segunda-feira, 10 de abril de 2023

EXTREMA-DIREITA INSTRUMENTALIZA A JUSTIÇA PARA CALAR O ANTIRRACISMO

MAMADOU BA: "A EXTREMA-DIREITA PERCEBEU QUE PODE INSTRUMENTALIZAR A JUSTIÇA PARA CALAR O ANTIRRACISMO"

O ativista antirracista denuncia que o seu julgamento faz parte de uma estratégia que usa a Justiça para silenciar o antirracismo e fortalecer narrativas racistas. Acusado por supostamente ter caluniado e difamado o neonazi Mário Machado, Mamadou Ba questiona como "é que um programa de injustiça usa a Justiça para legitimar os seus crimes?”

João Biscaia* | Setenta e Quatro | Entrevista

O ulgamento estava marcado para começar a 11 de abril, mas a greve dos funcionários judiciais obrigou a que fosse adiado. Mamadou Ba sentar-se-á no banco dos réus de uma das salas da Comarca de Lisboa, no Campus da Justiça, a 26 de abril. A razão? O ativista antirrracista é acusado de difamação e calúnia pelo neonazi Mário Machado, apoiado pelo Ministério Público.

Em causa está uma publicação no Facebook em que Mamadou Ba alegadamente acusou o neonazi de ter assassinado Alcindo Monteiro no Bairro Alto, em 1995. O extremista de direita, condenado por crimes tão diversos como agressões, posse ilegal de arma, ameaças, difamação, sequestro, roubo, discriminação racial, entre outros, sentiu-se “ofendido na sua honra” e processou o ativista antirracista. E o juiz Carlos Alexandre considerou, com o apoio do Ministério Público, que Mamadou Ba deveria ser julgado.

Este processo judicial é uma nova forma de atuação da extrema-direita, uma vez que percebeu poder “mobilizar e instrumentalizar a Justiça para calar a oposição ao racismo”, denunciou o ativista antirracista em entrevista ao Setenta e Quatro. “A partir de uma instrumentalização da Justiça, as franjas mais violentas da extrema-direita procuram organizar-se e articular discursos e hegemonizar a sua prática narrativa.”

Mamadou Ba é um dos alvos preferenciais da extrema-direita, recebendo consecutivas ameaças ao ponto de ter de receber proteção policial, mas salienta que este processo não é sobre si. Quem está no banco dos réus é o antirracismo político. “Se tirássemos o Mamadou Ba e colocássemos qualquer antirracista que ousasse desafiar o racismo estrutural de uma forma contundente, essa pessoa não escaparia a este tipo de ataques. Portanto, o processo não é contra mim, é contra o antirracismo político”, garante o defensor dos direitos humanos.

Se for condenado, quais serão as consequências? “Seria uma imensa derrota, porque passaríamos a legitimar a possibilidade de um criminoso se socorrer da Justiça para se manter em atividade no crime”, admite Mamadou Ba. Será também desastroso, continua, por enfraquecer a democracia, os movimentos sociais, a luta política e social ao mesmo tempo que fortalece e revigora os movimentos de extrema-direita. “Fortalece a retórica racista e, sobretudo, legitima uma coisa que soma um terceiro aspeto mais perigoso: em Portugal começa a ser transversal o anti-antirracismo.”

Este anti-antirracismo tem ganho, argumenta o ativista, força em Portugal com as disputas pela memória do passado colonial português. Mas há que diferenciar as barricadas: há a “disputa sobre a memória e a disputa para a memória”. “Uma disputa sobre a memória é uma ideia de projeto de futuro. Uma disputa para a memória é uma ideia para a manutenção de uma hegemonia da narrativa vigente, que quer que o passado permaneça presente mas cujas consequências não se discutem.”

Uma disputa que é consequência direta do fortalecimento do movimento negro como sujeito político e social. E uma das críticas mais comuns é a do identitarismo, inclusive à esquerda, que “caiu na ratoeira da direita”. “O debate sobre o identitarismo é um falso debate. É uma fuga para frente para não se enfrentar um impasse estratégico da esquerda sobre a questão racial, o de uma esquerda que não consegue olhar para a questão racial como categoria possível de ser mobilizada na luta contra as desigualdades estruturais”, considera Mamadou Ba.

