quinta-feira, 14 de junho de 2012

Saúde social em risco. “Há instituições a trabalhar desde Janeiro sem receber um tostão”



Marta F. Reis – i online

Instituições de solidariedade social na saúde vão criar uma federação e pedir parcerias mais transparentes e agéis com o Estado

Várias instituições de solidariedade social na área da saúde reúnem-se hoje em Lisboa para lançar as bases de uma federação e pedir diálogo ao governo. Duarte Vilar, director-executivo da Associação para o Planeamento Familiar, e Eugénia Saraiva, presidente da Liga Portuguesa contra a Sida, fazem parte do grupo promotor do encontro, que inclui ainda o Instituto Português de Reumatologia, o Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva e a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal. Áreas diferentes unem-se com um pano de fundo preocupante: ainda não há financiamento previsto para a actividade das 300 IPSS na saúde no próximo ano e algumas já estão em risco de fechar.

Pedem uma mudança profunda na relação com o Ministério da Saúde.

Eugénia Saraiva: Precisamos de ser ouvidos, respeitados e acarinhados. Queremos diálogo, e não ser o parente pobre do Ministério da Saúde.

Sentem isso?

E.S.: Sim. Existe o mito de que quem vai para as instituições de solidariedade social não tem emprego ou não sabe fazer nada.

Qual é a origem do mito?

Duarte Vilar: A responsabilidade é nossa também. A criação de uma federação, que vamos discutir no encontro, resulta da necessidade de dar visibilidade a um sector importante na saúde.

São 300 instituições...

D.V.: Todas têm uma história muito rica, feita de pessoas que, perante a ausência de respostas no sector público, sentiram necessidade de se organizar. De associações de doentes que dão resposta a populações com patologias específicas a instituições que trabalham no âmbito da prevenção. Estamos no cerne da prevenção e dos cuidados junto de grupos vulneráveis, sejam os trabalhadores sexuais sejam as populações migrantes, pessoas que passam nas malhas do serviço de saúde.

Como está o financiamento do Estado?

D.V.: Há duas formas: acordos para a prestação de cuidados e financiamento de projectos. É muito complicado, são financiamentos definidos anualmente e algumas IPSS estão a prestar cuidados desde Janeiro sem receber um tostão, estão a trabalhar a descoberta. Deviam ter recebido no primeiro trimestre. E não se trata de prestar cuidados a meia dúzia de pessoas, é o caso por exemplo da associação dos diabéticos.

Qual é a justificação desse atraso?

D.V. Bloqueios e démarches burocráticas.

Quantas instituições já fecharam?

D.V. Estamos a enviar um questionário para fazer o ponto de situação. Demos uma escala de 1 a 5: 1 para iminência de falência e 5 para situação estável. O que posso dizer, com base em algumas respostas, é que só uma diz estar estável e a maioria considera-se no nível 2. A maioria acha que em 2013 pode fechar porque não foram abertos concursos de financiamento. Estes concursos são regulados pelo Decreto-Lei 186/2006, que não tem sido devidamente cumprido e o dinheiro não chega a tempo das actividades previstas.

Porquê?

D.V.: À excepção do financiamento de Projectos e Acções no âmbito do Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infecção VIH/Sida (ADIS), que transfere verbas mensalmente, há outros que pagam contra factura e outros que transferem o financiamento em quatro tranches. Depois de cada tranche é preciso um relatório técnico-financeiro para desbloquear a seguinte. O Ministério da Saúde demora meia dúzia de meses a analisar os relatórios. Como há atrasos, as instituições só recebem duas tranches. O que não se recebesse chegava no ano seguinte, mas este ano fomos informados de que deixa de contar. A Associação para o Planeamento Familiar recebeu a primeira de 2011 em Agosto e a segunda em Janeiro deste ano.

Mantêm-se esses atrasos?

D.V.: A minha associação ainda não recebeu nenhuma tranche de 2012. O dinheiro vem todo do ministério. O que exigimos é que se ponham de acordo. Antigamente as agências de financiamento estavam cada uma para seu lado, hoje estão todas na Direcção-Geral da Saúde. Não há justificação para estes desencontros.

