilícitas para exportação, emprego e impostos. Essa dependência ficou
demonstrada em 2000, quando o Talibã baniu o
ópio, numa tentativa de reconhecimento diplomático, e reduziu a produção para
185 toneladas. A economia rural implodiu e seu regime entrou em colapso quando,
em outubro de 2001, caíram as primeiras bombas dos EUA.
Para dizer o mínimo, a invasão e
ocupação dos EUA em 2001-2002 falhou completamente ao lidar com a situação das
drogas no país. De início, para tomar a capital — Kabul, controlada pelos
Talibãs, a CIA mobilizou os líderes da Aliança do Norte, que há muito dominavam o
comércio de drogas no nordeste do Afeganistão, bem como os senhores da guerra pashtuns,ativos
como contrabandistas de drogas, na parte sudeste do país. No processo, criaram
uma política pós-guerra ideal para a expansão do cultivo de ópio.
Embora a produção tenha aumentado
nos três primeiros anos da ocupação dos EUA, Washington permaneceu de olhos
fechados, resistindo a qualquer coisa que pudesse enfraquecer as operações
militares contra os guerrilheiros do Talibã. Testemunha do fracasso desta
política, a Pesquisa do Ópio no Afeganistão da ONU, de 2007, informou que
a colheita naquele ano atingira um recorde de 8,2 mil toneladas, gerando 53% do
produto interno bruto do país e representando 93% do suprimento desta droga do
mundo.
Quando uma única commodity representa
mais da metade da economia de uma nação, todo mundo – funcionários, rebeldes,
comerciantes e traficantes – está direta ou indiretamente implicado. Em 2016, o New
York Times informou que
tanto rebeldes Talibãs quanto funcionários provinciais que se opunham a eles
estavam envolvidos na luta pelo controle do lucrativo tráfico de drogas na
província de Helmand, fonte de quase metade do ópio do país. Um ano depois, a
colheita atingiu um recorde de
9 mil toneladas, o que, de acordo com o comando dos EUA, forneceu 60% dos
recursos necessários ao sustento do Talibã. Desesperados para cortar esse
financiamento, os comandantes norte-americanos enviaram caças
F-22 e B-52 para destruir os laboratórios de heroína da insurgência em Helmand
– causando danos irrelevantes
a um punhado de laboratórios e revelando a impotência, mesmo dos armamentos
mais poderosos, contra o poder social do submundo secreto das drogas.
Com a produção descontrolada de
ópio sustentando a resistência talibã nos últimos 17 anos, e capaz de fazê-lo
por mais 17, a
única estratégia de saída dos EUA parece agora restaurar os rebeldes no poder,
num governo de coalizão – uma política equivalente a admitir a derrota em suas
longas intervenções militares e em sua ainda menos bem sucedida guerra às
drogas.
Os Sumos Sacerdotes da proibição
Na última metade de século, a
sempre mal-sucedida guerra às drogas dos Estados Unidos encontrou um servo
cúmplice nas Nações Unidas, cuja postura duvidosa quando se trata de políticas
sobre drogas, contrasta drasticamente com o seu trabalho auspicioso em questões
como mudança climática e manutenção da paz.
Em 1997, o diretor de Controle de
Drogas das Nações Unidas, Pino Arlacchi, decretou um programa de dez anos de
duração, para erradicar todas as plantações ilícitas de coca e ópio do planeta,
começando pelo Afeganistão. Um década depois, seu sucessor, Antonio Maria
Costa, encobrindo essa derrota, anunciou no Relatório Mundial de Drogas da ONU
de 2007, que “o controle das drogas está funcionando e que o problema mundial
das drogas está sendo reprimido”. Enquanto líderes das Nações Unidas faziam
promessas pomposas sobre a proibição das drogas, a produção mundial do ópio
ilegal cresceu 10 vezes, de 1,2 mil toneladas em 1971 – ano em que começou
oficialmente a guerra estadunidense às drogas – para um recorde de 10,5 mil
toneladas em 2017.
