Artur Queiroz*, Luanda
Ernesto Mulato é dirigente da UNITA. Quando nasci já ele tinha quatro aninhos logo tem tanta idade para ter juízo como eu. Em 2005 foi condecorado pelo Presidente José Eduardo dos Santos o que lhe dá ainda mais responsabilidades socias, cívicas e políticas. É um homem do Bembe, terra por onde andei recolhendo memórias da fábrica onde se produziam correntes de escravos, canhões mas também bronze para as esculturas. Território de artistas que inclui Nova Caipemba e vai até ao Toto onde o senhor Cid Adão tinha um hotel a preceito.
O que leva um homem com estas responsabilidades a mentir descaradamente sobre o “processo de descolonização”? Só pode ser demência senil ou maldade incurável. Vou aceitar a hipótese mais benéfica. Mostrar as suas mentiras e omissões numa entrevista que concedeu à agência noticiosa Lusa.
Ernesto Mulato afirmou que “Portugal fez uma descolonização manipulada em Angola”. Por isso existiram “confrontos durante a transição e após a Independência Nacional”. Leiam: “O processo de transição em Angola para o alcance da independência em 11 de Novembro de 1975 foi viciado. O capitão português Melo Antunes já tinha a pretensão de entregar o poder ao MPLA antes mesmo do Acordo de Alvor, que estabelecia a partilha do poder entre os três movimentos de libertação”. Uma aldrabice infame para mostrar aos outros sicários da UNITA que mesmo sendo do Bembe, é savimbista puro.
Mais uma aldrabice ao serviço do chorrilho de falsificações e manipulações dos factos históricos: “Portugal tinha forças suficientes em Angola, que podiam travar toda e qualquer provocação de qualquer partido político, mesmo dos três movimentos ao mesmo tempo”. Os dados viciados estão lançados. Agora vamos aos factos.
O Movimento das Forças Armadas (MFA) era constituído maioritariamente por capitães. Mas também tinha oficiais superiores. Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, ou José Emílio da Silva (coordenador do MFA em Angola) eram majores. Primeira emenda: Melo Antunes não era capitão como afirma Ernesto Mulato.
Os sicários da UNITA puseram a circular que Melo Antunes e Agostinho Neto se encontraram em Argel e aí ficou decidido entregar o poder em Angola ao MPLA. Mentira grosseira. O Acordo de Argel, foi assinado em 25 de Agosto de 1974 entre representantes do Governo de Portugal, o PAIGC e o CLSTP (depois MLSTP) sob os bons ofícios do Presidente Houari Boumediennne. Tratou exclusivamente dos processos para a independência da Guiné-Bissau (10 de Setembro de 1974), Cabo Verde (5 de Junho de 1975) e São Tomé e Príncipe (12 de Julho de 1975). Guiné-Bissau foi imediata porque o PAIGC já tinha proclamado a independência a 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé.
O I Governo Provisório de Portugal tomou posse a 16 de Maio de 1974. Mário Soares era o ministro dos Negócios Estrangeiros. Um savimbvista assumido e companheiro de jornada do oficial da CIA Frank Carlucci, nomeado embaixador dos EUA em Lisboa para tratar da descolonização e organizar uma rede bombista contra os comunistas e figuras de esquerda. Durou até Julho. O major Melo Antunes era ministro sem pasta em representação do MFA. Nessa condição participou no Acordo de Argel. Mas não falou com Agostinho Neto porque o líder do MPLA estava em Dar es Salam.
Na vigência do I Governo Provisório a doutrina era o federalismo. O Presidente Spínola propôs que em vez das independências, as colónias portuguesas passassem a “estados federados” com Portugal. O MFA reprovou esta tese. Porque o programa dos Capitães de Abril era Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Surgiram graves divergências políticas, Mário Soares ficou sentado em cima do muro. O governo caiu por causa destas contradições. Durou apenas três meses.
Jonas Savimvbi alinhou nas teses spinolistas. Numa entrevista à Emissora Oficial de Angola, logo após a tomada de posse do I Governo Provisório, declarou que o Povo Angolano não estava preparado para a Independência Nacional e a solução era o federalismo! Ao mesmo tempo surgiram em força os defensores da Independência Branca, com o apoio dos regimes racistas da África do Sul e Rodésia (Zimbabwe).