A ENTREVISTA

Está a ser processado por calúnia e difamação pelo neonazi Mário Machado. Como encara este processo? 

Não posso falar muito sobre o processo em si, porque estou limitado por razões jurídicas. Em relação a como chegamos a este ponto, não é uma surpresa para mim, porque este é o enésimo processo movido pela extrema-direita contra mim. O que acho estranho e considero um precedente gravíssimo do ponto de vista da sanidade democrática das instituições. Achava que tudo poderia acontecer numa sociedade estruturalmente racista contra um ativista antirracista, menos uma manipulação descarada da Justiça pela extrema-direita. 

Estou bastante indignado. Se tirássemos o Mamadou Ba e colocássemos qualquer antirracista que ousasse desafiar o racismo estrutural de uma forma contundente, essa pessoa não escaparia a este tipo de ataques. Portanto, o processo não é contra mim, é contra o antirracismo político. 

O que se pretende com este processo é impor duas realidades de interpretação do debate sobre a questão racial. A primeira é forçar uma legitimação do racismo através de uma decisão judicial. Isto é um precedente grave que está a fazer escola em vários países ocidentais. A segunda é usar a Justiça para silenciar a luta contra o racismo com o pretexto de distância da própria forma de aplicar a justiça. Não é, atenção, para aplicar justiça, é para legitimar a injustiça. 

É mobilizar o Direito, fazer com que olhemos para ele e acreditarmos que, mesmo que o seu uso resulte numa injustiça, isso seja algo normal, porque o Estado está a aplicar o Direito. Em Portugal nós não tínhamos chegado a este patamar. O que penso disto? Penso que a extrema-direita percebeu que pode fazer duas coisas em relação à sua vontade de aniquilar a luta antirracista. Primeiro, pode mobilizar e instrumentalizar a Justiça para calar a oposição ao discurso racista, à prática racista, ao racismo.

Segundo, pode tirar ganhos políticos. Ou seja, o que sempre chamei de estratégia de captura institucional da extrema-direita. É quando os aparelhos essenciais à soberania do Estado começam a mobilizar o Direito para fazer uma "caça às bruxas" aos vários ativismos alternativos, os de ruptura com a ordem vigente e construção de uma agenda, de plataforma de disputa pela hegemonia. 

Como assim?

No caso concreto, uma das leituras possíveis é que a extrema-direita mais troglodita, de cabeça rapada e botas cardadas, estava um bocado desarticulada do ponto de vista da sua narrativa pública, da sua presença no espaço público e precisava do mote para se recompor, uma vez que deixou de ser uma alternativa à extrema-direita engravatada. Precisava de encontrar uma forma de reabilitação e até de branqueamento dos seus crimes, porque a pragmática é a de um neonazi que passa a ser vítima. Vestir esta pele da vítima legitima a narrativa de branqueamento dos crimes que [Mário Machado] praticou. Este processo é, em parte, e com a ajuda do Estado, uma reformulação da organização da extrema-direita mais violenta dos grupúsculos neonazis no nosso país. Isto é lamentável.

Precisamos cavar um bocadinho mais, alargar os horizontes, para perceber que, para falarmos deste caso, temos de falar de como a extrema-direita opera no país, dentro das instituições, quais são as porosidades entre as instituições, as práticas institucionais e a retórica da extrema-direita.

E isto tudo diz-nos sobre este anti-antirracismo que já deixou de ser apenas ambiente e se tornou quase uma realidade com o envolvimento dos setores "higiénicos" na nossa política. Figuras com responsabilidades, como membros do Governo, como o primeiro-ministro que me comparou com André Ventura, com a imprensa a desenvolver uma linha editorial totalmente baseada numa construção retórica do anti-antirracismo em permanência, elegendo ao mesmo tempo símbolos desse antirracismo a abater, o que é no fundo uma estratégia para deslegitimar o antirracismo político. 

Considera que é uma estratégia? Há muitos anos que Mário Machado está a tentar ter relevância dentro do meio onde navega. Crê que é uma estratégia para ganhar relevância pessoal ou extravasar mais para a extrema-direita, como dizia, no todo? 

