quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

O debate dos brasões esconde o quê?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

De um lado temos aqueles que recusam chamar fascismo ao período do Estado Novo salazarista, falam do período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 com desprezo e facciosismo, tentam abrir casas-museu Salazar em Santa Comba Dão, chamam traidores aos que emigraram para fugir à guerra ou procuram fazer de um militar de pele negra, Marcelino da Mata, que combateu do lado português na Guerra Colonial (eles preferem dizer Guerra do Ultramar), um exemplo de como, afinal, era capaz de fazer sentido a ideia da propaganda salazarista de um "Portugal uno e indivisível do Minho a Timor".

Do outro lado temos aqueles que são antifascistas e anticolonialistas, mas acham que os símbolos do fascismo têm de desaparecer do espaço público, inviabilizam museus sobre os Descobrimentos por o nome ter uma conotação eurocêntrica, olham para os abusos e contradições do PREC com condescendência acrítica, erigem ao estatuto de herói todos os refratários da Guerra do Ultramar (eles preferem dizer Guerra Colonial), olham com indiferença os que deram anos de vida no serviço militar obrigatório desse tempo, não se interessam pela história militar dessa guerra e têm vergonha de Portugal ter, um dia, dito ao mundo que havia mais mundo para conhecer.

Os primeiros tentaram acabar com o museu no Forte de Peniche, para que a memória das prisões políticas e das torturas que Salazar autorizava, organizava e orientava fosse esquecida, em particular a que envolveu a militância do PCP, durante algumas décadas a única força efetiva de oposição ao regime. Falharam, felizmente.

Os segundos são agora acusados de quererem apagar uma, ao que parece, glória da propaganda do Estado Novo: um trabalho de jardinagem de 1961 que ilustra, na Praça do Império, em frente aos Jerónimos, com brasões dos distritos de Portugal e de cada uma das colónias da época, a extensão em tempos idos daquilo que o poder achava ser a grandeza da pátria. Vamos ver se falham.

Acho mesmo que a memória do fascismo ou da colonização portuguesa não fica nem prejudicada nem beneficiada com a existência ou o desaparecimento da obra do jardineiro que teve a ideia de fazer aquilo. Por mim, podem arrancar tudo ou, se acham que a jardinagem deve ficar, tratem então de a manter com bom aspeto.

O que perturba é a irracionalidade consciente com que estes temas são discutidos.

Os que têm interesse político em branquear o fascismo português ou pretendem esconder a luta oposicionista e anticolonialista não perdem uma oportunidade para, num passe de mágica retórica, passar quem criou uma estrutura para legitimar a repressão, a opressão, a perseguição, a tortura, a censura, a prisão política, a subjugação violenta de povos inteiros para o papel de vítima de uma discriminação cultural e ideológica.

O que pretendem com tal pantominice, encenada em drama cultural, é manipular a opinião pública, glorificar valores reacionários e aumentar o descrédito do atual regime.

Os que têm interesse político em apagar todos os vestígios do fascismo e do colonialismo do espaço público português ou que acham heroico pintar a vermelho a palavra "descoloniza" na péssima estátua do Padre António Vieira, posta no Largo da Misericórdia em Lisboa, são, simplesmente, burros.

Por um lado, só irritam e desconsideram os que ainda cá andam e viveram esses tempos do fascismo e do colonialismo, muitas vezes do lado opositor, do lado da resistência e até do lado do combate pela independência dos países africanos, mas que sentem estarem também em risco de desaparecer do mapa da memória, arrastados numa torrente de água de lavagem da história.

Por outro lado, se conseguirem apagar todos os traços de fascismo e de colonialismo do espaço público, as pessoas não se esquecerão apenas das coisas boas desses tempos (como, sei lá, o tal arranjo floral dos brasões, tão bonito que ele é...), esquecerão também as coisas más - e isso é um ótimo caminho para sentimentos fascistas e colonialistas terem ainda maior facilidade em regressar, das brumas da memória, para os sombrios dias de hoje.

*Jornalista

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