Tenho ouvido
militantes de esquerda culparem o PT pela desmobilização da sociedade
brasileira. Por ser governo, o PT bloquearia a mobilização. Trata-se de um
equívoco. A sociedade brasileira está desmobilizada porque não existe no
espectro político uma proposta consistente de destino nacional. Ainda somos
escravos dos antigos pensadores do século XIX em pleno século XXI. A análise é
de J. Carlos de Assis*
J. Carlos de Assis*
- Carta Maior
Keynes dizia que
todo político atuante é em geral, do ponto de vista ideológico, escravo de um
economista defunto. Pode-se generalizar esse enunciado, no sentido de que somos
todos, de uma maneira geral, fortemente influenciados por grandes pensadores do
passado. O principal deles, sem paralelo, é Karl Marx. Todo partido de
esquerda, desde a ala extrema bolchevista ao centrismo democrata cristão,
presta algum tipo de tributo a Marx, mesmo quando não subscreve inteiramente
suas teorias.
A razão para isso é óbvia: Marx é de uma simplicidade brutal. Não por acaso.
Ele examinou uma sociedade também relativamente simples. Era uma sociedade de
duas classes principais, dinâmicas (os camponeses ficavam de fora), os burgueses
e os trabalhadores, identificadas cada uma delas por sua posição em relação aos
meios de produção, dos quais uma era a dona absoluta e a outra totalmente
alienada. Em razão de tal divisão essas classes tinham objetivos bem definidos,
os quais se expressavam em conflitos inconciliáveis.
A economia subjacente a essa análise social deve seu principal desenvolvimento
ao conceito de mais valia. As mercadorias, dizia Marx, são trocadas pelos seus
valores de reprodução, definidos este pelo conteúdo de trabalho nelas
incorporado. Havia, porém, uma mercadoria em especial – a força de trabalho –
que produzia um valor acima de seu valor de reprodução. A diferença entre o
valor da mercadoria produzida e seu custo em conteúdo de trabalho seria a mais
valia. Esta era integralmente apropriada pela burguesia.
O que continua válido nessas teses aqui simplificadas? Muito pouca coisa.
Kautsky e Bernstein já haviam advertido, na segunda década do século passado,
que estava em progresso uma diferenciação social nova entre a classe
trabalhadora e a burguesia: as classes médias. Gramsci, na década seguinte,
propôs corajosamente o conceito de uma classe intermediária que tinha objetivos
próprios e poderia influir fortemente no curso da luta política. Os dois
primeiros foram considerados renegados pelos marxistas ortodoxos. Gramsci foi
menos repudiado, talvez porque escreveu da prisão e morreu jovem.
Sem uma releitura consistente da realidade social contemporânea, grande parte
dos partidos de esquerda caíram no misticismo operário, saudosista do tempo em
que uma revolução proletária deveria resolver todas as contradições da política
e da vida. Não se deu conta que o próprio movimento operário voltou-se cada vez
mais para a defesa de seus próprio interesses específicos, abandonando a via
revolucionária. Por seu turno as classes médias ou classes intermediárias
também assumiram seus próprios interesses corporativos sem muita consideração
com o interesse geral. Mais do que isso, a conquista de direitos de cidadania
possibilitou às classes não proprietárias apropriar-se de parte da mais valia
social mediante a disputa do orçamento público nas democracias.
Tudo isso é um dado da realidade presente, impossível de negar. Não é uma
tragédia. Mesmo a busca de afirmação de interesses corporativos nem sempre
afronta o interesse geral. Além disso, há momentos especiais – eleições gerais,
grandes movimentos cívicos por uma causa pública – em que, contra tudo e contra
todos, surge uma mobilização social em larga escala por cima de interesses corporativos.
Recorde-se, no Brasil, o apoio popular às greves do ABC em 78, a campanha das
diretas-já e a deposição de Collor. Nos Estados Unidos, só para dar um exemplo
externo, recorde-se a campanha pelos direitos civis nos 60 e o verdadeiro
levante estudantil contra a guerra no Vietnã a partir de 68, atingindo também a
Europa.
O que não se há de esperar, sobretudo numa sociedade democrática, é um estado
permanente de mobilização social apoiada em interesses corporativos
pressionando as instituições. Ninguém pode se mover permanentemente ao ritmo da
Cavalaria Rusticana. A sociedade seria levada a um estado extremo de stress.
Tivemos algo parecido no fim do Governo Goulart: o resultado foi prevalência da
direita sob o signo da restauração da ordem.
Já uma genuína mobilização de massas que coloca acima ou além dos interesses
corporativos o interesse geral requer uma acumulação de forças a partir de
objetivos bem claros capazes de sensibilizar o imaginário popular. Sem a ideia
da liberdade, não haveria revolução francesa; sem a ideia da igualdade
comunista, não haveria a revolução russa; sem a ideia de uma terceira via
social entre democracia e comunismo, não haveria social democracia europeia. Em
uma palavra, a sociedade sem um projeto nacional é como navegar à noite entre
pedras sem um farol de orientação.
Tenho ouvido muitos militantes de esquerda culparem o PT pela desmobilização da
sociedade brasileira. Por ser governo, o PT bloquearia a mobilização. Trata-se
de um equívoco. A sociedade brasileira está desmobilizada porque não existe ao
longo de todo o espectro político uma proposta consistente de destino nacional.
Todos, governo e sociedade, estão trabalhando para o curto prazo e de forma
fragmentária. Não apenas o PT, mas todos os partidos, inclusive os de direita,
não oferecem uma perspectiva de sociedade pela qual valha a pena se mobilizar.
Enquanto essa proposta não for formulada, continuaremos escravos dos antigos
pensadores do século XIX em pleno século XXI.
*J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e
autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).
Sem comentários:
Enviar um comentário