Tem as duas componentes. Aliás, é curioso notar que ele nunca fala nos aspectos jurídicos. Ele já cantou vitória, já disse que ganhou. Ora, isto é sintomático. E mais sintomático ainda é a própria saída de André Ventura sobre as palavras de Mário Machado em relação a esse processo. Ele [Mário Machado] acha que finalmente Mamadou Ba vai ser condenado. 

André Ventura regozijou-se com o facto de eu finalmente ser levado a tribunal, porque algum dia tinha que acontecer, senão seria o cúmulo do laxismo das instituições perante os meus pretensos ou supostos desmandos e falta de respeito às instituições. Enfim, o blá blá blá habitual da extrema-direita. 

Posso dizer que todos os processos que me foram movidos, incluindo os arquivados, têm ligações à extrema-direita de forma orgânica ou implícita. Todos têm um objetivo: a partir de um suposto combate aos antirracistas cria-se uma plataforma de legitimação política com discurso de ódio. Este é o objetivo principal. Para teres esta legitimidade numa plataforma de discurso de ódio, tens de ter estrutura, organização, espaço para discurso público e, portanto, tens de ter alguma visibilidade, alguma notoriedade. Portanto, tens que te fazer ver e ouvir. 

E nada melhor do que um circo mediático em torno de um dos temas que mais mobiliza o debate nacional sobre a questão racial: o caso de Alcindo Monteiro. Mesmo os mais empedernidos racistas mobilizam-se sempre que se fala de Alcindo Monteiro. É um debate para se gerar consenso, um falso consenso, porque é um consenso por defeito, para os racistas e para os conservadores, por omissão para aqueles que só querem um antirracismo mole. 

O caso de Alcindo Monteiro está construído em torno de consensos moles, para dizer que racismo há apenas nos grupúsculos violentos envolvidos na morte de Alcindo Monteiro, como aqueles que dizem que a extrema-direita em Portugal se resume àqueles grupúsculos. Ou seja, que ela não tem espaço político, não tem o horizonte estratégico para se tornar uma alternativa. Isso não é verdade. Tanto que a nossa terceira força política na Assembleia da República é de extrema-direita. Ouvimos Mário Machado apelar ao voto no CHEGA. Portanto, esta porosidade é real. Os sindicatos de extrema-direita, os sindicatos de polícias com proximidade à extrema-direita e aos seus dirigentes, de uma forma confessada ou velada, professavam uma simpatia evidente ao CHEGA, que é de extrema-direita. 

Este processo está um bocado nesta teia: como, a partir de uma instrumentalização da Justiça, as franjas mais violentas da extrema-direita procuram organizar-se e articular discursos e hegemonizar a sua prática narrativa. Eram conhecidos por simplesmente proferirem barbaridades racistas e agredir pessoas nas ruas, e continuam a fazê-lo, mas agora também querem dar a ideia de que podem recorrer às instituições de forma democrática, como dizem, para se fazer justiça. É uma estratégia política. Como é que um programa de injustiça usa a Justiça para legitimar os seus crimes? 

Dizia há pouco que não está a ser colocado no banco dos réus sozinho, é o próprio antirracismo que o está a ser. Quais as consequências para a luta antirracista em Portugal caso seja condenado?

São várias as consequências, mas há duas que são as mais terríveis. A primeira é que significa que o Estado de Direito é um estado de injustiça, porque permite que um projeto de violência possa usar os instrumentos de Estado para contrariar uma ideia de democracia e de igualdade. Do ponto de vista do imaginário coletivo seria uma imensa derrota, porque passaríamos a legitimar a possibilidade de um criminoso se socorrer da Justiça para se manter em atividade no crime.

O segundo é um desafio enorme, porque pode ser uma forma de intimidação. Pode fazer com que as pessoas tenham receio de levar avante a luta com medo de represálias. Isto enfraquece a democracia, enfraquece os movimentos sociais, enfraquece a luta política e social e fortalece e revigora os movimentos de extrema-direita. Fortalece a retórica racista e, sobretudo, legitima uma coisa que soma um terceiro aspecto mais perigoso: em Portugal começa a ser transversal o anti-antirracismo. 

Mesmo que não venha a ser condenado, o simples facto de o Ministério Público acompanhar uma queixa particular e o modo como o fez é uma espécie de espada de Dâmocles em cima da cabeça de qualquer ativista antirracista. Significa que estamos todos e todas sob chantagem com uma eventual acusação e condenação. É uma forma de condicionar o discurso, a prática e a ação antirracista. Isso é grave, perigoso e lamentável. 

