Marta F. Reis – i online
“Na elaboração e na adopção de medidas do Memorando foi tido em conta o impacto na saúde e no bem-estar? A resposta é não”
O debate em torno do Serviço Nacional de Saúde tem oscilado entre os que acusam a sua destruição e os que defendem a austeridade como caminho para o país continuar a ter cuidados de saúde gratuitos e universais, tendo o ministro da Saúde repetido já quatro vezes que a sustentabilidade não está garantida. O relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, que hoje pelas 10h será apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian – tendo Paulo Macedo confirmado presença – vem agitar as águas. A começar pela nota introdutória: “O título do presente relatório ‘Crise & saúde. Um país em sofrimento’, (d)enuncia de forma deliberada e inequívoca as circunstâncias em que foi elaborado.”
O OPSS, uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública, o Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra e a Universidade de Évora publica anualmente um relatório sobre uma temática actual nas políticas de saúde em Portugal. Este ano o impacto da crise na saúde tornou-se incontornável. Da análise do momento pré-resgate aos 12 meses de troika, o trabalho, com coordenação científica de Constantino Sakellarides, procurou sintetizar teoria sobre o impacto da crise no bem-estar e produzir dados concretos para acusações que têm sido feitas à tutela pela oposição, sempre desmentidas, de que os utentes estão a ter mais dificuldades de acesso a consultas, se sentem inibidos pelas taxas moderadoras ou não aviam as receitas na íntegra.
As conclusões de pequenos estudos realizados no âmbito deste relatório permitem perceber que a austeridade parece estar a ter efeitos concretos na relação entre os portugueses do SNS (ver caixas ao lado). Trata-se contudo de percepções e o observatório acusa a tutela de passividade a avaliar os dados sobre a situação da saúde em Portugal.
O observatório diz ter pedido ao Ministério da Saúde informação sobre se existe algum sistema de monitorização dos efeitos da crise na saúde, não tendo tido resposta, e sublinha a inexistência de respostas locais para fazer frente aos efeitos esperados da crise na saúde, seja no aumento das perturbações mentais seja das doenças infecciosas. “Nas presentes circunstâncias seria de esperar que os centros de saúde, em estreita colaboração com a acção social e outros dispositivos de proximidade, fossem mobilizados para desenvolver estratégias locais integradas para responder aos desafios”, lê-se no documento. Ao contrário do que seria desejável, os investigadores lembram que a reforma dos cuidados primários – a mais importante das últimas décadas – corre sérios riscos de degradação. Mas os sinais de degradação do SNS não ficam por aqui: os investigadores concluem que há indícios de situações de “racionamento implícito nos serviços de saúde”, decisões restritivas de decisores pressionados para limitar despesa além daquilo que são instruções explícitas. O relatório cita três exemplos: doentes a fazer fisioterapia não isentos de taxas moderadoras que deixam de fazer tratamentos aos primeiros sinais de melhoria para reaverem parte da taxa que têm de pagar ao início, meses à espera para iniciar as sessões com a justificação de que se aguarda autorização superior e relatos de mudanças de comportamento perante resultados de análises clínicas. Segundo o observatório, alguns profissionais, perante resultados de análises que até aqui estavam associados a determinados tratamentos, estão a adiá-los para fases mais tardias. “Não é função do OPSS investigar mais profundamente estes indícios. Contudo, são indícios de situações que podem ter sérias repercussões na saúde das pessoas, pelo que não podem deixar de merecer atenção muito especial”, pode ler-se.
Europa falhou Uma das posições mais críticas do observatório tem destinatários mais abrangentes que os decisores nacionais. O debate é lançado em forma de pergunta: “Na elaboração e na adopção das medidas que constam do MdE foi tido em conta o seu impacto na saúde e no bem-estar dos portugueses? A resposta é obviamente não.” Aqui o OPSS sustenta que é preciso pedir responsabilidades à parte europeia da troika. Os investigadores sustentam que um dos objectivos mais importantes a nível europeu tem sido superar a situação “tão frequente como inaceitável de se tomarem decisões de natureza financeira sem o cuidado de saber quais os seus efeitos na saúde das populações, para só tardiamente reconhecer os efeitos negativos dessa omissão”. Remetem aqui para a primeira vez que este princípio foi reconhecido, no Tratado de Maastricht (1992).
A questão que talvez hoje seja apresentada directamente a Paulo Macedo ainda não teve resposta em mais nenhum país intervencionado: “Como foi possível as instituições europeias integradas na troika ignorarem este princípio?” Para o observatório, as prioridades financeiras sem avaliação do impacto no bem-estar e na saúde têm dominado a agenda política por mais tempo do que é legítimo. “É natural que na altura da elaboração inicial do MdE, a conjuntura de crise aguda de refinanciamento requeira decisões financeiras imediatas que porventura não se compadecem com outro tipo de considerações. No entanto, é mais difícil compreender a ausência da aplicação destes princípios seis ou 12 meses depois, como se observa em Portugal, e ano e meio ou dois anos depois, como ocorre, respectivamente, na Irlanda e na Grécia”, avaliam os investigadores. A alternativa, sugerida no relatório, pede “decisões mais inteligentes” ao governo, informadas por análises antecipatórias dos impactos. “As dificuldades do sistema de saúde português aumentarão significativamente sem a reavaliação do conjunto de medidas do Memorando com a troika”, avisam.
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