O II Governo Provisório tomou posse a 17 de Julho mas só durou até 30 de Setembro. O ministro dos Negócios Estrangeiros continuava a ser o savimbista Mário Soares. Foi aprovada a Lei 7/74, de 27 de Julho, que reconhecia o direito à independência “dos territórios ultramarinos”.
Com respaldo neste diploma foi assinado o Acordo de Argel e marcadas as datas das independências da Guiné-Bissau (confirmação), Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Spínola e a sua facção não se conformaram. Desencadearam o golpe militar de 28 de Setembro. Em Angola os independentistas brancos estavam preparados para declarar unilateralmente a independência, na cidade do Huambo, com o apoio de Jonas Savimbi!
Assim nasceu o III Governo Provisório que durou entre 30 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975, data em que os spinolistas desencadearam novo golpe militar contra o 25 de Abril e o processo de descolonização. No novo gabinete, o savimbista Mário Soares continuava a ser o ministro dos Negócios Estrangeiros e Melo Antunes ministro sem pasta. Foram eles que prepararam a Cimeira do Alvor. Ninguém acredita que o líder do Partido Socialista prejudicou o seu amigo Jonas Savimbi!
Após o golpe militar, tomou posse o IV Governo Provisório, em 26 Março 1975. Durou até 8 de Agosto, uma eternidade. O savimbista Mário Soares passou a ministro sem pasta em representação do Partido Socialista e Ernesto Melo Antunes foi nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros.
As contradições causadas pelos processos de descolonização puseram fim a este gabinete. Assim nasceu o V Governo Provisório. Mário Ruivo era o ministro dos Negócios Estrangeiros. Uma novidade: O antigo coordenador do MFA em Angola, major José Emílio da Silva, assumiu a pasta da Educação e Cultura. Este gabinete caiu devido a graves divergências no seio do MFA. Assim nasceu o VI Governo Provisório que tomou posse em19 Setembro de 1975 e durou até 23 Julho 1976, quando acabaram os “governos provisórios” e tomou posse o primeiro governo constitucional saído de eleições que o Partido Socialista venceu.
Melo Antunes era o ministro dos Negócios Estrangeiros. Apanhou a Independência de Angola. Não reconheceu o novo país. Portugal não se fez representar na cerimónia da Proclamação proferida pro Agostinho Neto, aos primeiros segundos do dia 11 de Novembro de 1975.
Importantíssimo. O Presidente Spínola, nas suas andanças golpistas contra as independências das colónias, teve um encontro com o Presidente Nxon, na Base das Lajes, Ilha Terceira, Açores, no mês de Junho de 1974, vigência do I Governo Provisório. Washington apoiou o “federalismo” mas exigiu a exclusão do MPLA de todo o processo, por ser uma organização comunista.
Spínola teve um encontro com Mobutu na Ilha do Sal no dia 15 de Setembro de 1974 para combinarem a partilha de Angola no âmbito do federalismo. No dia 28 de Setembro Spínola desencadeou o golpe de estado e foi derrotado. Em Angola o Almirante Rosa Coutinho desmantelou as organizações que defendiam a independência branca. Jonas Savimbi virou-se definitivamente para o regime racista da África do Sul.
Antes de dar a palavra a Melo Antunes, é preciso mostrar uma aldrabice infame de Ernesto Mulato. Ele diz que “Portugal tinha forças suficientes em Angola, que podiam travar toda e qualquer provocação de qualquer partido político, mesmo dos três movimentos ao mesmo tempo”. Falso. Logo após o 25 de Abril de 1974 as tropas recusaram qualquer operação armada. Em Cabinda forças mercenárias (franceses) tomaram o posto fronteiriço de Masssabi.
A província estava altamente militarizada, Nem um soldado foi enfrentar os invasores. O Almirante Rosa Coutinho assumiu essa responsabilidade, Desde então o Coronel Fontão, do MFA, assumiu a defesa do território nacional. Mas em conjunto com os guerrilheiros do MPLA. Não tinha tropa portuguesa disponível para combater.