Creio que o movimento social deve perceber que isto é apenas um ensaio. Depois dos antirracistas, vão ser os ativistas pelo clima, depois podem ser os ativistas pelos direitos LGBTQIA+. Assim sucessivamente. E até, quem sabe, qualquer projeto alternativo de uma sociedade democrática pode estar sob ameaça. É disso que se trata

Sempre se começou pelo elo mais fraco da cadeia de resistência e de proposta alternativa. Como sabemos, o parente pobre do movimento social em Portugal tem sido o campo antirracista. É uma estratégia para calar o campo antirracista, que tem crescido em discurso e oposição frontal à ordem neoliberal e racial - a ordem capitalista - através de mobilizações globais antes e depois da morte de George Floyd. 

Quando tiraram de contexto aquela sua citação de Frantz Fanon, a da morte do homem branco, uma das vozes mais ativas na condenação a essa citação foi um professor de economia integrante de um partido neoliberal. Porque é que o antirracismo, mesmo que tirado fora do contexto, mete tanto medo? 

Mete medo por várias razões. Portugal, assim como todas as potências coloniais, lida mal com o efeito espelho. Há uma obsessão coletiva gigantesca, que nos foi incutida pela educação colonial, racial e racialista como sociedade, de encontrar alguma grandeza na pequenez moral e ética que foi o colonialismo. "Nós fomos diferentes. Nós fomos melhores. Nós fizemos a miscigenação."

Todo o luso tropicalismo é a procura de uma certa grandeza que nunca existiu. Não há nenhuma grandeza na escravatura. Não se pode encontrar nada de grandioso, ética e moralmente, na empresa colonial. Mas é preciso cultivar que foi uma empresa grande, uma coisa grandiosa de que não pode resultar nada de hediondo. A grandeza não suporta a vilania. As elites têm de garantir e salvaguardar esse modelo de sociedade, esse projeto de imaginário coletivo assente na "colonialite aguda". Ela perpassa todo o poder, toda a elite que quer manter o sistema tal e qual como está. 

É por isso que qualquer discurso que contrarie esta narrativa é visto como ameaça, como se fosse preciso combater de forma imediata. É preciso erguer barricadas e apelar à defesa do património nacional e histórico da nação. E isso também mostra um certo pânico. 

Voltemos à lógica do espelho: olhamos para o espelho e pensamos "ser racista é ser-se monstruoso, é ser-se mau". Se “retroalimentarmos” isso, uma pessoa má faz coisas más. Será que essas pessoas nos vão fazer aquilo que lhes fizemos durante séculos? Será que um dia vão ter o poder de se poder vingar das vilanias da história? É esta obsessão e este medo do desaparecimento, porque supostamente o mundo tal como sempre sonharam estar a acabar. Por razões demográficas e geopolíticas, a sobrevivência da hegemonia da supremacia branca está ameaçada um pouco por todo o lado. 

Está ameaçada por várias razões de ordem económica, meramente demográfica e de ordem democrática, porque há mobilização global em torno da ideia de Justiça. Justiça climática, justiça racial, justiça económica. Aqui, toda a gente percebeu que não é possível termos justiça ecológica sem justiça racial, ou seja, a ideia da transversalidade da justiça e, sobretudo, a necessidade de se convocar a dimensão de pertença étnico racial a nível global, deslocando o centro dos poderes que exploram e põem o mundo numa crise de quase desistência. Tudo isto mete medo às elites. Um programa para uma sociedade alternativa não é uma proposta de remendo, não é uma proposta que assenta num pedido de desculpa onde nos sentamos à mesa. É um programa para virar a mesa do avesso e fazer uma coisa nova. 

Todos os que me atacam, incluindo as elites, usam uma frase comum: que eu e os meus "acólitos" queremos reescrever a história. Mas nós queremos muito mais que isso. O antirracismo que eu defendo quer muito mais que isso: não quero escrever a História, quero reinventar a história.

Reinventar a história?

