Num momento em que,
com a crise do sistema financeiro e das dívidas soberanas, os orçamentos
militares vêm encolhendo em toda a Europa até a fronteira com a Rússia, a
Alemanha, que se afirmou cabalmente como a maior potência econômica da região,
vem também assumindo mais e mais a responsabilidade militar no continente.
Flávio Aguiar –
Carta Maior, em Debate Aberto
Parece uma
confirmação das teses do Prof. José Luís Fiori, segundo as quais a expansão
capitalista sempre anda pari passu com a expansão militar (presença
ou influência).
Uma suave rotação (como quase tudo neste país, trata-se de algo “lento, seguro
e gradual”) vem se processando na Alemanha, em termos de estratégia militar.
Em maio de 2010 o então presidente Horst Köhler deu uma declaração afirmando
que um país do porte da Alemanha precisava reconhecer a necessidade de
deslocamentos militares para proteger rotas comerciais ou para prevenir
instabilidades regionais que poderiam “influir negativamente sobre nosso
comércio, nossos empregos e nossas rendas”.
Até hoje se discute o que, exatamente, o então presidente tinha em mente: se a
intervenção no Afeganistão, se a pirataria na costa da Somália, ou ainda algum
outro caso não previsto. O fato é que a declaração despertou um bombardeio
crítico, por misturar comércio e intervenção militar, que desgastou e desgostou
o presidente. Köhler renunciou, sendo substituído por Christian Wulff que
terminaria também por renunciar quase dois anos mais tarde, em fevereiro de
2012.
Muita água rolou debaixo dessas pontes desde então. No presente, 6 mil soldados
alemães participam de operações militares no exterior, concentrados no
Afeganistão, no Kossovo, no Líbano e no chamado “Chifre da África”, a região
que compreende os países do Djibuti, Eritréia, Etiópia e Somália. Na semana
passada o Bundestag discutiu e aprovou a possibilidade do envio de mais 400
militares à Turquia, para operarem duas baterias de mísseis Patriot, sob o
argumento de defender a região diante do agravamento do conflito na Síria. Mas
é inegável que a proximidade com o Irã faz pensar numa outra possibilidade
“defensiva/ofensiva” também.
Num momento em que, com a crise do sistema financeiro e das dívidas soberanas,
os orçamentos militares vêm encolhendo em toda a Europa até a fronteira com a
Rússia, a Alemanha, que se afirmou cabalmente como a maior potência econômica
da região, vem também assumindo mais e mais a responsabilidade militar no
continente. Na semana que passou o chefe do Estado Maior sueco, General Sverker
Goransson, deu controvertida declaração segundo a qual seu país, diante de um
ataque militar, teria capacidade apenas para uma semana de defesa.
Tal declaração pode ter o alvo de aumentar o orçamento militar. Mas espelha um
temor muito concreto por parte do setor, na Europa, diante do poderio russo. A
Rússia vem se rearmando significativamente, depois da débâcle, décadas atrás,
do finado Exército Vermelho no Afeganistão. A verdade é que, mesmo em termos de
armamento convencional (não-nuclear), pouco há na Europa que possa fazer frente
ao armamento russo: talvez apenas as forças aéreas do Reino Unido, da França,
da Alemanha e talvez da Itália, combinadas. A principal barreira militar
européia continua sendo a força da OTAN, para a qual os Estados Unidos
contribuem com 46% de seu orçamento. O caso é considerado tão grave que
provocou até um editorial do Le Monde (5/01/2013) alertando para a “perda da
autonomia militar” européia.
Mas a nova “ofensiva militar” alemã não se restringe às forças armadas em
sentido estrito. A Alemanha já é hoje o terceiro país exportador mundial de
armamentos, atrás somente dos EUA e da Rússia. As exportações alemãs se dirigem
sobretudo para os países da OTAN, Israel e agora também os países árabes,
inclusive para um dos regimes mais autoritários da região, o da Arábia Saudita.
O governo alemão aprovou exportações de armamentos no valor de mais de 10
bilhões de euros em 2011. Parte disso seguiu sob a forma de 200 carros de
combate Leopardo para a Arábia Saudita. O setor emprega 80 mil trabalhadores na
Alemanha, e a chanceler Angela Merkel está disposta a defendê-lo armada até os
dentes, sobretudo num ano eleitoral como este de 2013.
Esse ressurgimento do setor militar alemão das cinzas da Segunda Guerra – mas
também das cinzas da Guerra Fria – está longe ainda de provocar calafrios como
aqueles dos conflitos mundiais do século passado. Mas traz em seu bojo uma mensagem
sutil de profunda preocupação. Como várias mídias apontaram, enquanto o
Bundestag discutia o envio dos 400 militares à Turquia, apenas meia dúzia de
gatos pingados se reuniam para protestar no vizinho Portão de Brandemburgo.
Isto seria impensável uma década atrás,quando o espaço seria ocupado por
milhares de pessoas.
Desde que o Partido Verde, então no governo, participou da autorização para o
envio de tropas alemãs ao Afeganistão, no começo do século, dentre os partidos
políticos com representação no Bundestag, apenas a Linke tem mantido uma
posição sistemática contra intervenções militares e uma oposição à OTAN. Para
completar o quadro, a Suprema Corte alemã autorizou, recentemente, o
deslocamento de tropas do Exército dentro do país em casos excepcionais de
segurança nacional, como ataques teroristas, por exemplo. E desde 2001 o
recrutamento obrigatório para o Serviço Militar foi “suspenso” (não se votou
sua eliminação) em nome da “profissionalização” das Forças Armadas.
Decididamente, uma nova Alemanha alça vôo no horizonte do armamento mundial.
* Flávio Aguiar é
correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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