sexta-feira, 19 de julho de 2019

Portugal | A mulher tem alma?


A doutora Bonifácio, o cabo Adolfo e o general Arriaga. Cristãos, arianos e derrotados. O racismo, o colonialismo e o nazismo e a questão da superioridade de um povo eleito. Querelas velhas como os tempos. Falamos de venenos velhos.

Carlos de Matos Gomes* | Jornal Tornado | opinião

A dúvida sobre quem pertence ou não pertence à cristandade é antiga e complexa, mete sexo e cor de pele e até intervenções rituais na cabeça do prepúcio.

Pelo que lemos recentemente de uma doutora da cristandade, a questão da pertença aos eleitos é ainda inconclusiva. Com razão. Nem o cabo Adolfo com as suas duas obras-primas, o Mein Kampf e o Holocausto, a resolveu apesar da II Guerra Mundial no século XX! No início do século XXI temos a reedição bonifaciana.

A referência mais antiga que conheço à questão da mulher na cristandade – e não sou historiador, nem escrevo no Público, nem sou mulher, é a do Concílio de Macon, na Gália, em 585. Num trecho da História dos Francos, S. Gregório de Tours descreve que os sábios cristãos discutiram se a mulher podia chamar-se homem e assim ter alma, ou se não, e não estava incluída na cristandade. Por poucos votos de diferença ganhou a tese de que a mulher tinha alma e podia integrar a cristandade, isto há 1.500 anos! Bonifácio, insigne mestre, nada melhor encontra no seu intelecto do que repetir a dúvida de Shakespeare: Ser ou não ser! Parece que Bonifácio não esteve no dito concílio para negar a cristandade às mulheres.


Sobre o “Penso, logo existo” é que, quanto às teses bonifacianas, devemos cogitar. Bonifácio existe. É a única certeza.  Quanto às teses são do mais requentado, do género: Obrigado meu Deus por me teres feito sair branco e crente num Deus que fez o mundo numa semana!

Aqui em Portugal, nos anos 50, um general de fraco êxito militar em campanha, mas de grande fama intelectual, desenvolveu variações à tese agora recuperada pela velha beguina Bonifácio, em lições de estratégia para altos comandos. Escreveu: à medida que descemos de Norte para Sul as raças degradam-se. Escurecem e afastam-se da humanidade. Um loiro nórdico é mais inteligente que um latino e este mais, muito mais do que um negro nas florestas equatoriais. Chamava-se Kaulza de Arriaga. Quanto ao texto de Bonifácio nada de novo, nem quanto ao cabo Adolfo, nem quanto ao general Arriaga. Boas companhias. Ambos, Adolfo e Arriaga derrotados. Bonifácio anda com gente de qualidade! Um orgulho da cristandade.

Quanto a escravos, uma categoria para a qual os africanos de várias partes do continente dito negro contribuíram com um grosso contingente, já São Paulo, um cristão certificadíssimo, escrevia nas várias cartas que enviou a futuros convertidos da bacia do Mediterrâneo:

Todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Porque todos os que fostes batizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo. Não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre; não há macho, nem fêmea. Porque todos vós sois um em Jesus Cristo (Gal. III, 26, 28). Não há diferença de gentio e de judeu, de circuncisão e de prepúcio, de bárbaro e de seita, de servo e de livre; mas Cristo é tudo e em todos (Coloss. II, 11). Porque no mesmo espírito fomos batizados todos nós, para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus, ou gentios ou servos, ou livres e todos temos bebido em um mesmo Espírito (I Cor, XII, 13).”

Isto há 2000 anos! E ainda há dúvidas se os africanos, tais como as mulheres pertencem à cristandade. T’arrenego São Paulo! dirá Bonifácio.

Também a questão da pertença dos ciganos à cristandade que a todos nos une é antiga e está estudada, cigano é uma corruptela de egípcio, terra de onde surgiu Moisés das águas para anos mais tarde receber os Mandamentos do Deus da Bíblia, o Jeová que sem culpa formada tem uma multidão de testemunhas. Gente da nossa, branca, que fala inglês e come batatas fritas e exclama oh my God! em momentos inesperados, dirá a cristã Bonifácio.

Ter origens egípcias é um bom atestado de origem, julgo, contrariando a senhora que se assumiu como certificadora da pureza da raça e da civilização. Parece que a língua dos ciganos pertence ao grupo indo-ariana, tal como a nossa. Embora eles nos tratem por gadjós e nós a eles por lelos. Em desabono da cristandade cigana, ou romani, surgiu a lenda de terem sido eles, os ciganos, a fabricar os pregos com que Cristo foi pregado na cruz. Motivo mais do que suficiente para os excluir do nosso cristão convívio, dir-se-ia a quem lê a história pela rama, como Bonifácio. Acontece que convivemos sem qualquer reparo da doutora Bonifácio com os judeus, os que mataram Cristo, utilizando os legionários romanos como carrascos.

Enfim, sabendo um pouco de História – bastam umas meras curiosidades, daquelas que servem para perguntas de cultura geral nos concursos de televisão – a devota Bonifácio evitava exibições de preconceito, que é sempre um anexo da pesporrência.

Se doutores antigos, alguns canonizados, não concordarem com a actual doutora Bonifácio ela terá sempre à mão um motorista de táxi, um motociclista dos Hell Angels, uns neonazis de cabeça rapada, uns cristãos de barrete e lençol do Ku Klux Klan para lhe abonar a teoria!

O que me parece fora de razão é ir discutir com um delegado do Procurador da República, ou com um juiz de Direito estes assuntos de mulheres com ou sem alma, de ciganos que se dão mal com sapos e de africanos que do Magreb à cidade do Cabo têm entre si tantas ou mais diferenças que uma doutora Bonifácio de uma Madame Curie, por exemplo.

A cristandade agradece que o lixo seja tratado como tal. Não crucifiquem as ratas, nem queimem as baratas.

*Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

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