sexta-feira, 20 de outubro de 2023

ACABAR COM O APARTHEID ISRAELITA É O ÚNICO CAMINHO PARA A PAZ


 Ronan Burtenshaw* | Setenta e Quatro

O contexto crucial para a violência em Israel e na Palestina é o facto de a ocupação mais longa do mundo se ter transformado numa anexação formal, sem sequer a pretensão de um processo de criação de um Estado palestiniano. Para alcançar uma paz duradoura, o apartheid israelita tem de acabar.

contexto crucial para a violência em Israel e na Palestina é o facto de a ocupação mais longa do mundo se ter transformado numa anexação formal, sem sequer a pretensão de um processo de criação de um Estado palestiniano. Para alcançar uma paz duradoura, o apartheid israelita tem de acabar.

As coisas não podiam ficar como estavam — e, portanto, não ficaram. Após quase um ano de escalada de tensões, largamente ignorada pelos meios de comunicação internacionais apesar das mortes quase diárias, Israel e os territórios palestinianos irromperam numa guerra brutal e devastadora.

O contexto político alargado desta guerra é resoluto. Após mais de 50 anos a fingir que os palestinianos seriam autorizados a ter um Estado com as fronteiras demarcas em 1967, a ocupação mais longa do mundo transformou-se num processo formal de anexação.

Esta mudança quase não foi notada por muitos dos que estão agora a cobrir a violência. Este é, no entanto, o fator mais importante para compreender a guerra. Marcou um ponto de viragem histórico, que foi reconhecido por todas as facções da política israelita e palestiniana.

Sem contexto, não pode haver progresso. Esse contexto não justifica o assassínio de civis em festivais ou de famílias nas suas casas — nada o pode fazer. Mas o contexto lembra-nos que todas as atrocidades, todas as mortes, e todos os actos de vingança têm poder e história por detrás. Aqueles que tratam a violência recente como se tivesse surgido do vazio não oferecem nada para a busca da paz.

Depois de muitos anos de tentativas para conseguir um Estado através de meios legais e políticos não violentos, o movimento palestiniano dominante chegou ao fim do caminho. O mundo está agora a ver as consequências dessa realidade. Como escreveu o jornal israelita Haaretz no seu editorial:

“O primeiro-ministro [...] não conseguiu identificar os perigos para os quais estava conscientemente a conduzir Israel ao estabelecer um governo de anexação e expropriação [...] ao mesmo tempo que abraçava uma política externa que ignorava abertamente os direitos e a existência dos palestinianos.”

Esta é uma perspetiva caridosa. Benjamin Netanyahu e o seu governo deviam estar conscientes de que este era um dos resultados prováveis das suas políticas.

Como resultado dessas políticas, existe hoje apenas um Estado entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Este governa dois povos que vivem segundo regras diferentes: os judeus, que gozam dos mais elevados padrões de direitos humanos, civis e económicos, mesmo quando estes entram em conflito com o direito internacional; e os palestinianos, que não podem reivindicar a igualdade de cidadania em qualquer parte da sua pátria histórica e que, em vez disso, vivem sob diferentes graus de opressão.

Em Gaza, isto significou um bloqueio de 16 anos que controla, em quase todos os aspectos, o que entra e sai do território — resultando em escassez regular de bens essenciais, desde eletricidade a água, passando por medicamentos, alimentos e materiais de construção. Dois milhões de pessoas vivem na Faixa de Gaza, quase metade são crianças e mais de metade vive na pobreza, e já foram sujeitas a seis guerras desde o início do bloqueio.

Nos Territórios Ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, os palestinianos estão divididos em 224 guetos, sendo-lhes negado o direito de viajar ou de se associarem livremente por centenas de bloqueios de estradas e postos de controlo militar, sujeitos a detenções arbitrárias e prolongadas (1260 estão atualmente detidos sem acusação nem julgamento), despejados à força com regularidade e mortos, no primeiro semestre de 2023, a um ritmo de quase um por dia. Mesmo em Israel, eles também são cidadãos de segunda classe: é-lhes negado o direito a viver em 80% do território de um país que, desde 2018, foi consagrado exclusivamente como um "Estado-nação do povo judeu".

As principais organizações de direitos humanos do mundo, da Amnistia Internacional à Human Rights Watch, descrevem esta situação como apartheid. Igualmente o considera o governo sul-africano que viveu sob esse sistema e o combateu. Os palestinianos têm o direito de resistir ao apartheid. Aqueles que se sentem chocados com a violência têm de se confrontar com o facto indiscutível de que todas as vias legais e políticas para essa resistência têm sido sistematicamente fechadas pelo Governo israelita.

Há 30 anos, nos Acordos de Oslo, a corrente dominante do movimento palestiniano comprometeu-se com a não-violência em busca de um Estado. Reconheceu o Estado de Israel e até assinou um acordo que reconhecia o controlo temporário de Israel sobre a maior parte da Cisjordânia. Qual foi o resultado? Nos anos que se seguiram, o número de colonos israelitas na Cisjordânia quadruplicou — o que praticamente exclui a perspetiva da construção de um Estado palestiniano nas fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1967.

