Dataprev e Serpro, estratégicas
no armazenamento de informações sobre os brasileiros, estão na mira das
privatizações. Pressão por lucro enfraquecerá mecanismos de controle e
facilitará mercantilização da nossa privacidade
Fabiana Oliveira, no Lavits | Outras Palavras
Em agosto, o governo federal –
sob o comando de Jair Bolsonaro (PSL) – anunciou um vasto pacote de
privatizações de empresas públicas, dentre as quais estão a Empresa de
Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev) e o Serviço Federal de
Processamento de Dados (Serpro). As duas
são lucrativas – em 2018, a
Dataprev faturou cerca de R$ 1,26 bilhão e o Serpro R$ 3,2 bilhões – e acima de
tudo estratégicas para o Brasil, já que concentram dados de toda a população,
sobre consumo, renda, saúde, nascimento e óbito, por exemplo. Em um contexto em
que a máxima que diz que “dados são o novo petróleo” se torna cada vez mais
popular, o que o país ganha ao entregar essas informações nas mãos da
iniciativa privada?
Conversamos sobre o assunto com
alguns especialistas contrários à iniciativa. Eles apontam prejuízos que as
privatizações tratariam para a nação e para os indivíduos. Para Deivi Kuhn,
analista de sistemas do Serpro e ex-secretário-executivo do Comitê Técnico de
Implementação do Software Livre (CISL), uma questão importante a ser discutida
diz respeito à alteração do objetivo central destas empresas. Se são públicas,
elas devem responder, por definição, aos interesses coletivos da população e há
instrumentos de controle e transparência para que isso seja garantido. Se são
privadas, ao contrário, a principal motivação se torna a obtenção de lucro e
processos importantes podem ser realizados em segredo. Com mecanismos de
controle mais frágeis e maior pressão financeira, o risco de monetização dos
dados cresce.
O analista acredita que a
admissão de servidores públicos, feita por concurso, também fortalece o
interesse público como objetivo central de uma empresa. “A lógica de atuação do
setor privado é diferente. Uma empresa pode estar trabalhando com dados dos
seus clientes e as pessoas podem sequer ficar sabendo disso. Isso é impossível
em uma empresa pública”, afirma. Kuhn defende que o governo deve manter
empresas de Tecnologia da Informação (TI) públicas porque as informações
processadas por estas organizações são fundamentais para a soberania do país.
“Tem papéis de gestão de tecnologia que são considerados hoje a parte mais
estratégica de qualquer tipo de organização”, analisa.
Para Mario Teza, que já foi
membro do Comitê Gestor da Internet (CGI.br)
e ex-presidente da Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre
(PROCEMPA), o país não teria ganhos com estas alterações, sejam eles econômicos
ou políticos. Muito pelo contrário, perderia ainda em capacidade técnica. “Pela
história brasileira, as empresas públicas de TI são executoras, mas também
participaram das formulações sobre as regulamentações do segmento. Se as
empresas públicas deixam de existir, o país não perde só duas empresas
estratégicas na execução da estrutura pública de TI, nós perdemos também um
trabalho de assessoria aos governos, sejam eles quais forem”, destaca.
As duas empresas que estão na
mira da privatização empregam 12.500 funcionários e estão sendo estimadas em
seis bilhões. Ambas reúnem dados de milhões de brasileiros. A Dataprev, por
exemplo, processa o pagamento mensal de cerca de 34,5 milhões de benefícios
previdenciários e é responsável pela aplicação on-line que faz a liberação de
seguro-desemprego. A empresa também processa as informações previdenciárias da
Receita Federal do Brasil e responde pelas funcionalidades dos programas que
rodam nas estações de trabalho da maior rede de atendimento público do país,
somadas as Agências da Previdência Social aos postos do Sistema Nacional do
Emprego (Sine), de acordo com os dados oficiais.
Dada a magnitude, a possibilidade
de privatização do organismo desenha um cenário de grandes impactos sociais.
Para Teza, qualquer eventual problema com a empresa, que poderia ocorrer, por
exemplo, na troca de administração, seria catastrófico para a economia
nacional. “Nós temos um conjunto gigante de municípios brasileiros que são
dependentes da chegada do dinheiro do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) do mês. Então, algum problema na Dataprev teria um grande impacto na
economia. Como são milhões que são distribuídos, é algo muito grande. Sempre
houve muito cuidado, ao longos dos anos, para que qualquer acontecimento governamental
não afetasse isso. Eu diria que este é um grande risco”.
Com o Serpro não é diferente.
Criado em 1964, trata-se da maior empresa pública de prestação de serviços em
Tecnologia da Informação do Brasil, que possui quatro mil sistemas de
informação, incluindo Cadastro de Pessoas Físicas (CPFs), Cadastro Nacional de
Pessoas Jurídicas (CNPJs), operações de comércio exterior, cadastro de veículos
e declarações de imposto de renda, entre outros. O Serpro reúne informações de
Imposto de Renda de mais de 38 milhões de brasileiros, além de informações
bancárias de milhares de empresas.