E.S.: Se existem boas práticas, como é o caso do ADIS, o que queremos é homogeneizar. Mas é preciso uma reformulação mais profunda: somos financiados para projectos mas a necessidade destes grupos-alvo faz com que as nossas instituições estejam a prestar cuidados de continuidade, que deveriam ser alvo de contratualização do Estado, em articulação com a Segurança Social.

Existe uma definição do que se pretende das IPSS no sistema de saúde?

D.V.: O Estado foi definindo avulsamente o que queria. O Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho em 2008/2009 que homogeneizava estas práticas. Queremos conhecer as suas propostas e dialogar.

E.S.: As IPSS não estão sempre a pedir e não vêem do outro lado o inimigo. Queremos um diálogo franco.

Sentem que são tratados como lóbi ou como parceiros?

D.V.: Depende. A minha associação faz 45 anos. É anterior ao SNS. Trabalhamos em parceria com a DGS praticamente desde que nascemos e sabemos que não nos olha como lóbi. Mas às vezes olham-nos como estruturas que querem dinheiro, quando somos organizações criadas por cidadãos para dar respostas que não existiam no âmbito da promoção da saúde, que o Estado não faz. O Estado ao apoiar projectos está a compensar serviços que prestamos em complementaridade com o SNS.

Qual é o orçamento das IPSS da saúde?

D.V.: Menos de meio por cento do orçamento da saúde. Há uma ameaça real de em 2013 tudo ficar reduzido a cinzas. Estamos francamente preocupados.

Seria um problema de saúde pública?

E.S.: É um problema de saúde pública quando há instituições em vias de encerrar. Daí termos convidado os políticos, para percebermos os custos e os benefícios destas instituições. Não queremos ser mais um problema. Queremos ser avaliados e cumprir objectivos. Queremos ser contratados de forma efectiva e transparente e que o Estado olhe para nós como factor de economia de saúde e que envolva as instituições da sociedade civil como parceiros responsáveis e especializados.

A federação arranca até ao fim do ano?
D.V.: É urgente. Senão continuamos sem voz. Na próxima semana vamos pedir audiências a diferentes instâncias, ao ministro, ao Presidente da República e à Provedoria da Justiça.

Não vão chegar palavras?

D.V.: A reformulação tem de ir para cima da mesa e é preciso que a legislação existente se cumpra e bem. Queremos concursos este ano e que se cumpra o contratualizado de uma forma mais ágil.

Sabiam-se instituições tão próximas?

E.S.: Estamos unidos pela mesma causa: continuar a existir. E não é só pelo trabalho que damos, mas pelas necessidades. Nestas associações não se trabalha só entre as 10h e as 18h30, reunimo-nos à hora de almoço e de jantar. Se tivéssemos de pagar horas extra...

D.V.: Imagine-se pagar horas pelas brigadas de rua nocturnas no centro histórico do Porto, junto de trabalhadores sexuais ou sem-abrigo. Poupamos muito dinheiro ao Estado e fazemos um trabalho que o Estado tem dificuldade em fazer pelas suas próprias estruturas. Sempre foi assim e, numa situação de cortes e racionalização, mais dificuldade haverá.

E..S.: Sentimos que não estamos a trabalhar com o Estado, estamos a trabalhar para o Estado. É importamos uma articulação efectiva. Não estamos em altura de virar as costas.

Mas há uma noção do que representam como um todo?

D.V.: Nem as instituições conhecem bem o trabalho global. Uma das prioridades da federação será um levantamento rigoroso de quem somos, do que fazemos, de quantos voluntários mobilizamos.

Pode ser uma lacuna quando está em causa defender um orçamento...

D.V.: Por isso não pretendemos dizer ao MS que queremos tanto. Aquilo de que precisamos representa muito pouco no orçamento da saúde. Não haver dinheiro é uma questão de reflexão e escolha política. O encontro surge em Junho para ver se conseguimos que até ao final abram concursos. Cada ano se define o tecto de financiamento para os concursos. Que eu saiba não há tecto nenhum definido.

Foi o primeiro passo estratégico da futura federação?

D.V.: Se não for assim, para o ano é zero. A saúde são várias partes e há uma parte que está prestes a desaparecer. É pequenina em relação às outras, mas cumpre um papel importante e está em risco de desaparecer.

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