Na sequência da cimeira da Ilha do Sal, entre Spínola e Mobutu, o General Altino de Magalhães retirou com as suas tropas para Luanda, deixando todo o Norte de Angola ao dispor do ditador zairense. Agostinho Neto chamou a esta política uma “ invasão silenciosa”. O General Silva Cardoso entregou a Mobutu a Base Aérea do Negage e o aeródromo do Toto. Em troca, FNLA e UNITA propuseram-no para Alto-Comissário durante o Governo de Transição! A base do Negage era a segundo do país. O aeródromo do Toto tinha um elevado valor estratégico na invasão silenciosa do Norte de Angola.
Nos anais da infâmia fica a entrega de todos os quartéis e bases aéreas à UNITA no Leste de Angola, desde o Ninda ao Lucusse, do Luena ao Cazombo. Tudo oferecido com armas e munições! Um a cena pícara. Um batalhão do Leste partiu com destino a Luanda. O comandante recebeu ordens para seguir a via Luena, Saurimo, Malanje, porque Savimbi tinha tomado de assalto a cidade do Huambo. Desobedeceu e seguiu rumo ao planalto Central.
Estava tido combinado. As tropas
da UNITA interceptaram essa unidade. Recolheram as armas e obrigaram todos a
despir as fardas. Chegaram ao Huambo em cuecas! Era com estas forças que
Portugal ia combater contra os milhões de angolanos que apoiavam o MPLA?
Impossível. Ninguém combate contra milhões. E quem combater é derrotado. As
tropas portuguesas recusaram dar um tiro a seguir ao 25 de Abril. Todos queriam
regressar vivos ao seu país. Portugal não tinha força nenhuma
Melo Antunes concedeu uma entrevista a Maria João Avilez. Leiam as partes que desmentem Ernesto Mulato:
“A tarefa da descolonização transcendia o papel de um ministro dos Negócios Estrangeiros, foi entendido que alguém do MFA devia ocupar-se prioritariamente da questão da descolonização. As conversações com os movimentos da Guiné, S. Tomé e Cabo Verde começaram e acabaram por ser levadas a termo por Mário Soares, com uma reduzida participação minha. Ao passo que Angola e Moçambique foi o contrário”.
“As acções mais importantes da descolonização tinham a orientação do MFA e da sua Comissão Coordenadora. E eram contra o que estava na cabeça do general Spínola e provavelmente com algumas reticências por parte do ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, pelo menos no caso de Angola e Moçambique cujas conversações decorreram em Dar es Salam e Lusaka.”
“No processo de transição em Angola ficou definida e clara uma linha de neutralidade activa. Equidistância em relação aos partidos, porque éramos parte integrante do processo. Mas não há nada de historicamente verificável que leve a pensar que o processo correu como correu porque houve cumplicidade activa entre MPLA e MFA. De resto houve em Angola durante esse tempo uma Comissão Coordenadora do MFA com um papel activo e importante no sentido dessa neutralidade. O que até gerou incompreensões”.
“O MPLA violou claramente os acordos porque houve provocações inacreditáveis da UNITA e da FNLA. Falei com Agostinho Neto e as coisas não correram bem, tanto que durante bastante tempo tive dificuldades de contacto com elementos do MPLA mais ligados a ele”.
“A FNLA avançou com forças militares, mercenários e forças zairenses, além de agentes da CIA, até quase ao Caxito, perto do assalto final a Luanda”.
“ Falei com Savimbi em Luanda e Lusaka, com o Agostinho Neto em Luanda para conseguir um acordo entre MPLA e UNITA. Mas o que separava aqueles movimentos era tão profundo que mesmo perante situações que aconselhavam soluções pragmáticas foi impossível o acordo”.
“ Kissinger e Ford tinham uma obsessão, era saber o grau de dependência de Neto em relação à URSS. Disse-lhes que ele era de formação marxista e que todas as suas simpatias iam para lá. Mas eu estava também muito convencido do forte lado nacionalista dele e privilegiava esse lado em relação ao marxista. Deviam pois apoiá-lo para dar azo a um projecto nacionalista libertado das cangas ideológicas”.
Ontem
* Jornalista
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