Esse abismo entre uma retórica
triunfal e a triste realidade, pede a gritos uma explicação. O crescimento da
produção do ópio ilícito em 10 vezes é resultado de uma dinâmica de mercado que
eu chamo de “o estímulo da proibição”. Basicamente, a proibição é a
pré-condição necessária para a existência de um comércio global de narcóticos,
gerando tanto senhores das drogas regionais, como cartéis transnacionais que
controlam este vasto comércio. É evidente que a proibição garante a existência
e o conforto desses cartéis criminosos, os quais, para evitar uma interdição,
estão sempre mudando e desenvolvendo suas rotas de contrabando, hierarquias e
mecanismos, estimulando uma proliferação mundial do tráfico e do consumo,
enquanto asseguram que o submundo das drogas continue a crescer.
Procurando proibir drogas
viciantes, os combatentes às drogas dos Estados Unidos e das Nações Unidas agem
como se a mobilização por uma repressão forçada pudesse, de fato, reduzir o
tráfico de drogas, graças a uma suposta inelasticidade ou aos limites da
produção global de narcóticos. Entretanto, na prática, quando a proibição reduz
as produções de ópio de alguma região (Burma ou Tailândia), os preços mundiais
sobem, levando traficantes e produtores a vender seus estoques, antigos
agricultores a plantar mais, e novas áreas (Colômbia) a se iniciar na produção.
Resumindo: tal repressão, geralmente, só faz o consumo crescer. Por exemplo, se
apreensões de drogas fazem os preços na rua aumentarem, os consumidores
viciados irão manter seus hábitos cortando outras despesas (alimentação,
aluguel) ou aumentando sua renda, vendendo drogas a novos usuários, e assim
expandindo o comércio.
Em vez de reduzir o tráfico, na
realidade, a guerra às drogas ajudou a estimular esse crescimento de dez vezes
da produção mundial de ópio e o surto paralelo de usuários de heroína – de
apenas 68 mil, no ano de 1970, para 886 mil, em 2017.
Ao atacar o fornecimento,
evitando sempre enfrentar o consumo, a guerra às drogas dos EUA e das Nações
Unidas, vem procurando uma “solução” que desafia a inabalável lei de oferta e
demanda. O resultado: Washington e sua guerra às drogas foram da derrota ao
desastre, nos últimos 50 anos.
A repressão doméstica às drogas
“ilícitas”
Todavia, esta guerra às drogas
possui um inacreditável poder de permanência. Tem persistido apesar de décadas
de fracassos, devido a uma lógica partidária subjacente. Em 1973, quando o
presidente Richard Nixon ainda combatia as drogas na Turquia e na Tailândia, o
governador republicano de Nova York, Nelson Rockefeller, promulgou as infames
“Leis de Drogas Rockefeller” (Rockefeller Drug Laws), as quais incluíam sanções
obrigatórias – desde 15 anos de cadeia até prisão perpétua, a partir da posse
de apenas pouco mais de 100
gramas de narcóticos.
Enquanto a polícia varria as ruas
do centro da cidade de infratores de menor nível, as sentenças anuais de
prisões em Nova York ,
por crimes relacionados com drogas, passaram de apenas 470, em 1970, para um
pico de 8.500, em 1999. Os negros correspondiam a 90% dos encarcerados. As
prisões estaduais de Nova York passaram a concentrar um número nunca antes
imaginável, de 73 mil pessoas. Nos anos 80, o presidente Ronald Reagan, um
republicano conservador, tirou a poeira da campanha antidrogas de Rockefeller,
aplicando-a de forma interna intensamente, chamando-a de uma “cruzada nacional”
contra as drogas e acrescentando penas federais draconianas para o uso pessoal
das substâncias e o tráfico de pequena escala.
Nos 50 anos anteriores, a
população carcerária dos EUA permaneceu extraordinariamente estável, apenas 110
presos para cada 100 mil pessoas. Porém, a nova guerra às drogas dobrou o
número de presidiários, de 370 mil em 1981, para 713 mil em 1989. Com as leis
antidrogas da era Reagan e a legislação estadual paralela, o número de presos
chegou a 2,3 milhões em 2008, elevando a taxa de encarceramento do país para o
assustador número de 751 prisioneiros em cada 100 mil cidadãos. Vale lembrar:
51% dos que se encontram em penitenciárias federais foram detidos por infrações
ligadas a drogas.
