sexta-feira, 21 de abril de 2023

Angola | A QUEDA DE UM MITO -- Artur Queiroz

O Dia em que Cabinda Perdeu o Estatuto de Distrito 

Artur Queiroz*, Luanda                                                            MEMÓRIA 6    

Farsa do Protectorado Teve como Último Acto um Decreto de Norton de Matos

A fraqueza da monarquia portuguesa despertou a cobiça das suas colónias por parte das potências da época. A Grã-Bretanha fez “estragos” consideráveis no património colonial dos portugueses. Mas em Angola, os grandes problemas eram causados pela Bélgica a Norte e Nordeste e a Alemanha no Sul. Os belgas criaram o Estado Independente do Congo (hoje República Democrática do Congo, Ruanda e Burundi) e os alemães ocupavam o Sudoeste Africano (Damaralândia), território dos hereros, que originariamente ia desde o Namibe até Whindoek. Queriam alargar a sua colónia até ao rio Cunene!

A voracidade de Bruxelas levou à mutilação de vastas áreas a Norte de Angola, de tal forma que Cabinda ficou reduzida a um enclave, quando antes estava ligada ao resto da colónia. Mais tarde, em1927, os belgas ainda ficaram com mais três quilómetros quadrados, ocupando um vale na região de Mia, na confluência dos rios Mpozo e Duizi. Esta parcela permitiu construir o Caminho-de-Ferro de Matadi, com funestas consequências para o comércio transfronteiriço. Cabinda já era um enclave, assediado por franceses e belgas, que espreitavam a melhor oportunidade para ocupar todo o território.

Portugal apresentou-se na Conferência de Berlim, “forçada” pela Alemanha imperial, numa situação de país pedinte, quase pária internacional, ainda mal refeito do Ultimato Inglês, que levou à perda do Mapa Cor-de-Rosa, entre Angola e Moçambique. Mas já antes os portugueses, por arbitragem do rei Leopoldo II da Bélgica, tinham perdido o Barotze, território que era parte integrante de Angola.

Para atenuar a sua debilidade económica e militar, Portugal compareceu na Conferência de Berlim com “tratados de protectorado”, nos quais sobas e reis declaravam ser vassalos dda coroa portuguesa. Há dezenas desses tratados. Mas só o de Simulambuco fez história e ainda faz. Esses tratados eram truques, golpes baixos, ao nível do pior do colonialismo. Foi com esse expediente que os portugueses “aguentaram” as suas colónias em África, com mais ou menos mutilações. Cabinda é um exemplo claro de mutilação territorial.

Em 1887, Cabinda e todos os territórios entre os rios Zaire, Loge e Cuango, passam a fazer parte do Congo Português, uma réplica do Congo Belga que tinha o nome pomposo de Estado Independente do Congo.

Do tratado de Simulambuco só interessa falar como curiosidade histórica. Não é tratado e de nada vale. Os acontecimentos que se seguiram à sua assinatura são prova gritante dessa realidade. Os portugueses nessa época faziam autênticos números de contorcionismo político e diplomático para “segurarem” as suas colónias, na Conferência de Berlim. Apesar de tudo, o resultado final foi muito melhor do que eles esperavam.

Apenas os territórios do Leste de Angola ficaram numa espécie de “limbo”. Nem Portugal nem a Bélgica conseguiram soberania sobre eles. Os europeus deram-se ao luxo de considerar esses territórios “terra de ninguém”. Mas eles eram habitados e faziam parte do Império de Muata Iânvua (Muatiânvua). Antes de entrarmos no “protectorado” de Cabinda, vale a pena lançar um olhar sobre o Leste.

Henrique de Carvalho

Um oficial do Exército Português, Henrique de Carvalho, em 1884 organizou uma expedição à Mussumba do Muata Iânvua. Deixou uma obra monumental sobre a cultura, a língua a organização social e política dos lunda-tchokwe. É um dos maiores antropólogos do mundo. Paralelamente foi um compulsivo criador de “protectorados” para Portugal esgrimir esses truques na Conferência de Berlim. 

O major Henrique de Carvalho partiu de Malange em direcção à cidadela real de Muata Iânvua, que na época estava a ser contestado por numerosos sobas “protegidos” pela Bélgica. O primeiro tratado de protectorado foi assinado pelo rei Xa Muteba. Um êxito retumbante, porque também ele contestava a autoridade de Muata Iânvua. Foi um trunfo importante para as negociações com o grande senhor da Lunda.

Até chegar ao destino, Henrique de Carvalho ainda assinou tratados de protectorado sendo os mais importantes com os reis Caungula, Muata Chissengue, também conhecido por Muachissengue e Mucanza Samaliamba. Por fim assinou o tratado de protectorado co o rei dos reis. O antropólogo teve mais força que o militar e assentou arraiais na corte de Muata Iânvua para fazer estudos científicos. Muitas terras exploradas e ocupadas por ele foram consideradas “de ninguém” na Conferência de Berlim.

Distrito da Lunda

Após a Conferência de Berlim, Henrique de Carvalho continuou na Mussumba de Muata Iânvua. Fez os seus estudos científicos e ao mesmo tempo ocupou militarmente a região “protegida”. Em 1895, ignorando todos os protectorados, Portugal criou a 13 de Julho o Distrito da Lunda, com capital em Capenda Camulemba. Começou a efectivar-se a ocupação colonial. 