Reinventar a história significa recolocar, redesenhar e redefinir o lugar que cada sujeito ocupa na sociedade portuguesa, porque mesmo aqueles que foram sempre subalternizados voltarão a sentar-se à mesa. Isso significa que os privilégios vão ser cada vez menos e o poder vai ter de ser partilhado. Estas elites não querem perder poder, não querem perder privilégios. O discurso antirracista é uma ameaça aos privilégios e aos poderes das elites. 

Essa é a razão pela qual qualquer coisa que eu possa dizer é uma ameaça, porque o problema não sou eu em si, mas o que eles projetam no meu discurso. Para eles, a concórdia é a garantia dos seus privilégios, não é a partilha do poder para todos. Essa concórdia que eles querem, ou seja, a paz social, é a sua própria paz, a pacificação do povo. 

Dizem também que estamos a polarizar o debate. É preciso polarizar o debate. Para uma rutura democrática, com vista a uma alternativa completamente distinta, é preciso polarizar o debate. Sem polarizar o debate não há hipótese de definir as escolhas estratégicas que definem o modelo de sociedade que queremos construir. É preciso que as pessoas se posicionem com clareza, que estejam num pólo que diga "eu quero ir para aqui" ou "eu daqui para aqui não vou". Ou seja, "não vou alimentar nenhuma sociedade racista"; "não vou permitir nenhuma sedimentação do patriarcado"; "não vou permitir nenhuma hegemonia neoliberal sobre a vida das pessoas racializadas". 

Portanto, é preciso que as pessoas escolham projetos de sociedade, porque sem a possibilidade de polarizar o debate, não há coragem para definir escolhas. E o medo deles, ou o incómodo deles, com o meu discurso é só esse. Estão a marimbar-se se é dito por mim ou por outro alguém. Aliás, isso é tão óbvio que os meus colegas sociólogos e antropólogos deveriam estudar com muita profundidade o que aconteceu com a Joacine Katar Moreira. 

Houve uma altura em que estive sob fogo cruzado, de uma forma intensíssima, até a Joacine chegar ao parlamento. Quando lá chegou, toda a atenção e toda a violência foi virada contra ela. E não foi por acaso: a Joacine era a deputada negra que mais transportava o discurso do movimento antirracista para o hemiciclo. Era uma ameaça à ordem. Não podiam suportar que o parlamento finalmente se transformasse num espaço de disputa contra a hegemonia. E acionaram completamente as raivas e os ódios contra ela. 

Há alguns anos escrevi um artigo para o Expresso e isso valeu a ira de todas essas elites. Falava da obsessão pela absolvição histórica. Tem algo de patológico, algo de profundamente familiar nessas posturas, e é por isso que tudo o que está a acontecer à volta deste debate, a mobilização da justiça, o investimento no espaço mediático e narrativas de diabolização ou de isolamento do antirracismo político - que são as duas vertentes que se articulam muitas vezes - tem como foco o que eu chamo de antirracismo político. Não é um antirracismo que pede licença para se expressar. Há uma estratégia para o diabolizar e uma outra para o isolar, a ideia de que é preciso ter tento na língua e tino para discutir a questão racial, porque é uma questão delicada. Não é possível ter calma perante a indignidade. 

O racismo é uma indignidade, portanto, qualquer pessoa que nos peça calma perante a indignidade é cúmplice. A única coisa que nos assiste enquanto sujeitos políticos imbuídos de humanidade é sermos frontalmente antirracistas. Não há antirracismo em meio copo ou falinhas mansas. Não há. Ou somos antirracistas ou não somos antirracistas, porque não há meio racismo. E há uma coisa óbvia e eles sabem-no perfeitamente: o racismo mata todos os dias, o antirracismo nunca matou ninguém. 

Mais ou menos há um ano e meio foi convidado a ir a um programa de debate televisivo sobre os brasões em Belém. Não sei se soube, mas esses brasões em arbusto passaram a estar no chão, em calçada portuguesa.  Nesse debate, lembro-me de o ouvir falar e de responderem que os portugueses fizeram, sequestraram e escravizaram milhões de pessoas, mas os gregos também tinham escravatura. Como vê estas guerras culturais? 

Isto é uma pergunta que valeria uma entrevista inteira. Há uma desonestidade intelectual gigantesca sobre a questão da escravatura em Portugal por culpa de duas coisas. A primeira é que, infelizmente e apesar de ter sido o principal motor da escravatura transatlântica, Portugal é o país onde o estudo e debate sobre a escravatura é quase nulo. Na disputa epistemológica sobre os conceitos, a hegemonia está completamente do lado dos reacionários com uma perspetiva histórica militantemente glorificadora da empresa colonial. 

