Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
É comum
considerar-se que a hipótese de mandar um governo abaixo dissolvendo o
Parlamento é "o poder" do Presidente. Chamam-lhe até "a bomba
atómica". Já ser a última barreira entre a aprovação de uma lei que
desrespeita fundamentos básicos da Constituição - a equidade, a
proporcionalidade, a justiça - e a sua entrada em vigor não é muito valorizado.
É pena: o sistema dá ao Presidente a prerrogativa de enviar as leis ao Tribunal
Constitucional para certificar que, mesmo quando um governo e uma maioria de
deputados decidam ignorar a Lei Fundamental, ele estará lá para se atravessar
por ela - ou seja, pelo povo, contra a possibilidade de injustiça, o que é
dizer de tirania. Não é uma escolha: é a mais nobre das suas obrigações.
O atual PR, porém,
demonstra um entendimento muito seu dessa obrigação. Quando em 2008 parou o
País para se insurgir contra o Estatuto dos Açores, descobrimos que ao enviar o
dito para o TC não solicitara a fiscalização da norma que mais o encanitava.
Quando pediu a apreciação do diploma que alargava o casamento civil aos casais
do mesmo sexo, "esque- ceu-se" da exclusão da adoção - a única parte
da lei que suscita sérias dúvidas constitucionais. E, quanto aos orçamentos de
2011 e 2012, reputados por muitos especialistas e por si próprio (disse-os
"iníquos" por penalizarem excessivamente os funcionários públicos)
como inconstitucionais, promulgou-os sem demora, deixando a outros o ónus de
pedir a fiscalização sucessiva (pós-entrada em vigor) - onde o OE 2011 passou
por um triz, mas o de 2012 chumbou.
Ou seja: Cavaco
deixou passar orçamentos que considerava desrespeitarem a Constituição,
passando pela vergonha de num deles isso ser confirmado pelo TC. Porquê?
Segundo o PR, porque nenhum seu antecessor enviou um orçamento para o TC e
porque o País não pode ficar "sem orçamento".
Ora, primeiro, com
a fiscalização sucessiva o OE pode ser inviabilizado a meio do exercício - o
que é muito pior. Depois, nenhum antecessor de Cavaco reputou de
inconstitucionais normas de um orçamento - e nunca outro suscitou tantas
dúvidas, e tão graves. Além disso, o PR cuja Casa Civil se queixou de ser
escutada por um governo, que usou um seu discurso de posse para forçar a
demissão do executivo em funções e que usa as publicações de Belém para ajustar
contas com um ex-PM, acusando-o de manobras inconstitucionais - coisas todas
elas nunca vistas -, teme o quê, ser o primeiro? O PR que preferiu receber
pensões ao seu salário, que dá recados políticos no Facebook e vai a cerimónias
públicas brincar com a situação do País tem receio de estrear um estilo?
Valha-nos Pacheco
Pereira, o mais famoso tradutor de Cavaco. "Se o PR enviar o Orçamento
para o TC, o Governo ataca-o", disse na última Quadratura. Como ninguém
perguntou "e então?", ficámos a saber que há quem ache normal que um
Presidente da República tenha medo de um Governo. Falta então saber porquê - se
não for só por feitio.
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