segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O império atingiu os seus limites

Daniel Vaz de Carvalho

O problema económico fundamental sem cujo estudo é impossível compreender alguma coisa quando se trata de emitir uma opinião sobre a política atual:   o problema económico do imperialismo.
V.I. Lenine, O imperialismo fase superior do capitalismo (Prólogo)

1 - Do arco de Kursk à Bielorússia

Entre o designado "arco de Kursk" em 1943 na URSS e a Bielorrússia atual há evidentes semelhanças estratégicas: ambas se tornaram como que enclaves rodeados de forças hostis, pelo que o próximo ataque se desencadearia naqueles salientes. À URSS só restava uma alternativa: vencer essa batalha. Mesmo um "empate", as forças acabarem nas posições iniciais ou próximo disso, equivalia a que as vitórias até ali obtidas (Moscovo, Estalinegrado) seriam postas em causa.

Na Europa
a "guerra fria" intensifica-se na Bielorrússia, um país cercado por países ligados à NATO, com políticas fascizantes ou assumidamente fascistas, aos quais é concedido o título de democracias, pontas de lança da estratégia contra a Rússia. Líderes das hordas nazis locais ao serviço das SS, agora são celebrados como patriotas. Nos países Bálticos a libertação da ocupação nazi pelo Exército Vermelho é tratada como "invasão pela Rússia em 1944".

Há alguns meses Mike Pompeo visitou estes países e também a Bielorrússia. Aqui foi-lhe dito pelo Presidente desejar manter boas relações com os EUA, mas que não alteraria as relações com a Rússia dado os tratados e relações económicas que mantinha com esse país. O império não aceita posições deste tipo, como se comprovou com Iakanovitch (Ucrânia). Os seus princípios são: ou estás por nós ou contra nós. A Bielorrússia ia assim ser palco da próxima "revolução colorida", facilitada com as concessões feitas aos EUA, os 34 projetos de ONG existentes no país, a infiltração da CIA nos serviços secretos bielorrussos.

A contestação das eleições ganhas por Lukashenco – 80% dos votos – serviu de base para desencadear uma série de manifestações, apropriadas pelos países da NATO para uma "mudança de regime". É o habitual quando as eleições não dão o resultado desejado pelo império. Sem dúvida que os 80% são dificilmente credíveis, porém não foram apresentadas provas de fraude e ainda menos de que a oposição teria ganho as eleições. Algo que os políticos e os media do sistema se dispensam. Entretanto foi promovida uma "presidente" que segue o guião dado a Guaidó para a Venezuela.

Por dentro dos acontecimentos na Bielorrússia estão forças de cariz fascista, mantidas por fundos estrangeiros com o objetivo de integrar o país no quadro da NATO. O facto da oposição ter dito que deseja relações equilibradas tanto com o "ocidente" como com a Rússia, é apenas uma fase de transição. Para a Bielorrússia as perspetivas não seriam muito diferentes das da Ucrânia, um país dividido, entregue ao desvario de fascistas e corruptos, base para ataques à Rússia. Embora aparentemente dividida quanto à via a seguir, é isto que a UE promove propondo para o prémio Sakarov a "oposição bielorrussa".

A Rússia não pode permitir-se perder o último aliado na Europa, que de caminho se tornaria uma base hostil. Uma vitória do império através de outra "revolução colorida" representaria uma derrota da Rússia colocando o seu território muito mais vulnerável militarmente e não só.

A "guerra fria" na Bielorrússia prossegue. A Rússia conseguiu suster o ataque não parecendo disposta a ceder. Porém, esta espécie de "empate" está longe de ser uma vitória. Uma vitória seria a integração na Rússia como republica federada, em que a situação estratégica se tornaria nitidamente favorável à Rússia.

Kursk representou uma derrota decisiva para a coligação nazifascista, muitos milhões iriam ainda até a besta fascista ser aniquilada. Uma derrota do imperialismo na Bielorrússia não irá terminar a política de guerra contra a Rússia, o que só acontecerá com o desmembramento e total submissão deste país (o caminho encetado pelos "democratas" de Ieltsin e "perestroikos") ou com o fim do imperialismo.

