domingo, 22 de dezembro de 2024

A História Contada pelos Derrotados -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A História é contada pelos vencedores em todo o planeta menos em Angola, onde a coligação mais agressiva e reaccionária que alguma vez de formou na Terra, conta as suas derrotas como se fosse a grande vencedora. Mais difícil ainda, nas operações de falsificação colaboram activamente as elites angolanas alimentadas e pagas pelos verdadeiros vencedores. Entre 1975 e 2002 o Povo Angolano, sob a bandeira do MPLA, enfrentou vitoriosamente exércitos estrangeiros, na Guerra pela Soberania Nacional e Integridade Territorial. Os derrotados puseram a circular que se tratou de uma guerra civil! E assim nem ganharam nem perderam, antes pelo contrário.

Hoje, dia 22 de Dezembro, devia ser feriado no mundo. Porque em Nova Iorque, no ano de 1988, o regime racista de Pretória assinou a capitulação com o nome de “acordo global de paz”. Vencedores: Angola e Cuba. Nesse dia acabou a guerra de agressão contra Angola. Acabou a ocupação da Namíbia. Acabou um regime que tinha como política de Estado o racismo. Por muito que os vencidos queiram esconder, racismo é um crime hediondo. Hoje dia 22 de Dezembro devia ser o Dia da Libertação da Humanidade, que aconteceu há 36 anos com a capitulação do regime de apartheid na África do Sul e seus mentores. Mas não é, porque os vencidos impuseram a mentira da “guerra civil em Angola”.~

A capitulação chama-se “acordo global de paz”. Se tivesse existido em Angola uma guerra civil o documento era assinado pela UNITA e o Governo de Angola. À mesa estiveram sentados representantes de Angola, Cuba (os vendedores) e África do Sul, derrotada. Jonas Savimbi foi escondido no Gabão. Abílio Kamalata Numa ficou a ouvir relatos dos jogos do Sporting Clube de Portugal. Gato e outros sicários do Galo Negro ficaram a tratar da kamanga e a contar o dinheiro roubado ao Povo Angolano. Que fazer da UNITA? José Eduardo dos Santos, na sua infinita generosidade, deu-lhe a mão em Bicesse. Um líder que fez tudo pela reconciliação nacional, resgatando do lixo os ajudantes do regime racista de Pretória!

Os derrotados na Casa dos Brancos, Lisboa, Bruxelas, Berlim, Londres e Paris meteram na cabeça de Savimbi que a retirada das forças cubanas de Angola lhe permitia tomar o poder pela força. Esconderam mais de 20.000 homens e as suas melhores armas em bases secretas no Cuando Cubango. Os restos do apartheid e a Casa dos Brancos asseguraram a logística. Foi assim que o Povo Angolano teve de enfrentar uma rebelião armada contra o regime democrático acabado de nascer. A aventura criminosa acabou no Lucusse, em 22 de Fevereiro de 2002, graças a uma operação policial com o apoio das Forças Armadas Angolanas.

Enfrentar bandidos armados disparando contra a democracia é guerra civil? Nunca! Derrotar as tropas de Pretória no solo sagrado da Pátria Angolana é guerra civil? Jamais! Os historiadores angolanos ignoraram esta realidade. E ainda ignoraram apesar do Presidente José Eduardo dos Santos ter pedido que a Guerra pela Soberania Nacional e Integridade Territorial fosse contada com todos os pormenores às gerações mais jovens em Angola e no mundo. 

O Presidente da República pediu aos Media angolanos que desenterrassem do esquecimento os acontecimentos no Triângulo do Tumpo (Batalha do Cuito Cuanavale). Eu fui lá muitas vezes escavar nos Pântanos e nas colinas. Ouvi oficiais, sargentos e soldados que participaram na guerra. Contei tudo. Dizem que sou mercenário e soltaram-me os cães do Lungo e do Miala. O meu camarada “50” (Paulino Damião) fotografou os restos das máquinas de guerra dos sul-africanos e o cemitério onde os invasores enterraram à pressa os seus mortos. 

