Inês Cardoso* | Jornal de Notícias | opinião
Durante uma semana, ouvimos declarações insistentes de que desta vez teríamos um estado de emergência suave e preventivo. De repente, à meia-noite de um sábado, o primeiro-ministro anuncia ao país medidas duríssimas. Desde o início da pandemia usou-se a metáfora da guerra, que justifica um estado excecional e um recolher obrigatório de longo alcance, inédito na nossa democracia. Definitivamente, assumiu-se que este problema se resolve à bruta.
A curva de doentes e de internamentos sobe de forma imparável, as equipas de saúde pública não conseguem controlar cadeias de transmissão, há evidência de comportamentos inadequados. O cenário é assustador e ninguém de bom senso, sobretudo depois de olhar para as tentativas e erros por toda a Europa, ousará considerar que há soluções milagrosas. Por mais que tentemos desatar o nó das respostas certas, só sai silêncio (ou um rol de dúvidas ruidosas).
Mas nem a urgência, a gravidade e a falta de experiência perante algo diferente de tudo a que estamos habituados justifica uma atuação tão cheia de curvas na tomada de decisões. O Parlamento votou o novo estado de emergência, já dividido, tendo por base uma promessa de suavidade e ação preventiva. Os deputados, como os portugueses, têm razões para se sentir enganados.
A comunicação dos pressupostos para o horário de recolher obrigatório dá igualmente que pensar. Não poderia o gráfico das causas de infeção, em que se mostra a fatia de 68% atribuída a convívio familiar, ter já sido usado de forma pedagógica e preventiva? E quantos destes casos são de facto atribuíveis a convívios alargados, ou decorrem da simples coabitação, em que é quase inevitável o contágio - a menos que se pretenda matar definitivamente os afetos?
As restrições em causa são tão pesadas que é exigível mais transparência no que se pretende atingir. Uma mobilização realmente preventiva ajudaria a montante, onde é preciso conter a transmissão. Medidas de guerra dividem sempre, por mais que andemos adormecidos e a aceitar que os fins justificam todos os meios. Os xerifes que esta pandemia despertou em muitos cidadãos estão a adorar esta demonstração de força.
*Diretora-adjunta