2 - Fragilidades do império

As teses da "decadência" têm servido de esteio ao fascismo. Por exemplo, "O declínio do Ocidente" de Oswald Spengler serviu a ideologia nazifascista. Tratam-se de análises subjetivas face a "valores" assumidos à priori como os válidos, enraizados na defesa do colonialismo e imperialismo e na superioridade rácica ou do "ocidente cristão". Estes "valores" opunham-se aos direitos humanos dos povos considerados "atrasados" e ao "comunismo ateu e apátrida" que lutava pela libertação e igualdade de direitos de todas as nações e seres humanos.

As teses da "decadência" levam ao conformismo e à crença nos "homens providenciais" para a resolução dos problemas. Como se sabe, o marxismo aponta o caminho da luta consistente e organizada das massas populares em torno de projetos de progresso social. Luta que será tanto mais favorável quanto as fragilidades e contradições do imperialismo forem entendidas e devidamente levadas à sua superação.

Uma análise consistente deve portanto centrar-se na forma como a sociedade objetivamente se estrutura e nas suas capacidades e fragilidades económicas, financeiras, sociais e militares.

Em termos económicos o imperialismo adotou nesta fase as teses de Hayek, um grão mestre da confraria reacionária, para o qual "a política assumiu um lugar demasiado dispendioso e nocivo, absorvendo demasiados recursos materiais" (Droit, Legislation et Liberté, parte 3, PUF 2013). A isto David Rockfeller, um dos fundadores da Comissão Trilateral e do Grupo de Bildelberg, dizia que o mundo dos negócios "parece-me ser a entidade lógica para tomar o lugar dos governos". ( Newsweek International, 1/2/1999) [1]

Estas teses visaram a privatização tanto do económico como do social, a expansão global da finança e das transnacionais: a globalização.

A globalização pretendia ser a infraestrutura económica de suporte ao império: falhou mesmo antes da pandemia. Professores universitários e jornalistas, escutados como pitonisas, faziam tábua rasa das evidências teóricas e das realidades, garantindo que entregues aos "mercados" e ao livre comércio globalizado, os países pobres iriam sair da pobreza e nos países ricos se elevaria o nível de vida proporcionando acesso a bens mais baratos.

O resultado foi, mesmo nos países do imperialismo, mais desigualdades e pobreza, endividamento, aumento dos défices das BC, enriquecimento sem limites das oligarquias nacionais e transnacionais.

Com o grande capital praticamente sem controlo, as crises económicas e financeiras tornaram-se endémicas, o capital fictício da especulação domina a economia: mesmo com a produção real estagnada ou em recessão a finança aumenta as cotações bolsistas.

A fragilidade económica dos EUA torna-se evidente quer no seu endividamento quer no défice da BC, que atinge 831 mil milhões de dólares, grande parte resultante de transnacionais dos EUA. A dívida federal dos EUA passou de 800 milhões de dólares em 1990, para 19,7 milhões de milhões em 2016 e 26,8 milhões de milhões de dólares em setembro de 2020, 136,7% do PIB. Incluindo as dívidas dos Estados e locais, sobe aos 30 milhões de milhões, 153,67% do PIB. [2] A dívida externa é de 127,6 % do PIB. Em comparação, a Rússia tem uma dívida federal de 19,54% e divida externa de 55,9% do PIB. Quanto à China 50,4% e 15,97% do PIB, respetivamente. [3]

Esta situação, aliada à reduzida poupança interna, cria uma elevada pressão sobre o dólar, uma das principais armas do imperialismo. O seu papel como principal moeda de reserva mundial, está muito fragilizado dado que, em consequência da agressividade imperialista, a China e a Rússia lideram o movimento de desdolarização das trocas internacionais, suportando o valor das suas moedas com enormes reservas de ouro e capacidade produtiva.

A estas insuperáveis contradições alia-se uma situação social cada vez mais degradada. A produtividade , como o New York Times salientou , aumentou 77% desde 1973, mas o pagamento por hora cresceu apenas 12%. Se o salário mínimo federal fosse vinculado à produtividade, seria superior a 20 dólares e não 7,25 dólares. O património líquido médio de uma família de classe média é mais de 40 000 dólares inferior do que era em 2007. O património líquido das famílias negras caiu 40%, o das famílias latinas 46%.

