Rádio Moçambique
O espectro da
guerra é remoto em Moçambique, muito embora a violência física e psicológica
persistam no seio da sociedade.
Esta é a visão do
antigo Chefe do Estado moçambicano, Joaquim Chissano transmitida aos
participantes do Fórum Pan-Africano sobre a Cultura de Paz realizado há dias na
cidade de Luanda, em Angola.
Intervindo neste
fórum, como “Keynote speaker” Joaquim Chissano justificou a sua tese, afirmando
que algumas vezes se ouve em Moçambique discursos inflamatórios de ameaça de
retorno à guerra por alguns políticos, mas que a população é pela manutenção da
paz, porque ela é beneficiária dessa mesma paz. Chissano disse que o ambiente
de paz que se vive em Moçambique tem igualmente permitido desenhar com firmeza
os caminhos para o desenvolvimento económico e social do país.
“Com os índices de
crescimento económico que o país regista e com o “boom” de descoberta de
recursos naturais estamos encorajados a multiplicar os nossos esforços para
transformar as actuais dificuldades em desafios superáveis num ambiente de paz,
alargando o espaço para a participação de todas as camadas sociais no
desenvolvimento do país”, afirmou.
O antigo estadista
moçambicano explicou ainda que a transformação do cenário de guerra e cultura
de violência para o cenário de paz e cultura de paz continua a constituir um
desafio no país. Ou seja, os passos dados consistiram na promoção do espírito
de reconciliação, tolerância e respeito pela diferença entre os cidadãos. A
livre circulação de pessoas e bens continua a cimentar os princípios de
liberdade, de justiça social e democracia, assim como o respeito pelos direitos
humanos.
Joaquim Chissano
deu este pequeno historial para apresentar Moçambique como uma evidência de
compromisso em relação à cultura do diálogo como instrumento principal de
resolução de conflitos. Neste sentido anotou que a cultura de diálogo está
enraizada na sociedade. Disse que para o efeito, foi preciso valorizar e
desenvolver iniciativas endógenas que tiveram como base os sistemas e valores,
a cultura e experiência traumática da guerra.
Fontes e recursos
para a paz e diálogo
Joaquim Chissano
apresentou o que considerou de fontes e recursos que contribuíram de forma
significativa para a cultura de paz e do diálogo que prevalece em Moçambique.
Segundo explicou,
em plena luta de libertação nacional congregaram-se à Frelimo pessoas de vários
grupos étnicos, sexo, raças e regiões. No início experimentaram-se dificuldades
e actos de discriminação que degeneraram em conflitos e violência, algumas
vezes, sob instrumentalização de agentes do colonialismo.
“Cientes disso,
actuamos imediatamente sob a bandeira da unidade nacional e, para o efeito, a
cultura serviu de instrumento fundamental para criar a coesão do grupo e evitar
a vaga de violência no seio da nossa organização”, explicou, acrescentando que
“desenvolvemos acções de “miscigeneração” de pessoas e promovemos o diálogo de
cultura.
Referiu que
associado à cultura o país desenvolveu desde os primórdios da proclamação da
independência nacional até hoje, jogos desportivos escolares, desde a
localidade até ao nível nacional, constituindo estes um instrumento através do qual
se forja a unidade e identidade nacional nos jovens de ambos os sexos, vindos
de todo o país. Os jogos escolares constituem um instrumento de diálogo
intelectual no qual os jovens desenvolvem laços intelectuais, afectivos que
servem para promover a cultura de diálogo.
A Fundação Joaquim
Chissano, a que preside, está a promover um projecto de intercâmbio entre
crianças de todas as províncias através da Internet. Trata-se de um intercâmbio
que vai ter a sua expressão máxima num acampamento anual das crianças que se
conheceram virtualmente e interagiram através da Internet. Pretende-se com este
projecto ser mais uma contribuição para semear no espírito de cada criança, na
sua maneira de ser e estar a cultura do diálogo, de solidariedade, de amizade,
de amor e de interesse pelo bem comum, ou seja a cultura de paz.
