terça-feira, 23 de abril de 2024

Angola | A Essência das Coisas Básicas – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A direcção do MPLA esteve reunida no fim -de-semana e o líder do partido meteu água e luz na agenda. Tirando esse devaneio, usou o populismo para esvaziar a greve dos funcionários públicos, particularmente médicos, professores e funcionários dos Tribunais.  A Ordem dos Advogados de Angola pôs equipas acompanhando as paralisações laborais numa tentativa de travarem violações dos direitos dos grevistas como antes aconteceu.

A Ordem dos Advogados, num comunicado oficial, afirma que na greve geral anterior (Março) “sindicalistas e grevistas foram agredidos, detidos e intimidados, colocando em causa a liberdade fundamental sindical”. Isto aconteceu no país onde o MPLA é maioritário na Assembleia Nacional. O seu cabeça de lista às eleições de 2022 foi eleito Presidente da República e Titular do Poder Executivo. João Lourenço anunciou aos dirigentes do seu partido que vai comprar consciências à razão de 30 mil kwanzas por cabeça. A resposta foi dada hoje.

Na reunião, João Lourenço queixou-se de ingerências da ONU no caso de “um cidadão angolano” que tem no estrangeiro dois mil milhões de dólares. Pita, o grós incompetente, já tinha cantado a mesma canção do bandido. Os Media Públicos afinaram pela mesma medida. Um canal de televisão fez uma infografia com o mapa-mundo e os pontos onde alegadamente o empresário Carlos São Vicente tem dinheiro depositado. Os jogadores de xadrez costumam pensar muito à frente para desferirem o xeque-mate. Estes xadrezistas são primários, vivem de percepções e desceram de mensageiros para mujimbeiros, estafetas ou recadeiros.

Infografias é comigo. Imaginem que punha a circular uma com os locais onde os dez mais ricos de Angola, depois de 2017, têm guardado o dinheiro. Calma, ainda não desci a esse nível. Mas teria muito sucesso uma infografia com os locais em Angola onde João Lourenço, filho de honrado enfermeiro, tem os bens móveis e imóveis. Setas em todas as direcções. Muitos mundos e fundos. Ainda bem.

O meu sonho dourado é que todas as angolanas e todos os angolanos sejam milionários. Não vá Pita, o grós incompetente, ir incomodar o Presidente da República, informo que o Ministério Público tem de provar a riqueza ilícita. A inversão do ónus da prova é mesmo muito proibida. Os filhos do enfermeiro Boavida estudaram tanto que foram para Portugal frequentar o ensino superior. 

Américo Boavida licenciou-se em Medicina, Diógenes Boavida em Direito. Américo deixou uma vida boa para se juntar à Luta Amada de Libertação Nacional. Diógenes exerceu a advocacia em Luanda. Um excelente advogado. O nosso primeiro ministro da Justiça. Que eu saiba, nem um nem outro fizeram fortuna. Apenas deixaram de herança os seus nomes honrados e o seu exemplo de acrisolado amor à Pátria Angolana. Estou seguro de que Américo e Diógenes Boavida foram os filhos de enfermeiro que chegaram mais alto, até na fortuna. Mas não tinham mansões, fazendas, participações em empresas altamente lucrativas que engordam à custa de ajustes directos milionários.

Um amigo com queda para os números concluiu que os dez mais ricos de Angola (lista actualizada em 2023) somam 84,9 mil milhões de dólares. No ano de 2020, Pita, grós incompetente, pediu à Procuradora-geral da República Portuguesa que lhe desse a lista das fortunas de angolanos em Portugal. O jornal Correio da Manhã (órgão oficioso do Ministério Público) noticiou que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) satisfez o pedido da PGR de Angola formalizado em Janeiro de 2020. Entregou “mais de sete mil páginas com todas as contas bancárias, bens móveis e imóveis, assim como as participações em empresas portuguesas”. Sigilo bancário? Isso é truque de branco. 

Pita, grós incompetente, é tutelado pelos fascistas portugueses que dominam o Poder Judicial. Imita-lhes os truques. Em Portugal, Otelo Saraiva de Carvalho, o comandante operacional do 25 de Abril, esteve cinco anos em prisão preventiva! No final foi absolvido. Um antigo primeiro-ministro foi preso quando chegava a Lisboa com o pretexto de que havia perigo de fuga. Está há mais de dez anos esperando uma acusação. O PGR angolano assume esses malefícios. Acaba de anunciar que a acusação contra a empresária Isabel dos Santos está pronta. Só falta mesmo a acusada ser notificada. Já lá vão sete anos e nada.