Ao fracasso do processo de Oslo seguiu-se a Segunda Intifada mas, uma vez terminada, a perspetiva de uma solução não violenta voltou a estar em cima da mesa. Em 2005, a sociedade civil palestiniana lançou o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que visava exercer pressão internacional sobre Israel para que este pusesse fim à ocupação. Em resposta, Israel tornou esses boicotes ilegais e ameaçou os líderes dos movimentos de "eliminações civis selectivas", assediou os seus ativistas e lançou uma campanha internacional para criminalizar o movimento.

Depois, há apenas cinco anos, os palestinianos de Gaza iniciaram a Grande Marcha do Retorno — um protesto não violento e em massa contra o bloqueio e a ocupação alargada. Israel respondeu matando a tiro mais de 200 manifestantes, e ferindo mais de 9 mil, quando estes se aproximavam do muro que os mantinha encurralados naquela que é amplamente descrita como a maior prisão ao ar livre do mundo.

Qual é a soma total dos progressos alcançados por estas iniciativas não violentas? O que se ganhou com décadas de empenhamento do movimento palestiniano em recorrer a meios políticos e legais para desafiar o apartheid e a ocupação? Que resultado teve para os palestinianos o apelo à consciência da "comunidade internacional", a autoridade do direito internacional ou a simpatia das organizações de defesa dos direitos humanos?

A violência contra os palestinianos continuou inabalável. De 2008 até esta última guerra, as estatísticas das Nações Unidas mostram que os palestinianos representaram 95% das mortes e 96% dos ferimentos resultantes daquilo que é erroneamente descrito como um "conflito". O termo conflito implica um certo grau de simetria — mas, durante anos, apenas um dos lados tem morrido em massa, perdido a sua pátria histórica e sido sujeito a uma miseração generalizada. Simplesmente não há comparação.

E depois, num insulto final àqueles que defendem a não violência, a longa ocupação por Israel do território palestiniano progrediu para a anexação total. Tudo começou com o Partido Likud, do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, endossando formalmente a anexação de partes da Cisjordânia em 2017, que por sua vez se tornou um pilar fundamental das campanhas eleitorais do partido em 2019. Em 2020, este plano tornou-se política governamental e, em 2022, Israel elegeu um governo de extrema-direita comprometido com "o direito exclusivo do povo judeu sobre toda a Terra de Israel".

Em fevereiro, esta anexação deu o seu passo mais significativo. Durante décadas, a ocupação foi tratada por Israel como um assunto militar — supervisionado pelo ministro da Defesa. Mas no início deste ano, Israel transferiu formalmente os poderes sobre o território para o seu governo civil. E mais, entregou-os a um autodenominado "fascista", Bezalel Smotrich. Como escreveu a Foreign Policy, "a medida ungiu Smotrich como governador de facto da Cisjordânia".

Nada disto retira importância à tragédia dos últimos dias. Nem implica a moralidade ou a eficácia da violência política. Não pode justificar o assassinato de civis israelitas por palestinianos, o que, por sua vez, levou o governo israelita a matar mais civis em Gaza e noutros locais. O facto de se atacar deliberadamente civis, onde quer que ocorra, é um crime abominável.

Mas se é verdadeiramente o assassínio de civis que nos preocupa, não será justo perguntar porque é que só agora os políticos e os meios de comunicação social ocidentais se interessaram? Quando, no início deste ano, durante meses, civis palestinianos foram mortos a um ritmo de quase um por dia, por que razão isso não provocou qualquer indignação?

A dura conclusão a que temos de chegar é a seguinte: para o Ocidente, o lento apagamento da Palestina, com todas as injustiças que isso implicava, era, em última análise, aceitável. Aqueles que passaram anos a defender alternativas não violentas ao atual banho de sangue foram traídos pela mesma "comunidade internacional" que agora emite as suas condenações unilaterais, mas que não se preocupou o suficiente para agir decisivamente em busca da paz quando esta era uma possibilidade.

Nos próximos dias, Israel vai acelerar os esforços para apagar a Palestina, arrasando grande parte de Gaza. Fá-lo-á com uma das forças armadas mais poderosas que o mundo alguma vez viu. Fá-lo-á como política, com o seu ministro da defesa a descrever os palestinianos como "animais humanos" e os porta-vozes do exército a dizer: "O nosso foco está em (criar) danos, não em precisão". E fá-lo-á com a cumplicidade do Ocidente, cujos governos hasteiam as suas bandeiras nos seus edifícios oficiais.

Fá-lo-á em nome da "eliminação do Hamas". Mas o Hamas, cujas atrocidades merecem uma condenação amarga, é um produto da alienação, do desespero e do despojamento. O movimento é visto por milhões de palestinianos como parte da resistência exatamente ao tipo de destruição indiscriminada que Israel está agora a desencadear sobre uma população indefesa. Se Israel quisesse realmente "varrer o Hamas da face da terra", como diz o seu ministro da Defesa, resolveria as condições que o criaram. Mas, como é óbvio, não tem qualquer intenção de o fazer.

Quando se contextualiza a situação na Palestina, torna-se claro que o único caminho para a paz é o fim do sistema de apartheid. E, no entanto, qualquer pessoa que defenda esse ponto de vista pode esperar ser fortemente demonizada nos próximos dias e semanas. O consenso estabelecido é que a "normalidade" que prevaleceu até há poucos dias atrás deve ser restaurada — mesmo que seja bastante claro que essa normalidade nos conduziu precisamente ao desastre de hoje.

*Ensaio publicado originalmente na Jacobin Magazine

* Editor da revista Tribune

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