A doutora Bonifácio, o cabo
Adolfo e o general Arriaga. Cristãos, arianos e derrotados. O racismo, o
colonialismo e o nazismo e a questão da superioridade de um povo eleito.
Querelas velhas como os tempos. Falamos de venenos velhos.
Carlos de Matos
Gomes* | Jornal Tornado | opinião
A dúvida sobre quem pertence ou
não pertence à cristandade é antiga e complexa, mete sexo e cor de pele e até
intervenções rituais na cabeça do prepúcio.
Pelo que lemos recentemente de
uma doutora da cristandade, a questão da pertença aos eleitos é ainda inconclusiva.
Com razão. Nem o cabo Adolfo com as suas duas obras-primas, o Mein Kampf e
o Holocausto, a resolveu apesar da II Guerra Mundial no século XX! No início do
século XXI temos a reedição bonifaciana.
A referência mais antiga que
conheço à questão da mulher na cristandade – e não sou historiador, nem escrevo
no Público, nem sou mulher, é a do Concílio de Macon, na Gália, em 585. Num
trecho da História dos Francos, S. Gregório de Tours descreve que os sábios
cristãos discutiram se a mulher podia chamar-se homem e assim ter alma, ou se
não, e não estava incluída na cristandade. Por poucos votos de diferença ganhou
a tese de que a mulher tinha alma e podia integrar a cristandade, isto há 1.500
anos! Bonifácio, insigne mestre, nada melhor encontra no seu intelecto do que
repetir a dúvida de Shakespeare: Ser ou não ser! Parece que Bonifácio não
esteve no dito concílio para negar a cristandade às mulheres.
Sobre o “Penso, logo existo” é
que, quanto às teses bonifacianas, devemos cogitar. Bonifácio existe. É a única
certeza. Quanto às teses são do mais requentado, do género: Obrigado meu
Deus por me teres feito sair branco e crente num Deus que fez o mundo numa
semana!
Aqui em Portugal, nos anos 50, um
general de fraco êxito militar em campanha, mas de grande fama intelectual,
desenvolveu variações à tese agora recuperada pela velha beguina Bonifácio, em
lições de estratégia para altos comandos. Escreveu: à medida que descemos de
Norte para Sul as raças degradam-se. Escurecem e afastam-se da humanidade. Um loiro
nórdico é mais inteligente que um latino e este mais, muito mais do que um
negro nas florestas equatoriais. Chamava-se Kaulza de Arriaga. Quanto ao texto
de Bonifácio nada de novo, nem quanto ao cabo Adolfo, nem quanto ao general
Arriaga. Boas companhias. Ambos, Adolfo e Arriaga derrotados. Bonifácio anda
com gente de qualidade! Um orgulho da cristandade.
Quanto a escravos, uma categoria
para a qual os africanos de várias partes do continente dito negro contribuíram
com um grosso contingente, já São Paulo, um cristão certificadíssimo, escrevia
nas várias cartas que enviou a futuros convertidos da bacia do Mediterrâneo:
Todos sois filhos de Deus pela fé
em Jesus Cristo. Porque todos os que fostes batizados em Cristo,
revestistes-vos de Cristo. Não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre;
não há macho, nem fêmea. Porque todos vós sois um em Jesus Cristo (Gal. III,
26, 28). Não há diferença de gentio e de judeu, de circuncisão e de prepúcio,
de bárbaro e de seita, de servo e de livre; mas Cristo é tudo e em todos
(Coloss. II, 11). Porque no mesmo espírito fomos batizados todos nós, para
sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus, ou gentios ou servos, ou livres e
todos temos bebido em um mesmo Espírito (I Cor, XII, 13).”
Isto há 2000 anos! E ainda há
dúvidas se os africanos, tais como as mulheres pertencem à cristandade.
T’arrenego São Paulo! dirá Bonifácio.
Também a questão da pertença dos
ciganos à cristandade que a todos nos une é antiga e está estudada, cigano é
uma corruptela de egípcio, terra de onde surgiu Moisés das águas para anos mais
tarde receber os Mandamentos do Deus da Bíblia, o Jeová que sem culpa formada
tem uma multidão de testemunhas. Gente da nossa, branca, que fala inglês e come
batatas fritas e exclama oh my God! em momentos inesperados, dirá a cristã
Bonifácio.
Ter origens egípcias é um bom
atestado de origem, julgo, contrariando a senhora que se assumiu como
certificadora da pureza da raça e da civilização. Parece que a língua dos
ciganos pertence ao grupo indo-ariana, tal como a nossa. Embora eles nos tratem
por gadjós e nós a eles por lelos. Em desabono da cristandade
cigana, ou romani, surgiu a lenda de terem sido eles, os ciganos, a fabricar os
pregos com que Cristo foi pregado na cruz. Motivo mais do que suficiente para
os excluir do nosso cristão convívio, dir-se-ia a quem lê a história pela rama,
como Bonifácio. Acontece que convivemos sem qualquer reparo da doutora
Bonifácio com os judeus, os que mataram Cristo, utilizando os legionários
romanos como carrascos.
Enfim, sabendo um pouco de
História – bastam umas meras curiosidades, daquelas que servem para perguntas
de cultura geral nos concursos de televisão – a devota Bonifácio evitava
exibições de preconceito, que é sempre um anexo da pesporrência.
Se doutores antigos, alguns canonizados,
não concordarem com a actual doutora Bonifácio ela terá sempre à mão um
motorista de táxi, um motociclista dos Hell Angels, uns neonazis de cabeça
rapada, uns cristãos de barrete e lençol do Ku Klux Klan para lhe
abonar a teoria!
O que me parece fora de razão é
ir discutir com um delegado do Procurador da República, ou com um juiz de
Direito estes assuntos de mulheres com ou sem alma, de ciganos que se dão mal
com sapos e de africanos que do Magreb à cidade do Cabo têm entre si tantas ou
mais diferenças que uma doutora Bonifácio de uma Madame Curie, por exemplo.
A cristandade agradece que o lixo
seja tratado como tal. Não crucifiquem as ratas, nem queimem as baratas.
*Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
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