Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
A primeira liberdade que há 50 anos o Movimento das Forças Armadas trouxe aos portugueses foi a liberdade de expressão. O que é a liberdade de expressão? É a liberdade de dizer, a liberdade de discordar, a liberdade de criticar, a liberdade de apoiar, a liberdade de escrever, a liberdade de publicar, a liberdade de ler, a liberdade de ouvir, a liberdade de ver, a liberdade de divulgar, a liberdade de propagandear, a liberdade de ajuizar, a liberdade de duvidar, a liberdade de gracejar, a liberdade de escarnecer.
A liberdade de expressão é a liberdade da circulação das ideias, das mais parvas às mais inteligentes, das mais profundas às mais inconsequentes, das mais revolucionárias às mais reacionárias, das mais humanas às mais selvagens.
Este foi um direito que a população, concentrada frente ao Quartel do Carmo, à espera da rendição do ditador Marcello Caetano, decretou com efeitos imediatos logo nesse dia 25 de Abril de 1974 e que depois o país referendou na semana seguinte, no dia 1 de Maio, com a maior manifestação política alguma vez ocorrida neste país, celebrando-a por toda a parte com gritos comocionados: “Viva, viva a liberdade!”
Tudo o que se passou depois decorreu da utilização dessa liberdade de expressão e a sociedade portuguesa que construímos ao longo destes 50 anos, com os seus imensos defeitos e as suas evidentes virtudes, resultou da sobrevivência do debate político suportado no princípio da superioridade da liberdade de expressão: a liberdade de expressão foi a maior de todas as conquistas de Abril.
No dia 25 de Abril de 1974 eu era uma criança com 10 anos de idade, filho de uma família que não falava de política. Apesar disso, a lembrança que tenho desse dia é detalhada e permanente. A razão é esta: os adultos, todos os adultos à minha volta mudaram instantaneamente, numa transformação tão drástica, tão rápida e tão evidente que ficou impressa a tinta indelével na minha memória infantil. Porquê? Porque os adultos, de repente, falavam livremente, com desenvoltura, com atrevimento, com assertividade e, mesmo não percebendo muito bem sobre o que falavam, até uma criança como eu entendia que havia um “antes” e um “depois” daquele dia e percebia que o “depois” era emancipador e o “antes” era opressor.
Talvez seja por isso que, 50 anos depois, ao ver multiplicarem-se agressões à liberdade de expressão, algumas delas entretanto institucionalizadas ou oficiosamente aceites pelo poder político e económico, sinto cada uma delas como uma autêntica agressão pessoal.
É a liberdade de expressão que me dá o direito e o instrumento para combater e criticar todas a ideias que eu acho negativas neste mundo e é, por outro lado, a liberdade de expressão que me dá o direito de tentar convencer os outros da bondade das minhas ideias.
Mas aceitar a liberdade de expressão impede-me de proibir a manifestação das ideias dos outros, caso contrário terei de aceitar que os outros possam proibir a exposição das minhas ideias.
Quando a Alemanha proíbe e criminaliza uma conferência que o antigo ministro grego Yannis Varoufakis ia dar em Berlim sobre a questão palestiniana; quando vários artistas e académicos são penalizados, cancelados, nos EUA e na Europa Ocidental, por terem posições políticas críticas da NATO ou de Israel; quando jornalistas de países ditos democráticos são perseguidos e presos por reportarem o “lado errado” dos conflitos; quando se lançam antigos livros e filmes, clássicos, “limpos” de vocabulário ofensivo; quando a coberto da proteção contra as fake news se impediu a crítica aos confinamentos da covid-19 e aos efeitos secundários de vacinas pobremente testadas; quando se admitiu que o professor russo Vladimir Pliasso fosse despedido da Universidade de Coimbra por razões ideológicas; quando em vez de educarmos e combatermos socialmente a linguagem não-inclusiva a tentamos impor à força, pela lei; quando nenhum político tenta reverter a decisão europeia de cancelar o canal russo RT; quando vejo o Facebook censurar durante uns dias a página de um partido que é meu inimigo político, o Chega (apesar de que, talvez, esse partido gostasse de limitar a minha liberdade de expressão); quando vejo, também em Portugal, multiplicarem-se todos estes movimentos, à esquerda e à direita, de limitação da liberdade de expressão vejo, simultaneamente, a aproximação do fim de uma ideia essencial do 25 de Abril que agora celebramos, vejo o fim da liberdade de expressão, vejo o fim de uma grata memória de infância, vejo o fim de toda uma conceção social de boa parte das nossas vidas.
* Jornalista
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