Tal encarceramento em massa levou
também a uma significativa perda
de direitos, dando início a uma tendência que faria com que, em 2012, 6
milhões de pessoas tivessem seu voto negado, incluindo 8% de toda a população
de afro-americanos em idade de votar, um eleitorado que havia se tornado majoritariamente
democrata há mais de meio século. Somado a isso, este regime carcerário
concentrou suas populações prisionais, incluindo guardas e outros trabalhadores
penitenciários, nos distritos rurais conservadores do país, criando algo
semelhante aos recentes “distritos podres” do Partido Republicano.
Por exemplo, consideremos o 21º
Distrito de Nova York,, que abarca a região das Adirondacks e, ao norte, o
enclave entre estados, com uma ampla floresta. O distrito abriga 14 prisões
estaduais, que englobam 16 mil presidiários, 5 mil empregados e 8 mil membros
de suas famílias — fazendo deles, coletivamente, o distrito que mais emprega
gente e a presença política mais decisiva. Acrescentando as 13 mil pessoas
(aproximadamente) das tropas nas proximidades de Fort Drum, temos um sólido
bloco conservador de 26 mil votantes (e 16 mil não-votantes), ou a maior força
política, num distrito onde apenas 240 mil residentes realmente votam. Não é de
surpreender que a congressista republicana em exercício tenha sobrevivido à
onda democrata de 2018, ganhando facilmente, com 56% dos votos. (Por isso,
nunca diga que a guerra às drogas não teve efeito).
Os republicanos de Reagan tiveram
tanto sucesso na concepção dessa política partidária de drogas como um dever
moral, que dois de seus sucessores liberais democratas, Bill Clinton e Barack
Obama, evitaram qualquer tipo de reforma séria da mesma. Em vez de uma mudança
sistêmica, Obama absolveu cerca de 1.700 condenados, um punhado insignificante
entre os milhares de prisioneiros ainda encarcerados por crimes não-violentos,
relacionados a drogas.
Enquanto a paralisia partidária
continua barrando as mudanças no plano federalo, os estados — obrigados a lidar
com os crescentes custos do encarceramento — têm começado lentamente a reduzir
suas populações prisionais. Numa enquete de votação, em novembro de 2018, por
exemplo, a Flórida, onde as eleições presidenciais de 2000 foram decididas por
apenas 537 cédulas, votou a favor da restituição dos direitos eleitorais dos
1,4 milhões de criminosos, que incluem 400 mil afro-americanos. No entanto,
assim que o plebiscito passou, os legisladores republicanos da Flórida tentaram
desesperadamente inverter essa derrota, exigindo que os mesmos criminosos
pagassem suas multas e custos judiciais, antes de ver restituídos seus direitos
eleitorais.
A guerra às drogas não só
influencia as políticas estadunidenses de várias maneiras negativas, mas também
vem reformulando a sociedade americana — e não pra melhor. O papel
surpreendente da distribuição ilícita de drogas no que se refere à organização
da vida, dentro de algumas das maiores cidades do país, veio à tona num
cuidadoso estudo feito por um pesquisador da Universidade de Chicago, que teve
acesso aos registros financeiros de uma quadrilha que atua nos bairros
empobrecidos de moradia popular de Southside, em Chicago. Ele
descobriu que, em 2005, a Black Ganster Discipline Nation (em
tradução livre, “Nação da Disciplina do Gânster Negro”), conhecida como GD,
tinha cerca de 120 chefes, que empregavam 5.300 homens jovens,
predominantemente como traficantes de rua. Ainda reunia outros 20 mil membros
aspirantes a esses cargos. Enquanto o chefe de cada uma das centenas de equipes
da gangue ganhava cerca de 100 mil dólares por ano, seus três oficiais ganhavam
apenas US$7 por hora; seus 50 traficantes de rua, somente US$ 3,30 por hora, e
seus milhares de outros integrantes trabalhavam como aprendizes
não-remunerados, disputando os espaços de estreia cada vez que um traficante de
rua era morto — um destino ao qual um em cada quatro está fadado.