De acordo com
Joaquim Chissano, a cultura de diálogo está enraizada em todas as acções.
“Politicamente
criamos espaços de diálogo para maximizar a nossa tradição oral. Durante a luta
de libertação nacional usamos a figura de comissários políticos que, entre
outras coisas, desenvolviam um trabalho político profundo sobre a nossa luta
por via do diálogo com a população. O Presidente Samora Machel fazia comícios
populares que revelavam uma cultura de diálogo”, elucidou.
Joaquim Chissano
afirmou que o Parlamento multipartidário em Moçambique constitui o exemplo de
cultura de debate, diálogo e reconciliação. Disse que este mecanismo foi
replicado aos níveis das assembleias provinciais e assembleias municipais, onde
se assiste a um verdadeiro exercício democrático de debate de diálogo entre os
representantes de governados e entre estes e os governantes.
Acrescentou ainda
que além disso, existem os conselhos consultivos distritais bem como os
conselhos consultivos ao nível local, onde se exerce o poder local, com um
grande envolvimento de pessoas na tomada de decisão e para a resolução de
conflitos e promoção de desenvolvimento.
“Igualmente existem
as presidências abertas realizadas pelo Chefe do Estado que se desloca
regularmente pelo país, até ao nível mais baixo de divisão administrativa, para
estabelecer um diálogo directo com a população. Esta é uma forma de prestação
de contas através de um diálogo aberto e franco entre os governantes e
governados”, disse Joaquim Chissano, acrescentando que a sociedade civil tem um
espaço privilegiado e ela tem estado a desempenhar um papel importante na
promoção da cultura de diálogo. Algumas organizações actuam nas áreas de
negociação e mediação de conflitos um pouco por todo o país.
O antigo Presidente
da República afirmou que a cultura de paz deve ser cultivada com acções
concretas. Isto requer acções institucionalizadas que contribuam para desarmar
mentes e ilegitimar a violência. É que quanto maior for o espaço de diálogo
institucionalizado maior será a probabilidade de desenvolvimento da cultura de
paz nas sociedades.
Joaquim Chissano
afirmou que na actualidade, em Moçambique, a cultura de diálogo está enraizada
porque se usam valores culturais, graças a uma acção constante que acabou sendo
apropriada pela sociedade.
“O trauma da guerra
serviu de lição. Hoje não precisamos exemplos horrores da guerra para
ensinarmos as novas gerações sobre a importância da cultura de paz. Nós todos
temos o dever de os mostrar e incutir valores, princípios, atitudes e
comportamentos que sirvam de exemplo para a sociedade. Algumas pessoas confidenciam-me
que o facto de ter mantido um diálogo aberto com o líder da Renamo, antigo
movimento insurgente e actualmente principal partido da oposição, serviu de
exemplo para desencorajar qualquer tentativa de usar a violência como
instrumento político.
Chissano afirmou
que a cultura de paz é um valor cujo enraizamento envolve um processo
permanente e abrangente. Todos devem ser inclusos, particularmente os jovens na
promoção da cultura da paz. Estes devem assumir um protagonismo na difusão
permanente dos valores e princípios da cultura de diálogo.
“É preciso
assegurar que os jovens assumam o desafio de perpetuar o diálogo intercultural
entre eles, dentro dos seus países e com os jovens de outros Estados membros da
União Africana. É importante desenvolver laços de diálogo por via do desporto e
outras formas de intercâmbio nas quais a diversidade cultural seja um elemento
de união e não de divisão”, salientou.
Não aprendemos a
dor em compêndios
De acordo com
Joaquim Chissano, para a África a cultura de paz tornou-se importante, tendo em
conta que os africanos não aprenderam a sentir a dor nem a desgraça da guerra
em compêndios.