A desonestidade começa pelo significado dos conceitos mobilizados, porque é óbvio que há uma diferença abissal entre servidão e escravatura. Essa diferença nunca é mobilizada no debate público, sobretudo quando se pretende justificar a escravatura transatlântica a partir da ideia de que se praticava servidão em África - como se a servidão não existisse em qualquer sociedade no mundo onde houve relações de poder ou de classe. Sempre houve servidão: da Idade Média até ao que chamo de industrialização da servidão, que é a escravatura. Isso começa, evidentemente, antes da escravatura ocidental, na escravatura árabe-muçulmana.

Qual é a diferença?

Há uma diferença substancial entre a escravatura árabe-muçulmana e a escravatura transatlântica: a desumanização. A escravatura árabe-muçulmana era de uma violência tremenda, foi um crime hediondo, mas nunca tinha como prática ou projeto final a simples coisificação da pessoa escravizada.

A escravatura transatlântica despojou a humanidade das pessoas escravizadas e transformou-as em produtos e instrumentos do modo de produção da acumulação capitalista. A escravatura árabe-muçulmana também considerava os escravos como modo de produção e de acumulação, mas deixava-lhes uma réstia de humanidade. Por exemplo, as relações de filiação existiam e eram mais ou menos mantidas, ou seja, raramente tínhamos a separação de pais e filhos na escravatura árabe-muçulmana. Este é apenas um detalhe, mas é um “por maior” na escravatura transatlântica, onde o corpo da mulher era uma indústria para produzir instrumentos de acumulação de capital, porque era um aparelho de reprodução da força de trabalho e mão-de-obra, ponto final. 

Portanto, essa distinção precisa de ser feita. Esse debate precisa de ser aprofundado, porque vi toda a direita, a direita reacionária e a extrema-direita, a bater palmas com um livro traduzido em Portugal do historiador senegalês. Cheikh Tidiane N'diaye escreveu um livro sobre a escravatura árabe-muçulmana, uma encomenda da extrema-direita francesa, chamado "O Genocídio Ocultado - Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabo-muçulmano". É uma disputa hegemónica, mas sempre tivemos negros de casa na academia, na política, em todo lado. Portanto, Cheikh é um intelectual negro da casa das ideias do regime histórico, mas foi traduzido e celebrado com grandes parangonas em Portugal pelo conservadorismo intelectual. 

Isto traz-nos para a questão colocada, porque tudo isto parte desta confusão deliberadamente entretida, deliberadamente cultivada: criar a ideia de que a vilania, o crime contra a humanidade que é a escravatura, perpetrado maioritariamente por Portugal, ou essencialmente, como um dos pioneiros e um dos elementos centrais da indústria da escravatura, foi uma coisa que aconteceu em concordância com as pessoas escravizadas, das lideranças africanas. Ou seja, esta maldade contra a humanidade não seria uma invenção dos ocidentais, mas uma coisa completamente normal. Isto é falso, é estar dentro da obsessão pela absolvição histórica, é querer absolver os crimes da história.

Esta insistência em revivificar a memória colonial é quase uma espécie de covardia de fazer regressar a besta imunda do racismo através da exaltação do orgulho nacional: como podemos voltar a inscrever num dispositivo retórico e no imaginário coletivo o crime colonial, que é o albergue fundacional do racismo contemporâneo? Como podemos inscrever esse crime no espaço público e no imaginário coletivo sem ter que passar por uma confrontação de argumentos? É querer fixar uma memória enquanto se diz ser anacrónico olhar a história de ontem com os olhos do hoje. 

É da responsabilidade do movimento antirracista e da academia fazer uma distinção entre a disputa sobre a memória e a disputa para a memória. Essa nuance é muito importante. Uma disputa sobre a memória é uma ideia de projeto de futuro. Uma disputa para a memória é uma ideia para a manutenção de uma hegemonia da narrativa vigente, que quer que o passado permaneça presente mas cujas consequências não se discutem. Esse é o objetivo dessa disputa. 