Em 1905 foi criado o posto de Caungula. Em 1907, nasceu o posto de Camaxilo e em 1912 o de Mona Quimbundo. Em plena I Guerra Mundial o Distrito da Lunda foi transformado em Distrito Militar com capital em Saurimo. Henrique de Carvalho foi o fundador e primeiro governador da Lunda.

Ninguém mais ouviu falar de protectorados. Um a um, foram todos extintos, à saída da I Guerra Mundial. Portugal entrou no conflito para “segurar” as suas colónias. Mandou para França um numeroso contingente militar, verdadeiramente carne para canhão. Os portugueses bateram-se heroicamente contra os alemães e mereceram os louros de potência vencedora. Por isso, o presidente do governo português, Afonso Costa, sentou-se à mesa do palácio de Versalhes no momento da assinatura do armistício. 

Portugal conseguiu segurar as colónias e fixar, definitivamente, a fronteira do Sul de Angola, face à derrota da Alemanha, que perdeu a Damaralândia. O território “protegido” de Cabinda acabou em 1920.

Decreto de Norton de Matos

Portugal aliviou definitivamente a pressão das grandes potências sobre as suas colónias de África em 1918, quando a Alemanha perdeu a guerra. Os protectorados do Norte, Leste e Sul de Angola foram extintos ou simplesmente ignorados. É o caso de Cabinda. Sem a mínima contestação ou reivindicação, o alto-comissário de Angola, general Norton de Matos, assinou o Decreto 31 de 1920 que “altera a divisão administrativa da província de Angola”. 

Eis a nova divisão em distritos: Loanda, sede em Loanda, Benguela, sede em Benguela, Congo, sede em Maquela do Zombo, Cuanza-Norte, sede em Dala Tando, Malange, sede em Malange, Cuanza-Sul, sede provisória em Novo Redondo (Sumbe), Mossâmedes, sede em Mossâmedes (Namibe), Huíla, sede na Vila de Sá da Bandeira (Lubango), Lunda, sede na Vila Henrique de Carvalho (Saurimo), Moxico, sede no Moxico (ainda não existia Vila Luso ou Luena, que nasceu com o comboio) e Cubango, com sede no Cuito Cuanavale.

Cabinda desapareceu como distrito. Passou a ser uma mera circunscrição do Distrito do Congo, com o mesmo nível de Maquela do Zombo, Cazengo, Malange, Novo Redondo, Benguela, Bié, Bailundo, Lobito, Moxico, mais tarde Vila Luso e depois Luena, Mossâmedes (Namibe) e Lubango. 

Os que falam em protectorado e exigem um “estatuto especial” ou mesmo a independência que apresentem um só documento a exigir de Portugal o cumprimento do “tratado” de Simulambuco. Um simples abaixo-assinado que seja. Pelo contrário, os habitantes de Cabinda aceitaram sem a menor contestação a nova divisão administrativa. Porque nesta época o enclave estava nas mãos da poderosa Companhia de Cabinda, propriedade do não menos poderoso Banco Nacional Ultramarino que era na época o banco emissor dos angolares e das makutas.

Todos em Cabinda eram empregados da companhia monopolista, até o administrador da circunscrição. Norton de Matos, para dar alguma dignidade à autoridade administrativa, que afinal representava o Estado e não os interesses privados, promulgou um decreto em que lhe fixava um estatuto remuneratório especial. Mas todos estavam sob domínio do monopólio da madeira, café e cacau.

O decreto de 1920 criou os postos administrativos de Cabinda, Lândana, Buco Zau, Massabi, Lela, Cuto, Belize e Miconge.

O Tratado de Loanda

Em 1927, Portugal e a Bélgica assinam em Luanda o tratado que fixou definitivamente as fronteiras de Angola. No extremo Norte, Portugal cedeu o vale da região de Mia, com três quilómetros quadrados, amputando ainda mais o território além rio Zaire. Mas em contrapartida ficou com todas as terras consideradas “de ninguém” na Conferência de Berlim mas que a Bélgica rapidamente anexou ao Estado Independente do Congo.

Para se chegar à assinatura do “Tratado de Loanda”, foram necessários anos de negociações. Por fim a Bélgica trocou o pequeno vale na confluência dos rios Mpozo e Duizi por 3.500 quilómetros no Leste. É a chamada “Bota do Dilolo” que inclui o saliente do Cazombo.

O almirante Gago Coutinho, um cientista de renome e que presidia à Comissão de Cartografia, fez estudos científicos na região e trabalhou na delimitação da fronteira. Ele queria que a nascente do rio Zambeze ficasse em território angolano. Mas o melhor que conseguiu foi o saliente do Cazombo, que inclui um longo percurso do rio e tinha evidentes sinais de cobre, porque existem por lá abundantes afloramentos de malaquite.

O “Tratado de Loanda” é muito interessante para análise dos especialistas. O diplomata José de Almada foi incumbido por Salazar de estudar o documento. Ele encontrou muitas lacunas que redundavam em prejuízo de Portugal. E fez recomendações concretas para tapar esses “buracos”, usando como arma de pressão o Caminho-de-Ferro de Benguela. O documento faz parte do espólio do “Arquivo de Salazar”.

O importante é que o Decreto número 31 de 1920, acaba com o “protegido” distrito de Cabinda e transforma-o em mera circunscrição de primeira classe. Tudo o resto é fantasia, tecida à volta de um tribalismo anacrónico e um condenável oportunismo. Cabinda é parte de Angola muito antes das terras a Sul do Cunene e também de todo o Leste de Angola. Estes são os factos colhidos e documentados.

*Jornalista

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