Diante de dados literalmente tão
valiosos, há muitos interesses em disputa nessas possíveis privatizações. “Não
é à toa que quando a gente teve aquele escândalo do
Edward Snowden, de vazamentos de informação, a espionagem contra o Brasil foi
em cima dos ativos mais importantes dos governos, né? Invadiram a Petrobras e o
Ministério de Minas e Energia (MME) para descobrirem informações sobre petróleo
e minérios, para atuar economicamente a partir disso. Isso é sobre a soberania
do país e a proteção das pessoas que estão aqui dentro”, afirma Kuhn.
O escândalo mencionado pelo
servidor foi revelado em 2013. Em junho daquele ano, Edward Snowden,
ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA),
revelou que o país norte-americano espionava dados telefônicos e de internet no
mundo todo. Em seguida, novos documentos demonstraram que o Brasil era o país
mais monitorado da América Latina, sendo que a Petrobras, o MME e a própria
presidenta, Dilma Rousseff (PT), foram alvos de espionagem.
Proteção de dados pessoais
Outra preocupação que tem sido
levantada por pesquisadores e ativistas diz respeito aos dados pessoais dos
cidadãos brasileiros. Para Kuhn, o governo federal age de maneira irresponsável
ao se propor a colocar os dados de milhões de pessoas nas mãos da iniciativa
privada. “Informação é poder. As informações são ao mesmo tempo importantes
para a soberania e muito suscetíveis ao poder das empresas. Tem muitos
interesses colocados neste processo. As grandes empresas que financiam esse
tipo de governo e esse tipo de pensamento estão atuando ativamente para que essas
privatizações aconteçam”, afirma.
Teza compartilha o receio e o
conecta à expansão do capitalismo de vigilância. “Os grandes players da
internet vivem de publicidade e essa publicidade é baseada no perfil dos
usuários. Ter acesso à bases governamentais com informações extremamente
relevantes e atualíssimas das pessoas e da economia brasileira vale ouro”,
analisa.
Flávia Lefèvre, advogada
especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais,
integrante da Coalizão
Direitos na Rede e representante do 3º Setor no CGI.br, afirma que é
absurda e antiestratégica a proposta de privatizar as duas empresas. Contudo,
se isso vier a acontecer, é preciso que as organizações estejam atentas para que
elas cumpram as legislações que protegem os dados dos cidadãos.
“Estamos falando de dados
estratégicos do Brasil inteiro, né? São empresas públicas federais. Seria um
absurdo essas privatizações acontecessem, mas se acontecerem elas deverão
respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD),
como qualquer outra empresa. Elas já estão sujeitas a respeitar garantias de
privacidade e de intimidade, que já estão previstas na legislação, como o Marco
Civil da Internet, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Acesso à
Informação. Todas estas leis já trazem previsões expressas com relação aos
dados e limites para sua utilização”, explica a advogada.
Entretanto, embora a LGPD
apresente dispositivos que abordam empresas públicas e privadas, o contexto
político é preocupante e coloca em cheque as garantias estabelecidas. “Nesse
cenário, que garantias a gente tem? Onde ficarão armazenados esses dados? Como
será garantido que o interesse público das atividades dessas empresas será
mantido? É muito complicado pensar em privatizar duas empresas públicas que
reúnem uma quantidade tão grande de dados pessoais e de informações sensíveis”,
questiona.
Neste contexto, Lefèvre considera
que a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), prevista na
LGPD, é imprescindível na luta pela proteção das pessoas. A Lei que sanciona a
criação do órgão foi publicada, com vetos, em julho deste ano. “A criação da
ANPD é urgente, pois falta menos de um ano para que a LGPD entre em vigor e a
lei prevê a necessidade de regulamentação de diversos aspectos que são
fundamentais para que os novos direitos estabelecidos tenham eficácia. Numa
economia em que o uso dados é cada vez mais central e que, portanto, os riscos
de violações à privacidade, à intimidade e de ocorrência de discriminações com
abrangência massiva são reais, a existência de um órgão regulador e
fiscalizador é fundamental”, comenta.
“Não podemos esquecer também da
importância do Conselho Multissetorial previsto na LGPD, com a atribuição de
definir diretrizes estratégicas que vão pautar a atuação da ANPD. A
multiplicidade de temas e setores que são envolvidos pelas atividades de
tratamento de dados impõe uma visão multidisciplinar e plural, de modo a que as
éticas próprias de cada setor – saúde, educação, agricultura etc – possam estar
contempladas e orientem a regulamentação da lei”, encerra.
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