quinta-feira, 14 de junho de 2012

LÍNGUA, CABO VERDE




Rosário da Luz - Expresso das Ilhas (cv), opinião

Na segunda metade do Século XX, o mundo assistiu a um boom de identidades nacionais, nascidas num contexto geopolítico que impunha relações multi-laterais e uma comunicação intensiva entre estados. A sobrevivência neste contexto exigia aos estados pós-coloniais o domínio de um conjunto de competências que se encontravam ancoradas nas línguas dos ex-colonizadores, e os ambientes linguísticos nacionais foram constituídos em foco de estratégia. Várias dinâmicas - tanto complementares, quanto antagónicas - agiram sobre as opções aplicadas ao terreno linguístico pelas ex-colónias europeias.

As fronteiras coloniais albergavam normalmente um conjunto de línguas locais - sendo Cabo Verde um caso muito particular neste aspecto - demograficamente estabelecidas, mas sem qualquer expressão extra-regional.

Os novos estados mantiveram maioritariamente as fronteiras coloniais e a língua colonial enquanto língua oficial; tinham como modesto capital uma tradição administrativa, judicial e académica que era adquirida e documentada na língua do antigo colonizador. Esta transcendia as fronteiras linguísticas autóctones, tinha expressão internacional e, portanto, constituía uma ferramenta ready to use, tanto na administração interna quanto nas relações externas.

Paralelamente, as ideologias que surgiram das lutas pela autodeterminação eram marcadas pela necessidade de desconstruir as narrativas coloniais de superioridade Ocidental e reabilitar os valores culturais autóctones. Neste campo, a língua surge como um foco; e a constituição das línguas autóctones em elementos de reivindicação cultural e identitária agiu directamente sobre diversas estratégias que vieram a ser aplicadas ao terreno linguístico.

Qual tem sido a nossa gestão do nosso terreno linguístico? As línguas existem apenas em função de quem as fala; elas afirmam-se ou desaparecem - da comunidade ou do planeta - em função de processos históricos que afectam quem as fala; elas ganham ou perdem relevância relativa não em função de um valor intrínseco, mas em função das relações de poder estabelecidas entre quem as fala. A língua, para além de tudo mais que possa ser, é uma variável político-económica; e enquanto tal, é um factor determinante para a participação e para o sucesso de quem a fala nas trocas exigidas por uma existência global.

Na minha opinião, é chegado o momento de os decisores Cabo-verdianos darem uma atenção mais sofisticada á gestão desta variável. Precisamos urgentemente de nos engajar num exercício de perspectiva:

• Que encara o terreno linguístico como uma variável estratégica, e tenta perceber para que serve a língua ao cidadão e ao Estado,

• Que está ciente de valores subjectivos e simbólicos, mas livre de filtros demagógicos;

• Que constitui estratégias de promoção linguística em focos legítimos da aplicação de recursos públicos a
montante, com o objectivo de gerar retornos económicos mensurá-veis a jusante.

A sociedade Cabo-verdiana contemporânea subscreve largamente ao desenvolvimento económico enquanto narrativa estruturante. Se as dinâmicas políticas e civis elegem um centro económico, as estratégias de promoção linguística, dada a sua importância fulcral, não podem (como têm feito) responder exclusivamente a conveniências administrativas ou a valores simbólicos; elas têm que ser completamente permeáveis a considerações técnicas e económicas. É nessa perspectiva que deveríamos analisar o terreno linguístico Cabo-verdiano, seus potenciais e fraquezas, e a validade das opções que temos aplicado.

O Terreno

O terreno linguístico.cv tem essencialmente três campos: o Cabo-verdiano, língua materna comum á totalidade dos residentes e ás primeiras gerações da Diáspora; o Português, língua administrativa e académica, na qual se encontra ancorada a generalidade dos serviços públicos e das trocas informacionais; um bloco a que chamarei Línguas Internacionais, ferramentas essenciais numa sociedade que é forçada a ter a internacionalização como prioridade.