Não é nenhuma novidade, e acho que vai aumentar, esta forma de mobilizar a memória para legitimar o discurso racista e a repressão contra populações racializadas, porque, a partir do momento em que se inscreve a ferida no espaço público, a intenção é basicamente gangrenar a relação com as pessoas que se queixam dessa ferida. E quando se gangrena essa relação, encontra-se uma justificação para reprimir quem se queixa dessa gangrena. 

Isso está a acontecer com todas as políticas de memorialização, todas as disputas sobre a memória são um pouco isso: como impor uma determinada narrativa, uma determinada hegemonia, uma forma de ver e pensar o mundo. Se elas se impuserem, com elas normaliza-se o racismo, o patriarcado e o capitalismo. A ideia que querem é fazer com que a saudade do passado seja um alimento do presente e que condicione o futuro. Para existirmos, temos de trazer o nosso passado aqui e temos de glorificá-lo. Quando o fazemos, estamos a dizer às pessoas que descendem da tragédia colonial que continuam sempre naquele lugar, que queremos que se mantenham nele. Só a manutenção daquele lugar é que garante que continuemos com os nossos privilégios, ou seja, é uma forma de manter a linha da cor sem assumir.

O que traz uma grande edificação em brasões coloniais, hoje, em que estamos a discutir os 50 anos da descolonização do 25 de Abril? Estas estratégias não aparecem do nada. Não acredito que seja por uma razão da salubridade urbana que alguém se lembrou de restaurar os brasões nos 50 anos do 25 de Abril. É uma disputa hegemónica, a maior afirmação da vontade de dominação colonial como projeto de sociedade. Isto é uma incorporação da colonialidade na nossa contemporaneidade.

Mesmo havendo à esquerda quem diga que o racismo não é um problema estrutural, acusando o movimento antirracista de identitarismo e a luta antirracista como um desvio burguês? Crê que o movimento antirracista pode ser um protagonista político de luta política contra o sistema vigente em Portugal?

Lembro-me de uma frase que Grada Kilomba usa muito: "ninguém escapa da história". A efervescência, todo o mal-estar, o escárnio em relação ao debate sobre a questão do legado colonial tem a ver com isso: como as elites querem sair ilesas do crime colonial, escapar da história, mas quanto mais insistem nesta distopia, mais se afundam nas contradições.

Vejo esta reação da esquerda como uma distopia. É um desencanto da própria esquerda sobre quais são os elementos potenciais de transformação radical ou de rutura com a ordem vigente. É uma confissão de derrota perante a possibilidade de provocar a rutura a partir das margens, que foi e devia ser uma das nossas bússolas: partirmos das margens para rompermos com a hegemonia, porque é a partir daí que podemos construir e configurar a luta de classes. Ela só se construirá e se consolidará a partir das margens. Não será a partir da burguesia, não será a partir das elites, mas daqueles e daquelas que sofrem as agruras das desigualdades do sistema capitalista. Esta questão do identitarismo é uma acusação falaciosa, preguiçosa e pouco inteligente.

Porquê?

É falaciosa e preguiçosa porque a esquerda sabe que as camadas sociais que mais concentram a violência do sistema capitalista são aquelas que estão situadas entre as pessoas racializadas. Isso é visto nos países ditos desenvolvidos, como o é nos países menos desenvolvidos. O capital financeiro mobiliza de forma brutal a raça como instrumento de dominação, de divisão de classe ou de instrumentalização de classe.

Quem é usado no Ocidente para nivelar por baixo os direitos laborais? São os imigrantes, as pessoas racializadas. Ou são negras ou são indianas e chinesas. A transferência de rendimentos do trabalho para o capital assenta mais na exploração de pessoas racializadas que na das pessoas brancas. Sinceramente, não se entende esta cegueira da esquerda em relação a esta realidade que é um facto material. É uma cegueira sobretudo preguiçosa, porque a esquerda sabe que o capitalismo precisa de desigualdades. E qual é o melhor veículo para a desigualdade nas sociedades ocidentais? O racismo. O capitalismo precisa de desigualdade para sobreviver e o racismo fornece-lhe as desigualdades. 

Depois há o lado pouco inteligente e pouco estratégico da questão: como a esquerda alienou completamente a possibilidade de convergências com os setores mais marginalizados da sociedade a partir de uma chantagem que a direita e a extrema-direita exerceram sobre ela. O debate sobre identitarismo ganhou corpo e consistência em Portugal através de uma ratoeira em que a esquerda caiu redondamente. 