Hoje dia 22 de Dezembro de 2024 faz 36 anos que o regime racista de Pretória assinou o “acordo global de paz” em Nova Iorque. A capitulação. Angola triunfou. Hoje, dia 22 de Dezembro de 2024 o Jornal de Angola nem uma palavra sobre este acontecimento que marcante da História Universal. O noticiário da TPA das 13 horas nem uma imagem. E ainda estão vivos alguns protagonistas que estiveram sentados na mesa de negociações. Um país em morte cultural, política e social ante a indiferença geral!

Leiam o que publiquei há 14 anos no Jornal de Angola, sobre o dia 22 de Dezembro de 1988, em Nova Iorque, sede da ONU. Factos, só os factos:

“No dia 22 de Dezembro de 1988, Angola, Cuba e África do Sul assinaram o “acordo global de paz” em Nova Iorque. Foi o culminar de uma longa e complexa actividade diplomática que passou por Londres, Cidade do Cabo, Cairo e Brazzaville. Para chegar ao fim do caminho foi preciso enfrentar as forças invasoras sul-africanas em batalhas épicas que levaram à libertação de Mandela, à independência da Namíbia e por fim a derrocada do regime de apartheid.

O acordo de paz em Nova Iorque só foi possível porque as FAPLA, depois da derrota em Mavinga, conseguiram recuperar, quando o inimigo pensava que estava sem capacidade de reacção. No dia 1 de Outubro de 1987 a 47ª Brigada conseguiu sair da margem do rio Lomba. Todas as unidades no terreno concentraram-se na linha constituída pelos rios Chambinga, Hube, Mianei e Vimpulo. Tomaram posições defensivas e as tropas do “apartheid”, desde então, nunca mais conseguiram progredir.

No dia 14 de Outubro de 1987, as Brigadas 16ª, 25ª e 59ª, parte da 47ª e dois grupos tácticos chegaram ao rio Chambinga. Este movimento tem um significado: Fracasso da Operação Moduler. Os últimos ataques foram efectuados nos dias 25 e 26 de Novembro de 1987. Pela primeira vez o inimigo atacou o Triângulo do Tumpo. Teve que recuar. O alto comando sul-africano lançou de imediato a Operação Hooper.

As tropas invasoras lançaram o segundo ataque ao triângulo do Tumpo no dia 29 de Fevereiro de 1988, em plena Operação Hooper. As FAPLA resistiram heroicamente. As minas não convencionais da Engenharia Militar causam estragos irremediáveis aos blindados Ratel e Oliphant. Muitos ficaram fora de combate porque se enterraram nos pântanos.

Os sul-africanos falharam em toda a linha. O alto comando decidiu então lançar a Operação Packer. Era preciso retirar em boa ordem, empacotar todo o material lançado no terreno. Já nada havia para fazer. O último fôlego dos invasores derrotados foi um derradeiro ataque ao Triângulo do Tumpo, no dia 23 de Março de 1988 (Batalha do Cuito Cuanavale). As tropas sul-africanas só não foram perseguidas porque o terreno estava todo minado e os oficiais do comando não arriscaram baixas humanas e perda de material com as suas próprias minas.

Pretória recebeu da ONU um ultimato para retirar as suas tropas até 10 de Dezembro de 1987. Não cumpriu, pelo contrário, desdobrou ainda mais tropas no terreno. Chester Crocker, no seu livro “High Moon in Southern Africa” faz uma referência a essa decisão das Nações Unidas: “Esta resolução da ONU, aprovada por unanimidade, a 25 de Novembro de 1987, condenava a intervenção em Angola e apelava à retirada das SADF, a 10 de Dezembro. Pik Botha rejeitou a resolução. Em 5 de Dezembro, o chefe de Estado-Maior, Geldenhuys, anunciou que as suas forças haviam completado a sua tarefa e começaram a retirada táctica sob condições operacionais, ou seja, uma retirada lenta que podia ser interrompida por combates”.