Mais de 28 milhões de pessoas não têm seguro de saúde. Com o aumento do desemprego muitas outras perderão o seu seguro de saúde. O domínio oligárquico da indústria farmacêutica e dos serviços de saúde nos EUA resultou numa crise humanitária , evidenciada pela atual pandemia. Os gastos em saúde nos EUA totalizavam em 2019, quase 18% do PIB, embora a expectativa de vida tivesse caído para o 33º lugar a nível mundial. Estudos médicos consideram que cerca de 30% da população apresenta sintomas de transtorno de ansiedade ou transtorno depressivo, tendo a taxa de morte por suicídio aumentado 30% de 2000 para 2016.

No país que pretende ditar ordens ao mundo inteiro e como os povos devem viver, cerca de 25% da sua população não consegue comprar comida suficiente para se manter saudável. [4] Os apregoados "benefícios da privatização" no ensino, conduziram a uma dívida estudantil de 1,7 milhões de milhões de dólares, com 2,5 milhões de universitários entregando-se a formas de prostituição.

Mais de 400 mil pessoas nos EUA vivem em condições de escravidão moderna . "Muitas são escravizadas através das drogas e marcadas com tatuagens, como uma mercadoria que pertence ao seu explorador. Em San Diego, o tráfico sexual gera lucros ilícitos de 810 milhões de dólares ao ano; é a segunda atividade criminosa com mais lucros depois do tráfico de drogas. Por ano morrem nos EUA cerca de 60 mil pessoas devido ao consumo de drogas, centenas de milhares vivem pelas ruas.

Em 2019, a polícia matou quase mil cidadãos. O país encontra-se profundamente dividido, palco de constantes manifestações. A incapacidade de resolver os problemas económicos, financeiros e sociais só tem paralelo com a sua arrogância. Mas também as suas fragilidades militares são evidentes.

A China e a Rússia dispõem atualmente de mísseis, concebidos especialmente para ataque a porta-aviões, que não dispõem de defesas adequadas. Além disto, a China está a atualizar o seu arsenal nuclear estratégico para uma força modernizada com mais de 1 000 armas nucleares, incluindo mais de 100 mísseis balísticos intercontinentais DF-41 móveis, cada um armado com 10-12 ogivas nucleares, capazes de atingir os Estados Unidos. O lançamento de mísseis DF-41, quando combinado com os novos mísseis balísticos lançados por submarino JL-3 e bombardeiros estratégicos H-20 com armas nucleares, está em vias de dar à China uma capacidade nuclear que rivaliza com os EUA e a Rússia. [5]

A Rússia ultrapassou os EUA em capacidades defensivas e ofensivas [6] estando em testes o sistema de misseis de cruzeiro Buresvestnik movidos a energia nuclear com alcance e tempo de espera quase ilimitado, permitindo ataques em locais em direções inesperadas.

Perante o cerco militar que lhe é movido, a Rússia definiu diretivas de dissuasão para o uso de armas nucleares em resposta a ataques não nucleares visando infraestruturas militares e áreas estrategicamente críticas.

O orçamento de defesa dos EUA atingiu 750 mil milhões de dólares em 2020 (42% do total mundial), considerando todos os gastos com as 800 bases militares destinados a intimidar a Rússia, China e outros, as despesas serão da ordem de 1 milhão de milhões de dólares. [7]

3 - O império nos seus limites

O império encontra-se perante contradições insuperáveis. O poder militar, a propaganda, os agentes conspirativos, para manter a atual guerra fria e os cenários de guerra real, acarretam custos cujas consequências são um dólar sem suporte económico e financeiro. Note-se que despesas militares são capital improdutivo. Os países anexados ao dólar, pagam as guerras do império com estagnação, crises e custos acrescidos dos seus financiamentos.

Os EUA esgotam-se em guerras intermináveis que não conseguem vencer. Desde 2001 as suas guerras custaram mais de 5,2 milhões de milhões de dólares ( Information Clearing House ). No Iraque, Parlamento e governo exigem a retirada das tropas EUA. No Afeganistão, Síria, Cuba, Venezuela, Hong-Kong, Somália, Iémen, etc causam sofrimento, mas não conseguem vencer.

