(Na imagem à esquerda André Ventura, chefão do Chega, faz a saudação nazi - para mais tarde recordar. Se ele não fosse nazi-fascista consideram que seria capturado naquela posição repelente durante o terceiro congresso do partido Chega? E quantas vezes mais repetiu?Tenham muita vergonha, milhão e pouco de portugueses eleitores! - Redação PG)
Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
Se há, como diz o ex-ministro da Educação João Costa, “um momento a partir do qual o silêncio é cúmplice”, que dizer de quem dá microfone a discursos de incitação ao crime e ao ódio? Que dizer de quem continua a chamar incendiários para “comentar” e de quem aceita “debater” com eles?
Há um motorista da Carris internado com queimaduras graves por ter sido atingido por um cocktail molotov. À parte de quem lançou o engenho incendiário, não haverá, suponho, neste país quem não considere uma tragédia terrível o ocorrido, e o perpetrador ou perpetradores culpados de um crime indesculpável.
Isto assente, imagine-se que víamos na TV alguém a defender uma condecoração para o responsável ou responsáveis, ou a dizer “se calhar, se houvesse mais gente a lançar cocktails molotov a motoristas da Carris este país estava melhor”. Impensável, não é? A tal ponto impensável que, caso alguém proferisse semelhante barbaridade num estúdio, ou frente a microfones dos jornalistas, a reação dificilmente não passaria por um repúdio imediato
Ninguém estranharia que as TV cortassem o direto, que quem assim falasse fosse expulso do estúdio e que houvesse uma clarificação imediata da relevância penal das afirmações.
E decerto ninguém estranharia – pelo contrário – que quem dissesse tal enormidade fosse banido de programas de TV, que eventuais co-debatentes se recusassem a ir a estúdio com tal companhia e se discutisse, no meio jornalístico, como lidar com situações em que os jornalistas, sobretudo os de TV e rádio, são usados como divulgadores, logo propiciadores, de crimes em direto.
Ninguém estranharia que se sucedessem as demarcações indignadas de todos os comentadores, partidos, instituições democráticas. Ninguém estranharia que o Presidente da República se pronunciasse, desgostado e solene, sobre tal repugnância.
Ninguém estranharia, digo eu. Desculpem o sarcasmo. É que, como se sabe, um homem morreu e houve quem se tivesse, aos microfones das TV e até dentro de um estúdio, comprazido com a sua morte, aplaudindo o polícia que o matou, afirmando que nem sequer devia existir investigação e que o agente deveria receber uma condecoração. Houve quem chamasse “bandido” ao morto, quem o acusasse de estar a cometer ou a preparar-se para cometer crimes quando foi baleado, quem escrevesse “menos um bandido”. Houve quem dissesse: “Se calhar, se os polícias disparassem mais a matar, o país estava mais em ordem”.
Sim, sei o que estão a pensar. Lançar um cocktail molotov para dentro de um autocarro e para cima de uma pessoa não é o mesmo que um polícia disparar sobre alguém – como sucedeu na segunda-feira 21 de outubro na Cova da Moura, quando o cidadão negro de 43 anos Odair Moniz morreu baleado por um agente da PSP. Porque no primeiro caso se trata, sem sombra de dúvida, de um crime, e no segundo pode ter existido justificação para a ação do polícia: não sabemos se agiu em legítima defesa ou julgando que agia em legítima defesa.
É isto: não sabemos. Pelo que uma reação de regozijo e de aplauso perante a morte de um homem, propor condecorar quem o matou, defender que nem sequer devia haver inquérito, apelidar o morto de “bandido”, acusá-lo de estar a cometer crimes ou a preparar-se para os cometer no momento em que foi baleado, dizer que se calhar se a polícia disparasse mais a matar o país estava melhor (aquilo que fizeram André Ventura, o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, e um assessor do partido, Ricardo Reis), só pode ser considerado tão grave como a situação que descrevi acima.
Com a agravante de que quem disse essas coisas não foram cidadãos quaisquer. Foram pessoas com obrigações especiais de observância da lei e da Constituição, duas das quais beneficiando de imunidade parlamentar, ou seja proteção especial, em relação às consequências criminais do discurso. Foram representantes políticos do povo português, cujo salário é pago por todos nós.
