sexta-feira, 14 de abril de 2023

Socialismo humanista popular assente na cultura e lisan de Timor-Leste -- M. A. Menezes

M. Azancot de Menezes*

O nascimento em Timor-Leste de uma sociedade caracterizada em termos políticos e ideológicos por extremos opostos está a acontecer. Trata-se de um fenómeno que já era previsível por vários analistas políticos, sendo agora irreversível, porque está instalado o debate político-ideológico devido às diferenças, diametralmente opostas, serem muito significativas.

De um lado está uma classe social constituída pelos grandes empresários e pela máquina burocrática e administrativa do Estado defendida por alguns partidos políticos. Do outro  estão os pobres e marginalizados, integrados pelos agricultores pobres, trabalhadores assalariados e jovens estudantes que acreditam no socialismo humanista popular com caraterísticas timorenses.

A acentuação destas diferenças políticas e ideológicas de classe, na minha perspectiva, obviamente subjectiva, será demonstrada no dia das Eleições Parlamentares, em 21 de Maio de 2023, com a votação expressiva que terá o Partido Socialista de Timor (PST) em vários Municípios do país.

A verdade é que muitos jovens, estudantes, velhos e velhas, adquiriram consciência de classe, querem mudança e estão (finalmente) mergulhados na luta pela causa dos trabalhadores e dos agricultores, na sua maioria pobres e vulneráveis.

Os agricultores pobres, os trabalhadores e os jovens estudantes, tem sido visível nos últimos seis meses em todo o território nacional, estão empenhados e motivados na mudança política e socioeconómica, advogando a continuação do processo da reposição da ordem constitucional e democrática, com a implantação de novas bases jurídicas, mas, um sistema jurídico que se fundamente nas normas, na cultura e nos valores do povo, para que seja efectivamente garantido o desenvolvimento nacional com equidade genuína.


Knuas, Uma Lulik e Lisan de Timor-Leste

A sociedade de Timor-Leste, muito antes do colonialismo português, estava organizada em Knuas e cada Knua tinha as suas normas. Há autores que definem o conceito de Knuas como sendo aldeias. Outros consideram que as Knuas são povoações. Segundo pude verificar na obra «Timor-Leste: Sociedade, Estado e Processos Eleitorais» da autoria da Comissão Nacional de Eleições de Timor-Leste (CNE), para Avelino Coelho, como tão bem defendeu na sua tese de doutoramento que abordou nomeadamente o direito costumeiro timorense, o significado de Knua é mais complexo:

“Knua é a estrutura social do povo de Timor-Leste, baseada na árvore genealógica e com as sucessivas ramificações, que obrigam ao estabelecimento de mais Knuas por via do processo de reprodução humana e da produção social” (CNE, 2015, p. 20-21).

(Avelino Coelho)

Considerando este pressuposto teórico-conceptual como o mais correcto em termos epistemológicos, pode depreender-se que cada Knua tinha as suas normas de convivência social e habitava uma determinada área que passou a ser propriedade de cada Knua, onde existia o conceito de propriedade colectiva, portanto, todos os seus membros tinham espaço para viver, trabalhar, produzir e repousar.

Como a sociedade estava organizada em Knuas vivia-se de forma colectiva, com os meios de produção pertencentes a cada uma das Knuas e havia boas relações sociais. A existência da hierarquia familiar, tal como vale em outras sociedades do ocidente, não interferia no bom ambiente familiar e nas relações sociais:

“Vigorava uma relação de harmonia entre os membros da Knua com o meio ambiente que o rodeava. Os trabalhos nas hortas, nas várzeas e na construção das casas individuais eram realizadas de forma conjunta ao que se denominava por «troka liman»”.

(Avelino Coelho, 2021)

Em consonância com as teses que o Partido Socialista de Timor defende, Nuno Canas Mendes, académico da Universidade de Lisboa e investigador em assuntos do Sudeste Asiático e de Timor-Leste, citado por Avelino Coelho, numa obra intitulada «Ensaios sobre nacionalismos em Timor-Leste (2005)», referia o seguinte:

“A casa sagrada, como é designada em Timor – é um conceito que, mais do que mera unidade familiar, simbólica e patrimonial, encerra uma cosmovisão dúplice, que confere ao poder duas componentes que conformam o que se pode designar de oposição complementar dualista: uma sagrada/espiritual e a outra secular/política..”

(Nuno Cana Mendes, 2005)

Esta discussão em torno do conceito de Knua, bem entendido, é essencial para se começar a perceber a fundamentação do PST na defesa da implantação do “Socialismo humanista popular assente na cultura e lisan de Timor-Leste”.

Esta linha de raciocínio que remete para uma significação do conceito de Knua como  uma célula caracterizada por uma crença comum perdura e, nos dias de hoje, cultivam-se sentimentos de solidariedade e colectividade visíveis por toda a parte do país através da construção das casas sagradas (Uma Lulik), edificadas de forma participada por todos os membros da Knua com vários rituais culturais.

Como bem explica Avelino Coelho (2021):

“A nossa sociedade acreditava na existência de uma força supra-natural e que, pelo bem ou mal que cometiam, recebiam sansão ou castigo. A esta força supranatural deu-se o nome de Uma Lulik. A Uma Lulik era a casa sagrada que ligava os membros da Knua ao ser supranatural, através do seu “matebian” ou coisa qualquer que poderia servir-se de elemento de comunicação com o supranatural”.

Finalmente, uma outra dimensão básica para se perceber as razões de ser e o processo de implantação de um socialismo com características timorenses relaciona-se com as regras de organização social, de convivência e de governação.

A realidade que se observa mostra que a importação do código jurídico ocidental que decorreu dos processos históricos da colonização portuguesa está a colidir com as regras sociais e de governação autóctenes, violando o “Lisan”, interpretado como o Direito Consuetudinário.

Atendendo a que Timor-Leste tinha uma sociedade organizada em Knuas e em termos de cultura e valores já “tinha produzido uma civilização muito avançada” (Avelino Coelho, 2021), à excepção da tecnologia, em boa verdade, a sociedade timorense é caracterizada por valores de fraternidade, solidariedade, respeito pelos mais velhos, e pela propriedade colectiva que dita as relações técnicas e sociais de produção.

Por conseguinte, indo ao encontro do pensamento do líder do PST, segundo o qual, “a nossa sociedade em Knuas tinha o seu próprio modelo de produção e já tinha o conceito de propriedade sobre a casa, casa sagrada, terras e água”, a saída para a crise social, económica e política implicará a criação de condições para a implantação do socialismo humanista popular assente na cultura e lisan de Timor-Leste, a ser viabilizada, principalmente, pelos agricultores pobres, trabalhadores e juventude.

*M. Azancot de Menezes -- PhD em Educação / Universidade de Lisboa, Timor-Leste

*Publicado em Jornal Tornado

*Também colaborador de presença assídua em Página Global

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