domingo, 20 de outubro de 2013

Portugal: SIMPLESMENTE INDECENTE

 

Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
 
Já pensava ter visto tudo, mas estava enganado. Já percebera que este Governo, moldado na sua origem pela subserviência total perante a troika, conduzia paulatinamente o país para um desastre sem remédio, mas estava talvez longe de perceber toda a dimensão da tragédia.
 
Já concluíra que a dissimulação, a mentira, a falta de vergonha e a cegueira política se tinham tornado uma espécie de segunda natureza do actual Executivo, mas não me atrevera a imaginar que a indignidade anti-social – e, sublinhe-se, antinacional – do seu comportamento assumisse as escandalosas proporções que agora se tornaram absolutamente indisfarçáveis.
 
Não, nunca pensei que a paz de consciência com que o Governo convive com os seus ataques implacáveis aos direitos sociais mais elementares – e criando sucessivos factos consumados contra quem não pode defender-se, como acaba de acontecer com as pensões de sobrevivência – chegasse a um ponto de insensibilidade e má-fé, como justamente lhe chama Pacheco Pereira, que desafia todos os limites da decência. Já não basta clamar pelo direito à indignação, quando o caminho por onde nos levam só pode conduzir à revolta.
 
Na passada quarta-feira, numa conferência da AIP, horas antes de ser entrevistado por um painel de cidadãos na RTP, o primeiro-ministro veio esclarecer o que sibilinamente referira no dia anterior como um possível «choque de expectativas» suscitado pelo Orçamento do Estado para 2014.
 
Afinal, numa ostensiva desautorização da retórica apaziguadora de Paulo Portas no encerramento dos últimos exames da troika – embora logo seguida pelo ataque às pensões de sobrevivência, o que até motivou uma rara reacção oficial da hierarquia católica –, o primeiro-ministro desfez, com uma frieza de robô sem pinga de sangue humano, as ingénuas expectativas sobre o não agravamento das medidas de austeridade já anunciadas para 2014.
 
Não, o pior ainda está para vir – e é inevitável. Porque esse é o preço de ganharmos a confiança dos nossos credores e dos mercados, porque afinal os juros dos empréstimos que tornam a nossa dívida insustentável (e a ruína do país irremediável) não são negociáveis e, pelos vistos, até são compreensivos e piedosos.
 
Segundo Passos Coelho, qual alter-ego da troika, o Estado está «a pagar os juros que praticamente são suportados pelo mecanismo que transfere o dinheiro». Mais: «Portugal já enfrenta hoje, por via do financiamento oficial, os juros mais baixos de financiamento da dívida pública de que tem memória». E mais ainda: «Quando regressarmos a mercado, a pleno mercado, não defrontaremos, com certeza, juros mais baixos». Então qual é a pressa para nos libertarmos deste abençoado protectorado que nos concede juros mais baixos e retomarmos uma soberania que fará de nós ainda mais miseráveis e estrangulados pelos juros do que estamos? Que soberania será essa?
 
O que espanta mais em Passos Coelho não é apenas a absoluta complacência e rendição aos constrangimentos externos, é o alinhamento total do seu raciocínio com a irracionalidade especulativa dos predadores financeiros e, no fundo, com a punição de que Portugal está a ser alvo pelos credores internacionais. Temos de reduzir o stock da dívida acumulada, porque não podemos pedir a quem nos empresta dinheiro que «vá ao banco endividar-se em nosso nome». Para o nosso patriótico primeiro-ministro não se coloca a questão de a estratégia seguida pelo Governo ter impedido – como se comprovou até agora – a redução desse stock da dívida, mas, pelo contrário, promovido o seu agravamento até estarem exauridos todos os recursos nacionais e consumado definitivamente o empobrecimento do país. Não é simplesmente aterrador sermos governados por quem pensa de forma tão primária, obtusa e manifestamente contrária aos interesses nacionais?
 
Mas este é o mesmo Governo que admite manter como ministro dos Negócios Estrangeiros uma personagem que, além das repetidas ocultações e mentiras sobre a sua relação com o glorioso BPN (será estranho ao stock da dívida acumulada e paga por todos os contribuintes?), acaba de expor Portugal a uma das maiores vergonhas de que há memória ao pedir desculpa na rádio de um país estrangeiro por investigações a cargo do Ministério Público português. «Uma frase menos feliz», sentenciou Passos Coelho, assumida pelo ministro em inquérito parlamentar…
 
Com que moral um Governo que expõe uma imagem tão degradante de indecência política se permite destruir as esperanças de vida de tantos portugueses e os próprios fundamentos de sobrevivência do país? É simplesmente intolerável – e revoltante.
 

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