Estas pessoas, cuja responsabilidade é muito maior do que a da maioria dos cidadãos, sabem exatamente o que estavam a dizer e fizeram-no com um claro objetivo: insultar e caluniar o morto e exaltar a ação policial que lhe causou a morte, exacerbando o sentimento de revolta daqueles que sentem próximos do homem baleado e “apoiando” quem nas forças policiais pugna por um regime de exceção para os polícias no qual haja carta branca para a violência. Antes de qualquer investigação, estas pessoas quiseram dizer ao país que um homem negro baleado na Cova da Moura por um polícia só podia ser um bandido, e que um polícia que mata só pode ter razão para matar.
Não é por acaso. É isto que o partido que representam e dirigem quer, desde sempre (seguindo o guião trumpista, que por sua vez segue guiões bem mais antigos): incendiar a sociedade portuguesa, acicatar as clivagens raciais, acicatar o ódio, celebrar uma ideia autoritária de Estado consubstanciada numa polícia repressora e brutal, acima da lei e com licença para matar.
Caso existam dúvidas, é reparar que isso mesmo estava, com todas as letras, no primeiro programa político do Chega, de 2019, no qual se afirmava a “urgência” de extinguir “a figura do excesso de legítima defesa (…) em caso de ameaça de danos graves por parte de suspeitos insubmissos em ações formais de serviço das autoridades dos policiais e contra estas” e se propunha a “ampliação” do conceito de legítima defesa e a diminuição da “amplitude do conceito de excesso de legítima defesa”.
Traduzindo: no caso dos polícias, qualquer ação violenta, incluindo o uso da arma de fogo, contra cidadãos passaria a beneficiar, à partida, de uma presunção de legitimidade e legalidade. Era isto que o mesmo programa apresentava como “reforço da autoridade moral do corpo policial, desagravando-o da tácita suspeita de culpabilidade a priori”. Inventando esta delirante “suspeita de culpabilidade” das polícias – que, de resto, a história dos julgamentos de agentes policiais por disparos mortais e outras situações de violência desmente totalmente –, o Chega visava apresentar-se como o grande defensor dos polícias.
Sabemos bem que, infelizmente, muitos polícias se reveem nesta ideia. E que há – basta estar nas redes sociais para o constatar – gente que defende que é assim que este país “ficaria mais na ordem”. Mas haver mais ou menos gente a defender isso não torna aquilo que defendem aceitável.
Defender um regime onde se podem matar cidadãos a bel-prazer por causa da cor da pele, do estatuto social, do sítio onde estão ou moram ou das ideias políticas que têm – recorde-se que o assessor do Chega escreveu “menos um bandido, menos um eleitor do BE” – é ser inimigo do Estado de Direito, da democracia, da segurança e da paz. Que haja quem perante isso se cale, finja que não viu – como o governo – ou quem, como o presidente da República, reduza o assunto a “uns acham uma coisa, outros acham outra”, como se o viva la muerte, o elogio do homicídio e da execução extrajudicial coubessem na discussão democrática, ilustra na perfeição aquela máxima sobre o que é necessário para que o mal triunfe.
Mas há quem vá mais longe ainda – há quem faça pior que calar-se. Falo dos jornalistas. Falo da minha profissão: exaltados sempre como indispensáveis guardiões da democracia, somos nós que estamos nas primeiras linhas desta batalha. Somos nós que empunhamos os microfones e as câmaras, somos nós que estamos na régies das TV a dirigir a emissão, somos nós que decidimos o que vai para o ar, o que é difundido, o que deve ou não chegar aos nossos cidadãos. Cabe-nos mediar – não servir de pé de microfone a proclamações criminosas e a apitos de cão. Não chegar fogo a quem tem na mão um cocktail molotov.
Cabe-nos saber escolher entre a decência e a indecência. Porque não, não vale tudo o mesmo, e não, não devemos aceitar que a “liberdade de expressão” seja uma desculpa para a feira das audiências. A não ser que não nos importemos de ter sangue nas mãos.
* Grande Repórter
Sem comentários:
Enviar um comentário