O que isso tudo significa? No
empobrecido centro das cidades, com oportunidades de emprego limitadas, esta
gangue fornecia empregos com alto risco de mortalidade, por uma remuneração
próxima à do salário mínimo (na época, US$5,15 por hora), sendo que, em bairros
mais ricos, seus iguais ganhariam o mesmo, em trabalhos muito mais seguros — no
McDonald’s, por exemplo.
Ademais, com aproximadamente 25
mil membros em
Southside Chicago , o GD proporcionava estrutura social para
os jovens na instável faixa de idade entre os 16 e os 30 anos. Minimizava a
violência casual, os pequenos delitos, e ajudava Chicago a manter o seu brilho
de centro de negócios de classe mundial. Enquanto não existirem educação e
empregos suficientes nas cidades, o mercado de drogas ilegal continuará a
preencher as lacunas, com trabalhos que envolvem um alto custo de violência,
adição, encarceramento e mais vidas arruinadas de modo geral.
O fim da proibição das drogas
Enquanto o esforço global pela
proibição entra em seu segundo século, testemunhamos duas tendências opostas. A
própria ideia de um regime de proibição alcançou um crescendo de violência, não
apenas no Afeganistão mas também, mais recentemente, no Sudeste da Ásia. Isso
demonstrou o fracasso da estratégia de guerra e repressão às drogas. Em 2003, o
primeiro ministro da Tailândia, Thaksin Shinawatra, lançou uma campanha contra
o abuso de metanfetaminas que levou a polícia a praticar 2,275
assassinatos extrajudiciais em apenas três meses. Levando esta lógica
coercitiva a suas últimas instâncias, Rodrigo Duterte ordenou, em seu primeiro
dia como presidente das Filipinas, um ataque contra o tráfico de drogas que
desde então provocou 1,3 milhão de detenções de comerciantes e usuários, 86 mil
prisões e cerca de20,000
corpos atirados às ruas das cidades em todo o país. Ainda assim, o uso
de drogas segue profundamente enraizado nas favelas de Bangkok e Manila
No outro lado da balança, o
movimento de redução de danos, liderado por médicos e ativistas da comunidade
está trabalhando lentamente, em todo o mundo, para desafiar o regime
proibicionista. Com um plebiscito, em 1996, os eleitores da Califórnia,
por exemplo, iniciaram uma trilha, legalizando as vendas de marijuana médica.
Em 2018, Oklahoma tornava-se
o 30º estado norte-americano a fazê-lo. Após iniciativas de Colorado e
Washington em 2012, oito outros estados já descriminalizaram o uso recreativo
da droga, a mais difundida de todas as substâncias “ilícitas”.
Atingido por uma disparada no
abuso de heroína, nos anos 1980, o governo de Portugal primeiro reagiu com
repressão — a qual, com em qualquer parte do planeta, foi incapaz de estancar o
processo, tanto crime quanto disseminação do consumo. Aos poucos, uma rede de
médicos em todo o país adotou medidas de redução de riscos que resultaram num
êxito avassalador e comprovados. Depois de duas décadas de tentativas, Portugal
descriminalizou, em 2001,
a posse de todas as drogas ilegais, substituindo o
encarceramento pelo aconselhamento e alcançando uma queda sustentada nas
infecções por HIV e hepatite.
Projetando esta experiência no
futuro, parece provável que medidas de redução de danos serão adotadas pouco a
pouco, nacional ou localmente, em todo o planeta, enquanto diversas guerras
contra as drogas, infinitas e sem êxito, serão interrompidas ou abandonadas.
Talvez algum dia, uma cúpula de legisladores do Partido Republicano dos EUA, em
alguma sala de conferências revestida de carvalho, em Washington, e uma renca
de burocratas da ONU, em seu quartel-general envidraçado em Viena, serão os
únicos apóstolos rezando o desacreditado mantra da proibição às drogas.
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