Pedro Marques Lopes
– Diário de Notícias, opinião
A tolerância com o
Presidente da República Cavaco Silva já faz parte da história da democracia
portuguesa. Encolhiam-se os ombros quando ele se recusava a explicar lucros
extraordinários numa compra e venda de títulos, assobiava-se para o lado
quando, duma forma arrogante, afirmava a sua superioridade moral perante o
comum dos mortais, engolia-se em seco quando ele promovia e apoiava patéticas
conspirações contra um governo. - o episódio das escutas levaria num país
minimamente civilizado à sua imediata demissão.
A paciência
esgotou-se quando Cavaco Silva insultou todos os portugueses afirmando que ia
ter muitas dificuldades em não ir às suas poupanças ganhando apenas cerca de 10
000 euros mensais em pensões.
Apesar de tudo,
alguns preferiram não dar muito relevo a mais esse inconcebível desvario em
razão das circunstâncias do País. Com a crise económica a acentuar-se, a crise
política seria inevitável e, por isso mesmo, era importante preservar a imagem
institucional do Presidente da República. No fundo, era necessário que o
Presidente da República mantivesse a sua capacidade política para que fosse
respeitado e se constituísse num mediador com peso num momento de extrema
importância e fragilidade. Seria, e continua a ser, necessário construir
pontes, gerir sensibilidades, criar consensos e, no limite, encontrar soluções
de governo ou marcar eleições. Era fundamental que se percepcionasse o
Presidente como equidistante dos partidos e das suas visões programáticas para
que as suas decisões fossem vistas nos momentos decisivos como imparciais.
A esmagadora
maioria dos que tantas vezes votaram em Cavaco desistiram dele no episódio das
pensões. Cavaco desistiu de ser Presidente da República, na quinta-feira,
quando renunciou a representar todos os portugueses.
Desistiu porque, de
facto, desistiu de buscar consensos e optou pela mais radical das opções.
Desistiu porque, numa altura em que todos lhe pediam que arbitrasse, ele
decidiu colocar-se num dos campos. Desistiu porque se tornou na maior fonte de
crispação política quando hipocritamente apelou ao fim dela.
Cavaco Silva fez um
discurso absolutamente irresponsável. Dividiu o País em dois, cavou com as suas
próprias palavras uma trincheira e preparou-se para o combate dum dos lados.
Que consensos pode agora promover? Que diálogos pode gerar ? Que confiança pode
inspirar?
Não, não vale a
pena lembrar "os portugueses atingiram o limite dos sacrifícios" ou o
"sobressalto cívico" de há dois anos e casar as frases com a presente
"não se deve explorar politicamente a ansiedade e a inquietação dos nossos
concidadãos". É náusea garantida. Também não vale a pena recordar a
"espiral recessiva" de há apenas três meses. A falta de memória
auto-infligida já não é propositada, é apenas desprezo por quem nos falha em
tão decisivo momento. E não, também não é raiva pela incapacidade do nosso mais
importante representante de não perceber o sentimento popular. O verdadeiro
consenso que vai da esquerda à direita, de grande parte do seu PSD, dos seus
próprios apoiantes, de todos os parceiros sociais. O consenso que rejeita a
solução que agora é benzida por Cavaco Silva. A que, de forma clara e
cristalina, ele acha que, apesar dos problemas, tem um saldo positivo. Um saldo
positivo de miséria, de desemprego, de recessão, de incompetência, dum futuro
sem perspectivas. Curiosamente, Cavaco vocifera contra as políticas de
austeridade europeias e faz o tal balanço positivo das nossas. A
irresponsabilidade é parente próxima da inconsciência.
Mas que fique
rigorosamente claro: ninguém lhe pedia que escolhesse um lado, que optasse por
contestar ou mesmo demitisse o Governo. Bem pelo contrário. Apenas que actuasse
como Presidente da República nas circunstâncias presentes. Que se pusesse acima
dos partidos, que fosse um fazedor dos consensos, um conciliador de vontades.
Mas Cavaco Silva
não desistiu só de ser verdadeiramente um Presidente da República. Parece
também ter desistido da Democracia. No dia 25 de Abril, na casa da democracia
portuguesa, Cavaco Silva teve a ousadia de dizer que resultados de eleições
nada mudariam, que "de nada valerá integrar o Governo ou estar na
Oposição". Como se a decisão dos cidadãos de nada valesse, como se as
opções dos portugueses devam ser desprezadas se não forem as consideradas
certas por Cavaco ou a troika ou a Europa ou por quem quer que seja. Como se o
povo não fosse soberano e tivesse que ser guiado por um qualquer iluminado.
A maioria deixou de
o ser, o Governo está em desintegração e desde quinta-feira nem Presidente
temos. E ainda há quem diga que não estamos a viver uma crise política.
Por decisão
pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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