Mentiras com Cobertura

Pelo livro de Helmoed-Roemer Heitman, “War in Angola – The Final South African Phase” (Página 169) sabemos que o general Liebenberg teve este desabafo: “Ao não tomarmos o Cuito Cuanavale, tivemos de fazer como o cão e meter o rabo entre as pernas”. E os sul-africanos também tiveram que manter a invasão militar para além do dia 10 de Dezembro. Não existia qualquer retirada táctica, pelo contrário. 

A Operação Hooper começou depois da data limite imposta pela ONU. Mas as mentiras de Pretória tinham a cobertura de Washington e das grandes potências ocidentais, que apesar do embargo ao regime racista, mantinham estreitas relações por baixo da mesa. Todos esperavam o colapso do Governo Angolano.

Chester Crocker faz a seguinte leitura à situação em finais de 1987: “Existia o caos económico em Angola, devido à queda dos preços do petróleo. Mas militarmente as FAPLA estavam firmes nas frentes de batalha”. Este comentário do antigo Secretário de Estado é completado com esta posição lúcida: “Savimbi estava entalado entre a sua dependência da África do Sul e a superioridade convencional das FAPLA”. Por isso, “José Eduardo dos Santos recusou negociar com Savimbi mas reforçou o Programa de Perdão e Clemência”. Crocker resume assim a situação em Outubro de 1987, quando foi lançada a Operação Moduler: “A África do Sul está mais fraca e a região mais forte, ao lado de Angola”.  

Triângulo do Tumpo

A fixação dos generais sul-africanos no Triângulo do Tumpo e na vila do Cuito Cuanavale só se justifica com a determinação de conquistarem um “troféu” que depois ia ser exibido como mais uma vitória de Savimbi e seus generais. Mike Muller, comandante do 61º Batalhão Mecanizado, depois de se aproximar das chanas enlameadas banhadas por vários rios que em Novembro transbordam tornando o terreno intransitável, viu no alto da colina a vila do Cuito Cuanavale, preciosa por ter uma base aérea que foi utilizada peãs tropas portuguesas durante a guerra colonial.

Perante o que via, disse aquela célebre frase: “Se eu tomo o Tumpo vou direito ao Cuito”. Mas o general Pântano e as FAPLA não lhe permitiram avançar. E quando contou as perdas, limitou-se a dizer: “O Tumpo foi uma má experiência”. Tão má que nos pântanos das margens dos rios Ndala, Cuito e Tumpo começou a desmoronar-se o regime racista de Pretória. 

Fim do Apartheid

Na frente diplomática o ano de 1987 foi muito importante e abriu o caminho à assinatura do acordo global de paz, em Nova Iorque, no dia 22 de Dezembro de 1988. Depois de muitos meses de ausência, Angola regressou à mesa das negociações com os EUA. O regresso foi marcado por mais um ataque fortíssimo do Presidente José Eduardo dos Santos: Na agenda foi colocado, em primeiro lugar, o fim do apartheid!

No terreno, as FAPLA marchavam sobre Mavinga. Em Lusaka, na cimeira regional, o Presidente José Eduardo dos Santos anunciou que Angola ia propor um Acordo Quadro Global com a África do Sul, Cuba e a SWAPO, sob a égide da ONU. As grandes potências ficavam de fora. 

No Triângulo do Tumpo as forças de Pretória foram derrotadas e nas margens pantanosas dos rios da região ficou enterrado o apartheid. Daí ao Acordo de Nova Iorque foi um pequeno passo. O edifício da paz estava concluído. 

No seu livro, Chester Crocker, apesar de glorificar Savimbi e a UNITA, foi forçado a reconhecer que “Dada a ausência de orientação estratégica em relação aos níveis políticos de topo, era importante que o chefe do Estado-Maior General das SADF, Jannie Geldenhuys e os seus colegas militares evitassem o desastre em Angola durante o primeiro semestre de 1988”. Não foram capazes.

A Acta da Derrota

Em 23 de Março de 1988 os sul-africanos foram definitivamente derrotados no Triângulo do Tumpo. “Empacotaram” o material de guerra e finalmente abandonaram Angola. Deixaram para trás Savimbi e seus generais aturdidos, sem saberem que fazer sem a asa protectora dos racistas de Pretória.