O Jornal de Angola publicou um editorial intitulado “O Caso São Vicente e a suposta notificação da ONU”. Não me choca nada que o diário generalista venha socorrer João Lourenço, o seu chefe da Casa Civil, Adão de Almeida, e os assessores jurídicos da Presidência da República, Mas fico perplexo quando no texto em causa se diz que “faz falta estudar, ler e interpretar as coisas básicas”. É preciso ter muita coragem para mandar este recado ao Presidente da República! Parabéns à direcção do jornal que é autora do editorial. 

No texto é afirmado que Carlos São Vicente foi condenado por branqueamento de capitais, peculato e fraude fiscal. Portanto, a ONU não tem nada a ver com isso. Ingerir na sentença que o condenou é falta de respeito! Não houve prisão arbitrária porque Pita, o grós incompetente, disse que o empresário foi preso “ao abrigo da lei que tínhamos”. A ONU tem de saber que Isso de meter um qualquer nas cordas é com o ordenamento jurídico angolano.

Vamos às coisas básicas que é preciso conhecer. O Conselho de Direitos Humanos da ONU foi aprovado numa Assembleia-Geral da ONU, em 2006 (Resolução 60/251). Apenas votaram contra os EUA, Israel, Ilhas Marshall e Palau. É um órgão intergovernamental composto por 47 Estados eleitos. Uma das suas funções é adoptar resoluções e decisões sobre questões e situações de Direitos Humanos. Recebe queixas de vítimas de abusos dos Estados.

O Conselho de Direitos Humanos adoptou uma resolução exigindo a suspensão de envios de armas para Israel. Não foi ouvido. Porque as resoluções do Conselho de Direitos Humanos não são juridicamente vinculativas para os Estados. Só as do Conselho de Segurança têm essa força. Faz falta estudar, ler e interpretar as coisas básicas.

O Tribunal Constitucional considerou inconstitucional o Decreto Presidencial que dava comissões de dez por cento por cada acusação, sentença condenatória e recuperação de activos. A Ordem dos Advogados de Angola considerou assim esse diploma: “Ao atribuir aos Tribunais o direito à comparticipação pelos ativos financeiros e não financeiros, por si recuperados, ficam, desde logo, maculados os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos Tribunais, bem como o direito fundamental a julgamento justo e conforme à Lei".

O Tribunal Constitucional está de acordo e por isso o famigerado decreto presidencial morreu. É preciso conhecer as coisas básicas. Estudar. Carlos São Vicente foi julgado na vigência deste decreto presidencial que põe em causa “o direito fundamental a julgamento justo e conforme à Lei”. Mancha gravemente “os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos Tribunais”. O guarda do Palácio da Justiça sabe que nestas circunstâncias a prisão de Carlos São Vicente é arbitrária e o seu julgamento está ferido de gravíssimas ilegalidades. 

O Conselho de Direitos Humanos da ONU recebeu uma queixa de Carlos São Vicente acompanhada de abundante documentação que comprova a sua inocência. Ouviu o Estado Angolano. E no final tirou as suas conclusões. Isto não é ingerência. Não é abuso. Não é afrontar a ordem jurídica interna. É simplesmente defender um cidadão que está a ser vítima de abusos do Estado. É também uma ajuda às autoridades angolanas para não voltarem a repetir abusos e crueldades.

O “Processo dos 500 Milhões” morreu porque um Acórdão do Tribunal Constitucional confirmou que foi violado “o direito fundamental a julgamento justo e conforme à Lei”. E o Decreto Presidencial “viola os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos Tribunais”. Carlos São Vicente está na mesma situação. Mas cometeu o crime de ganhar muito dinheiro. Escrevo ganhar porque se fosse verdade que “desfalcou o Estado em dois mil milhões de dólares”, no seu julgamento tinham que estar os cúmplices desse crime. Estava sozinho. Duas testemunhas que podiam explicar tudo, José Eduardo dos Santos e Manuel Vicente, foram afastadas da audiência. Porque a sentença estava lavrada previamente. 

Tal injustiça, tão graves atropelos ao Estado de Direito não causam um sobressalto cívico aos dirigentes do MPLA. Ali está instalada a mentalidade do comprador ou do cantineiro. Em Angola as grandes fortunas fizeram-se (ainda se fazem…) comprando por um milhão o que só vale cem mil. Se Carlos São Vicente fabricou tanto dinheiro sem comprar nada, então há crime! O espírito do cantineiro é diferente. Os cantineiros roubam no peso, na medida, açambarcam, vendem os produtos acima dos preços fixados nas tabelas. No final o negócio dá para comer. Se Carlos São Vicente fez fortuna, então arrombou os cofres do Estado!

Mudar é preciso, E com urgência. A direcção do MPLA corre sérios riscos de ser a comissão liquidatária do partido. Quem aceitar este papel será julgado pela História. 

* Jornalista

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