Ricardo Musse –
Revista Fórum
As recentes
manifestações de rua que, de São Paulo e Porto Alegre, disseminaram-se pelas
principais cidades do País, apesar da pluralidade de sua pauta de
reivindicações, emitiram um recado claro e convergente: a insatisfação popular
com o atual sistema político.
O descrédito em
relação aos políticos e ao desempenho dos três poderes deriva de uma construção
ideológica, mas também se assenta em uma situação efetiva. A mídia tradicional
(jornais, rádio e televisão) criou uma imagem fantasiosa do agente político,
associando-o invariavelmente à corrupção e à ausência de empenho e trabalho.
Esse esforço coordenado atende a dois interesses principais: cacifar-se como
instância primordial da cena pública e deslegitimar a vida política, abrindo
caminho para soluções autoritárias.
Essa visão ganhou
adeptos e repercussão, constituindo-se em um falso senso comum, em parte porque
fornece uma explicação (ainda que simplória) a um sentimento objetivo. Há uma
percepção generalizada de que as demandas dos diferentes grupos sociais não estão
sendo atendidas pelas instâncias e organizações políticas, que os políticos
tendem a agir como membros de um estamento fechado e estão mais sintonizados
com os interesses dos financiadores de suas campanhas do que com as prioridades
vocalizadas pela população.
O recurso às
demonstrações massivas, à ação direta, emergiu como uma reação ao engessamento
do sistema político, à integração dos quadros do PT (constituído
conscientemente em uma alternativa à política tradicional) ao estamento, à
paralisia decorrente das negociações típicas dos “governos de coalização”. A
potência e a legitimidade das manifestações, o apoio e o entusiasmo popular que
suscitaram, derivam diretamente dessa situação objetiva.
As pesquisas,
feitas regularmente, sobre a credibilidade das instituições políticas mostram
uma reviravolta impressionante. A avaliação positiva durante o último ano do
governo Lula cedeu lugar a uma progressiva rejeição dessas instituições,
modificação medida muito antes das manifestações das últimas semanas. Atribuo
essa inversão à conjugação de dois fatores: à persistência da crise econômica
iniciada em 2007 e à inflexão econômica ensaiada pelo governo de Dilma
Rousseff.
A crise atingiu
proporções mundiais, adquirindo feições mais agudas na Europa e no Oriente Médio,
como comprovam os números do desemprego e a intensificação dos protestos. No
Brasil, apesar das expectativas criadas pelo desempenho da economia no último
ano do mandato de Lula, a crise afetou poderosamente a indústria. A principal
medida encaminhada pelo governo para incentivar a produção industrial, a
desvalorização cambial, gerou um incremento nos preços dos alimentos (no mundo
globalizado, tornados commodities). Ampliou-se sobremaneira o caos urbano. A
barbárie, inerente ao capitalismo, tornou-se cada dia mais presente no
cotidiano das pessoas, rotinizando uma violência inaudita e estarrecedora.
Intensificou-se o sofrimento individual e coletivo, sintomas visíveis na
epidemia de depressão e no incremento do número de usuários e dependentes de drogas.
Diante da crise, o
atual governo orientou a política econômica numa direção que se revelou
inadequada e contraproducente. Alardeou metas superestimadas de crescimento (no
momento em que até a China coloca o pé no freio). Para tentar cumpri-las,
adotou uma série de medidas que apontam para uma tentativa de ressurreição do
finado nacional-desenvolvimentismo, com seus subsídios diretos e indiretos para
o grande capital. Resgatou até mesmo suas prioridades equivocadas,
privilegiando a indústria automobilística, as grandes empreiteiras e
adicionando aos monopólios oriundos da privatização dos serviços públicos novos
monopólios privados impulsionados por créditos subsidiados do BNDES. Essa
orientação, a disposição em atender prioritariamente à agenda da Fiesp, acirrou
a disputa pelos fundos públicos.
Convém ressaltar
que se trata de uma alteração profunda em relação à política incrementada pelo
governo anterior. O motor do crescimento no período Lula foi a redução das
desigualdades, uma dinâmica de ampliação contínua da renda e do crédito que
alterou a escala do mercado interno. O atual governo seguiu o mantra entoado
pelos jornalistas e economistas porta-vozes do “partido da indústria”. Segundo
eles, o crédito atingiu seu limite e, por conseguinte, um novo ciclo de
crescimento exigiria um aumento exponencial dos investimentos. Propõem assim
tão somente que o dinheiro recolhido nos impostos retorne diretamente para o
capital.
Nesse contexto, as
passeatas que reivindicavam uma questão localizada, a revogação do aumento das
tarifas de transporte público em São Paulo e Porto Alegre, passaram a
simbolizar uma demanda mais geral. A truculência da PM, uma herança persistente
da ditadura, redirecionou a luta para a defesa do direito constitucional de
reunião. Conquistado o direito à livre manifestação, os protestos tornaram-se o
palco por excelência do conflito distributivo, trazendo ao primeiro plano o
enfrentamento entre as classes, embotado na década anterior.
A exigência de
saúde, educação e transportes públicos gratuitos e de qualidade, a luta por
direitos sociais, atestam a emergência de novos movimentos, resultante da
desconfiança ante a capacidade do sistema político em fornecer – para além da
retórica eleitoral – respostas a essas questões. Mas também confrontam dois
modos bem distintos de utilização dos fundos públicos: o do atual modelo
inspirado nas políticas do nacional-desenvolvimentismo e o do embrião do Estado
de Bem-Estar Social, ensaiado nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva.
O esforço para
impedir que as manifestações sejam dominadas por grupos organizados de direita
e pelas pautas da mídia tradicional está forjando a sempre almejada frente das
esquerdas. Tudo indica que a ação dessa frente irá se guiar pela compreensão de
que as palavras de ordem e o sentimento das ruas estão em sintonia com suas
demandas históricas. Se não titubearmos, a potência das manifestações tende a
politizar cada vez mais a população, empurrando o País para a esquerda.
Esta
matéria está na edição 124 da revista Fórum. Compre aqui
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