O Cabo-verdiano

O momento vivido pela nossa língua materna é extremamente positivo. É sabido que a diversidade linguística do planeta está a encolher; que as línguas das"margens" estão a desaparecer; mas a língua Cabo-verdiana está em plena expansão. Nos últimos 30 anos, o seu número de utilizadores dobrou; o crescimento da produção publicitária e audiovisual nacional fez disparar a sua quota nas trocas informacionais nos média; e, fundamentalmente, existe um esforço académico concertado no sentido da sua formatação literária.

Contudo, como é habitual em Cabo Verde, o discurso em torno de questões fundamentais está enraizado na demagogia, não na análise racional ou na estratégia pragmática. Para o grosso dos manifestantes neste campo, a língua materna não pode ser examinada como ferramenta porque está ocupadíssima no seu papel simbólico-identitário: o dever exaltado da sociedade é "valorizar" o Cabo-verdiano; oficializá-lo, operacionalizá-lo como língua administrativa e académica, para que os seus utilizadores monolingues não mais sejam relegados para a exclusão linguística.

A verdade é que nunca esteve mais firme no país a utilização generalizada do Cabo-verdiano enquanto ferramenta pública de comunicação. Sabemos que é legitimo exigir aos profissionais dos serviços de saúde que sejam capazes de falar aos doentes na sua língua materna. Mas será razoável empreender a oficialização do oficioso, sem qualquer urgência prática e ignorando os custos formidáveis que o processo acarretaria - tanto na vertente da habilitação do Cabo-verdiano á oficialidade, quanto na vertente da não apropriação de outras línguas com valores de troca melhor estabelecidos?

Não passaria pela cabeça de nenhum músico Cabo-verdiano compor em Português; temos a consciência de que a língua Cabo-verdiana é a ferramenta privilegiada das nossas comunicações mais expressivas e sofisticadas. Posto isto, as nossas responsabilidades consistem em estruturar, aprofundar e refinar o nosso domínio da língua materna; não em enfeitá-la com actos administrativos, da família demagógica dos que elevam freguesias rurais ao estatuto de cidades, com custos significativos, mas sem qualquer mais valia real.

O Português

Cabo Verde é um país com meio milhão de residentes, mais Diáspora, que constituem os únicos utilizadores da língua Cabo-verdiana no Planeta; tem uma ânsia enorme de qualificação do seu capital humano, mas não tem condições de produzir ou traduzir o material técnico e didáctico correspondente á procura académica de informação. Sem sequer referir a questão basilar da produção de conhecimento, o único esquema que nos garantirá o acesso adequado á informação e á inovação é a pertença a uma comunidade linguística com peso.

Existem 250 milhões de falantes nativos da língua Portuguesa no mundo; este número não só viabiliza o acesso de cada um destes indivíduos a informação abrangente e sofisticada, como possibilita a partilha entre 250 milhões de potenciais produtores de conhecimento. Precisamos entender que, para além da conveniência administrativa que estabeleceu o Português como língua oficial, existem várias conveniências estratégicas no domínio continuado da língua Portuguesa pelos Cabo-verdianos. No momento presente, estamos a suportar custos gravosos pelo completo abandono a que votamos as nossas competências na língua Portuguesa; se não revitalizarmos este canal, seremos aniquilados pelas nossas limitações na plataforma informacional a muito curto prazo.

As Línguas Internacionais

O teórico Canadiano J. Carr propõe como analogia que nas trocas internacionais as línguas funcionam como moedas de peso variável. Pensemos na língua Cabo-verdiana como moeda nacional e nas línguas Internacionais como divisas externas. Assim como não podemos importar com escudos em vez de dólares, a inexistência de uma reserva linguística para além do Cabo-verdiano limitaria drasticamente a nossa participação nas oportunidades de troca criadas pelo mundo global.

Os únicos surtos de prosperidade que Cabo Verde jamais conheceu resultaram de conjunturas de internacionalização. A não promoção das línguas internacionais corresponde ao reforço do nosso estatuto periférico e, para Cabo Verde, o fecho linguístico é um risco irresponsável. A responsabilidade consiste na revisão dos elementos que historicamente caracterizaram o nosso sucesso económico, numa sensibilidade qualificada para a participação económica contemporânea e no desenvolvimento de estratégias de promoção linguística de acordo com a sua lógica.

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