Gosto sempre de lembrar isso, porque sou daqueles que não tem (e nunca vou ter) nenhuma simpatia por Pacheco Pereira. É um mercenário ideológico da direita, porque tem aquele ar irreverente de quem não é controlado pela direita da sua família política, de quem é uma pessoa intelectual equidistante e que apenas e tão só faz análises objetivas sobre a realidade. Não é verdade. 

Há uns três ou quatro anos, Pacheco Pereira escreveu um artigo a acusar a esquerda de ter abandonado o seu programa e sucumbido à cultura woke e ao identitarismo. Os pesos pesados de esquerda foram logo responder-lhe reafirmando o apego ao seu programa e a dizer que havia, sim senhora, uma certa deriva identitária em alguns movimentos sociais, mas que era marginal. Assim se instalou um debate que não existe em Portugal. Os debates devem existir, mas para informar uma realidade em disputa, não devem partir de uma fantasia ou de uma orquestração ideológica. O debate sobre o identitarismo é um falso debate. É uma fuga para frente para não se enfrentar um impasse estratégico da esquerda sobre a questão racial, o de uma esquerda que não consegue olhar para a questão racial como categoria possível de ser mobilizada na luta contra as desigualdades estruturais. 

Existe um impasse estratégico que se encontra à esquerda. Porquê? Objetivamente, a esquerda também não escapa da "ocidentalite aguda", outro conceito que vou usar. A "ocidentalite aguda" é a ideia do universalismo beato, é o senso proclamado. Quando foi construído, o universalismo abstrato expulsou de si uma parte da humanidade. Foi no seu apogeu que conhecemos as teorias do eugenismo e outras tantas. E as suas figuras máximas encontraram uma forma de achar que o universalismo era um espaço meramente ocidental ou essencialmente ocidental. A famosa frase de Hegel, "o espírito universal não sobrevoa a África", está nesse ponto. E Hegel foi o sistematizador, o pai do nosso pensamento ocidental. 

A esquerda tem de fazer um esforço para não cair na ratoeira da direita que tem interesse em achar que a identidade tem de ser mobilizada para subtrair e não para adicionar. A direita e a extrema-direita estão obcecadas com a ideia de desaparecimento. Acham que a humanidade vai desaparecer se deixar de ser maioritariamente branca. A humanidade nunca foi maioritariamente branca, foi só uma ilusão da dominação colonial. A humanidade será sempre diversa, com várias tonalidades. Não será maioritariamente branca, nem amarela. Ela será diversa. É preciso sair desta armadilha da hegemonia ocidental, do perigo do desaparecimento e da arrogância segundo a qual a humanidade está no estágio em que está a partir do único contributo do Ocidente. Não, a humanidade é o que é através da somatória de vários arquivos da mesma humanidade.

E é também importante ser mais realista. Não se fará nenhuma revolução, nenhuma rutura com o sistema capitalista, sem incorporar a força potencialmente transformadora da luta antirracista. É impossível. Não vamos derrotar o capitalismo nas circunstâncias atuais sem contar com uma agenda antirracista, sem um programa antirracista. 

Há coisas que a esquerda tem de fazer para sair deste buraco em que se meteu, porque todo o debate sobre identitarismo é um buraco sem fundo, é uma idiotice estratégica e uma burrice tática, porque não constrói horizontes estratégicos com as pessoas obrigadas a transformar o mundo para se libertar da opressão racial. E com esta burrice tática dá-se força aos adversários. É preciso alguma inteligência tática e um horizonte estratégico inscrito num programa antirracista e não apenas numa agenda. É preciso que a agenda exista, mas um partido de esquerda tem de ter um programa antirracista mobilizável a partir de uma agenda antirracista. Uma agenda antirracista é para disputar e impor o programa antirracista. E o programa antirracista é uma coisa transversal. Tem de abarcar a história, a justiça climática, a justiça racial, a justiça económica.

JOÃO BISCAIA - Editor de Ensaios do Setenta e Quatro. Comentador no podcast Vivemos numa Sociedade e formado em História Contemporânea | joao.biscaia@setentaequatro.pt

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