No dia 28 de Agosto de 1988, o chefe dos racistas, PW Botha, reuniu com Pik Botha, ministro dos negócios estrangeiros, Magnus Malan, ministro da Defesa, o general Jannie Geldenhuys e outros generais que comandaram a invasão de Angola. O presidente foi duro e acusou todos os presentes de o terem enganado. 

Um engano que o ia obrigar a aceitar a independência da Namíbia. Forçou todos a assinarem uma acta onde declaravam a sua responsabilidade na derrota no Triângulo do Tumpo. PW Botha deu ordens a Barnard, chefe dos serviços secretos, também presente na reunião, para ir imediatamente libertar Nelson Mandela e iniciar conversações para tentar salvar o que fosse possível do regime em decomposição.

O Difícil Caminho

Terminados os combates no dia 234 de Março de 1988, no dia 3 de Maio, em Londres, teve lugar a primeira reunião quadripartida com as delegações de Angola, Cuba, África do Sul e EUA. No dia 13 de Maio nova reunião, na Cidade do Cabo. No dia 25 de Junho, no Cairo, teve lugar a quarta ronda. No dia 23 de Setembro de 1988, o Presidente José Eduardo dos Santos teve um encontro com o Secretário-geral da ONU, Perez de Cuellar.

De 26 a 29 de Setembro de 1988, em Brazzaville, teve lugar uma reunião com as delegações de Angola, África do Sul e EUA. No dia 13 de Dezembro de 1988, também em Brazzaville, Angola, Cuba e África do Sul fazem nova reunião. Finalmente, no dia 22 de Dezembro de 1988, em Nova Iorque, Angola, Cuba e África do Sul assinam o acordo global de paz. Em nenhuma reunião esteve presente a UNITA. Apenas estavam os chefes do apartheid, já em reciclagem para a democracia e desejosos que ninguém lhes fizesse lembrar as desastrosas operações realizadas para mostrar ao mundo as “grandes vitórias” de Savimbi. 

Arquitecto da Paz

O texto do acordo foi entregue ao Arquitecto da Paz, Presidente José Eduardo dos Santos, por Afonso Van-Dúnem (Mbinda), durante a cerimónia de apresentação de cumprimentos de fim de ano. Estavam presentes todos os integrantes da delegação angolana: Afonso Van-Dúnem (Mbinda), Manuel Alexandre Rodrigues (Kito), António França (Ndalu), Francisco Paiva (Nvunda), Pitra Neto, José Maria, Mário Cirilo de Sá (Ita) e Gilberto Veríssimo.

Num discurso histórico, naquele final do ano de 1988, o Presidente José Eduardo dos Santos, em poucas palavras disse tudo: “Não foi fácil chegar ao momento em que nos encontramos. O Povo Angolano teve de enfrentar a guerra em duas direcções simultaneamente. A guerra regular contra o exército da África do Sul racista e a guerra subversiva dos seus fantoches da UNITA. Resistimos às agressões de grande envergadura de 1981 e 1983, no Cunene, de 1985 e 1987 no Cuando Cubango. Nos últimos meses de 1987 e nos primeiros de 1988 tiveram lugar as memoráveis batalhas do Cuito Cuanavale, Tchipa, Calueque e Ruacaná”.

Sobre a Batalha do Cuito Cuanavale, afirmou o Presidente da República no seu discurso do fim do ano de 1988: “Cuito Cuanavale foi a maior batalha militar efectuada até aqui, no continente africano ao sul do Sahara. Foi vencida brilhantemente pelas FAPLA, que resistiram a mais de 60 dias de cerco. Foi o símbolo da determinação do nosso povo de vencer ou morrer pela defesa da Pátria”. 

No seu discurso, o Presidente José Eduardo dos Santos não esqueceu os nossos parceiros: “A consolidação desta posição e os êxitos militares seguintes obtidos em Calueque e Ruacaná, com a ajuda internacionalista de Cuba, mudaram o rumo dos acontecimentos na África Austral e conduziram as partes envolvidas à negociação e assinatura dos acordos que me foram entregues”.

* Jornalista

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