As políticas agressivas contra o Irão falham. As sanções promoveram o desenvolvimento interno e o aumento das ligações com a China que investe massivamente no país. Nem a Rússia nem a China podem aceitar, por razões estratégicas, a instalação em Teerão de um poder hostil.

Com fragilidades idênticas às dos EUA, o principal aliado do império, a UE, é uma consumada mentira escondida atrás dos "mercados" e de organismos ditos "independentes" ao serviço da oligarquia, sob benévolos lemas de democracia, crescimento, solidariedade, quando tudo isto se encontra rarefeito. As sanções imperialistas contra a Rússia, as guerras no Médio Oriente, o caos na Líbia e em parte da África, apenas resultam em prejuízos económicos e políticos.

Vários aliados dos EUA afastam-se e procuram relacionamentos diferentes. É o caso da Turquia, do Paquistão, das Filipinas, entre outros.

Mais de 400 bases dos EUA cercam a China. O uso da força militar contra Pequim, faz parte da política dos EUA, mas uma campanha militar dos EUA contra a China no Mar do Sul da China não tem qualquer hipótese de ter êxito. As falácias do secretário de Estado Pompeo, não são apoiadas com poder real, não têm sentido . Desde 1945 que os EUA não são capazes de ganhar em termos convencionais nenhuma guerra (excetuando as invasões de Granada e do Panamá...).

Os EUA não mostram a sensatez do imperador Adriano (117-138) que compreendeu que o império tinha atingido o limite das suas capacidades de expansão, persistem na ilusão de poder dominar o mundo, não aceitando que a sua ação seja limitada por tratados e instituições internacionais ou interesses próprios dos outros países. Definem como sua zona de interesses e de segurança o mundo inteiro, obviamente colocando-os em conflito com os interesses e a segurança de outros povos. A estabilidade e uma política de confiança a nível global é assim impossível.

As ingerências, a formação de agentes de "mudança de regime", contribui para a instabilidade, visam ter argumentos para intervenções armadas por "razões humanitárias". Onde quer que tenham acontecido, estes procedimentos causaram milhões de mortes, criaram o caos e forçaram no mínimo 37 milhões de pessoas a fugir das suas terras .

Embora a política de confronto e provocações com a Rússia, China, Irão, Cuba, Venezuela, etc, seja sobretudo para consumo interno da "comunidade internacional" (NATO e aliados) tal não é menos perigoso: "estes ataques são necessários para transformar as sociedades humanas em rebanhos de animais selvagens". "Isto é a reprodução flagrante da experiência nazi". [8]

Trata-se de criar um clima favorável à agressão em opiniões públicas desinformadas, manipuladas e já em parte arrastadas para a extrema-direita. O clima de fricção em várias zonas, a criação de incidentes no Mar Negro e no Mar do Sul da China, pode degenerar em conflitos alargados. Recordemos que a 2ª Guerra Mundial se iniciou com uma mentira: uma suposta agressão da Polónia à Alemanha.

A China possui centenas de armas nucleares, a Rússia e os EUA milhares. Os EUA entraram numa fase de pós-hegemonia à medida que a China e a Rússia constroem com outros países uma ordem mundial que não depende do dólar. Sem o poder do dólar, a manutenção do império é impossível. Moribundo o império torna-se ainda mais perigoso, especialmente com armas nucleares.

Uma catástrofe não pode deixar de se colocar no horizonte. Compete a todos evita-la. A tragédia é que os políticos e os media dos sistema trabalham para que os cidadãos disto não tomem consciência.

29/Setembro/2020

Notas
[1] A era do Estado Empresa, Pierre Musso, Le Monde Diplomatique, , abril/2019
[2] www.usdebtclock.org/#
[3] www.usdebtclock.org/world-debt-clock.html
[4] The Richest Country's Empty Plates. 50 Million Hungry Americans , Larry Romanoff
[5] The US is militarily & economically impotent, Scott Ritter, www.informationclearinghouse.info/55361.html
[6] A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (2ª Parte), resistir.info/v_carvalho/martyanov_resenha_2.html
[7] Marcha para a morte nos EUA , Chris Hedges
[8] Dimitris Konstantakopoulos, reseauinternational.net/...

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