Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
Se a Europa vier a
colapsar, será fácil indicar onde o desastre começou: foi na absurda invenção
das "troikas" e dos "memorandos" com que, em 2010, se decidiu
responder ao excessivo défice orçamental grego e à gigantesca dimensão do seu
endividamento. Foi esse o ponto da bifurcação decisiva, fatal, entre a solução
solidária e o descartar calculista.
A Europa, ao
recorrer ao FMI, não só se assumiu impotente para tratar de um problema em
rigor menor, como optou pelo egoísmo cego que tão bem caracteriza os seus
líderes mais medíocres. Faltou então discernimento aos responsáveis políticos
europeus, que tudo confundiram numa vertiginosa sucessão de diagnósticos
errados e de cálculos estrita- mente nacionais, que naturalmente só podiam
conduzir a soluções ineptas, ou mesmo - como cada vez mais se teme -,
suicidárias.
O facto, é que a
excessiva atenção à convergência dos critérios formais da moeda única (em termos
de inflação, défice orçamental e dívida pública) levou a uma imprudente
desvalorização da divergência que, ao mesmo tempo e na indiferença geral,
decorria de grandes transformações por que passavam as economias europeias,
aumentando as diferenças entre os países do Sul e do Norte da Europa.
Com efeito, a
criação do euro desencadeou uma dinâmica que, contra todas as proclamadas
expectativas, tornou as economias da Zona Euro mais heterogéneas, dinâmica que
não foi detetada e cujas consequências não foram, portanto, avaliadas. Pelo
contrário, continuou a olhar-se só para os critérios formais da convergência, e
para a sua transgressão, ignorando-se o fundamental: a crescente
heterogeneidade estrutural entre as diversas economias dos seus membros.
Primeiro foi a
Grécia, depois a Irlanda, a seguir Portugal. Países com problemas inegavelmente
graves, mas também indiscutivelmente diferentes, a exigir diagnósticos
diferenciados e medidas específicas para cada caso. Entretanto juntaram-se ao
clube dos países em grandes dificuldades a Itália e a Espanha, enquanto outros
começaram a dar sinais de perigo. Este facto parece estar a mudar alguma coisa,
desde logo porque os líderes políticos destes últimos países se recusaram a
pôr-se de cócoras.
É que, ao contrário
do que diz o Governo português e a "sua" troika, já ninguém acredita
um segundo que seja - na Europa e não só - na solução engendrada na Primavera
de 2010. A novela grega é, na verdadeira tragédia dos seus intermináveis episódios,
uma lição absolutamente clara sobre este ponto, lição que só os militantes do
fanatismo contabilístico-financista ainda não tiraram.
E também ao
contrário do que dizem muitos tagarelas nacionais, ninguém está realmente
preocupado com os "bons resultados" do "bom aluno"
português. Tudo isto é conversa fiada, como o são as lérias sobre a dívida
grega, cujo inevitável perdão está simplesmente à espera das eleições alemãs do
outono de 2013. E como esta semana se percebeu, numa situação que acabou por
ser bem humilhante para o Governo português, condições mais justas de juros e
de prazos são só para situações terminais, quando já não há volta a dar...
É por isso que as
soluções que as "troikas" e os seus "memorandos"
engendraram (concebidas mais para responder às aflições dos credores do que ao
desendividamento dos devedores) caíram no descrédito total. Dai, é preciso
reconhecê-lo, a sagaz resistência de Mariano Rajoy às enormes pressões para
pedir um resgate de forma "memorando-troikana".
M. Rajoy, com o
apoio florentino de Mario Monti e a cumplicidade de François Hollande, tem
conseguido até agora resistir e abrir outras vias para responder às
dificuldades de Espanha, tendo entretanto obtido da Comissão Europeia um
empréstimo de 37 mil milhões para reestruturar o sector bancário, com juros a
1%, enquanto (é bom lembrá-lo) nós quase pagamos quase 4%! Mas o horizonte
continua muito carregado.
Resistir é talvez o
termo que melhor caracteriza o estado de alma que está a generalizar-se nos
povos do Sul da Europa, onde toda a gente já percebeu que nos últimos dois anos
a Alemanha tem seguido uma política estritamente nacional, e que o fez e
continua a fazer colando-se cinicamente aos mercados, transformando as
contingências do momento em necessidades estruturais da sua conveniência -
assim se impondo cada vez mais a toda a Europa.
Ironia do destino
ou erro de estratégia, o facto é que o euro, que foi criado para controlar uma
assustadora Alemanha reunificada, se transformou entretanto no instrumento da
hegemonia alemã, perante a cegueira, a indolência e a irresponsabilidade dos
seus parceiros, que a História julgará severamente.
Pressinto, por
isso, que há palavras que vão aparecer cada vez mais no nosso vocabulário
corrente: "resistência" é certamente uma delas, "aliados"
será talvez a outra. E a sua conjunção devia, por si só, fazer pensar muita
gente que anda muito distraída.
Gente que ainda não
percebeu que a própria Europa está a tornar-se - mais do qualquer das clivagens
políticas tradicionais - no tópico político mais fraturante nos países da União
Europeia. Mas é justamente o que está a acontecer, com consequências facilmente
previsíveis, que é assustador pensar.
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