Os africanos
viveram e aprenderam a dor e a desgraça na experiência de guerras destrutivas
cujas causas, na maioria das vezes, estavam fora do controlo e domínio. A
título de exemplo citou algumas guerras por procuração, também designadas “prox
wars”, golpes de Estado, guerras de recursos e guerras de desestabilização.
“As consequências
dessas guerras persistem nas nossas sociedades e infelizmente, estou convencido
que vão connosco permanecer por muito tempo. Para alem das perdas humanas e
materiais que sofremos como consequência desses conflitos, assumem particular
relevo as oportunidades que perdemos de nos desenvolver mais cedo e construir
níveis de vida mais elevados para os nossos povos”, destacou.
Indicou que, como
tal, falar e promover a cultura da paz é dever e interesse e deve ser uma acção
permanente e contínua, direccionada para cada um dos cidadãos, particularmente
para a classe política e as novas gerações. Afirmou que a experiência demonstra
que a intolerância mútua de políticos entre si muitas vezes está na base de
muitos conflitos. Por outro lado, com frequência vemos jovens a serem
instrumentalizados por políticos que apenas prosseguem interesses próprios, em
detrimento de interesses nacionais.
Segundo o antigo
estadista, o fim da “guerra-fria” teve impactos diversos em diferentes partes
do mundo. Em África assistiu-se ao recrudescimento de conflitos internos nos
Estados, alguns de cariz étnico, que, no passado eram abafados pela lógica e
ambiente das rivalidades entre as grandes potências.
“África não é um
país; os 54 países que a integram têm história e condições geográficas
diferentes, assim como diferentes são as suas condições de desenvolvimento, de
políticas estatais e formas de interacção interna e externa. Apesar dessas
diferenças, eles partilham a mesma experiência de dominação, humilhação e
conflitos que a todos afectam de modo directo ou indirecto”, salientou.
Chissano disse, a
propósito, que os trágicos eventos da Libéria (1990), Somália (1992), Ruanda
(1994), Darfour (2004), RD Congo e as revoltas do Norte de África ilustram o
grau de desafios do continente quanto a essa experiência partilhada de
conflitos e sofrimento humano que, plenamente, justificam todo o esforço que
deve ser empreendido na prevenção e resolução de conflitos, bem como de
implantação e desenvolvimento continuado de uma cultura de paz em cada um dos
países.
Referiu que desde
que o princípio da “solução africana para os conflitos africanos” foi adoptado,
tem sido amplamente demonstrada a capacidade dos africanos de encontrar
soluções para os diversos conflitos que assolam o continente.
O antigo PR disse
que os diversos conflitos mostram uma grande diversidade quanto às suas causas
e complexidade de factores e actores envolvidos. Algumas fontes de conflito são
puramente internas e outras surgem em consequência de dinâmicas regionais e
internacionais. De qualquer modo, no essencial, as causas principais de
conflitos em África estão associadas a disputas sobre o acesso a recursos
naturais, particularmente a água e a terra.
“Actualmente, as
questões ligadas à governação e exercício da autoridade do Estado ganham maior
relevância como causas frequentes de conflitos, à medida que os cidadãos
atingem maiores níveis de educação e de acesso à informação e, por isso, se
tornam mais exigentes aos seus governos. Na governação incluem-se também, os
sentimentos de exclusão, associados à expressão de identidade própria”,
destacou, acrescentando que a resolução pacífica desses conflitos violentos tem
sido conseguida através da paciência e persistência, necessárias à diminuição
gradual dos sentimentos negativos que separam e afastam as partes em conflito,
tais como desconfiança mútua até ódio intenso. São essa paciência e
persistência que, num processo gradual e não isento de recuos, que levam os
adversários a desenvolver a compreensão da essência das suas diferenças,
respeitá-las e aceitar criar espaços de existência de uns e de outros, num
espírito verdadeiramente reconciliador.
Extraido do jornal
Notícias, 22 de Abril de 2013
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