Recusou papel de
santo. Viveu intensamente. Enfrentou inferno sem perder humanidade. Poderá
inspirar outros projetos de mundo, no século 21?
Achille Mbembe, no
Le Monde Diplomatique francês - Tradução: Cristiana Martin – em Outras Palavras
Só quando Nelson
Mandela morrer, teremos o direito de declarar o fim do século XX. O homem que
hoje encontra-se no crepúsculo de sua vida terá sido uma figura emblemática.
Com exceção de Fidel Castro, é provavelmente o último de uma linha de grandes
líderes em extinção, já que vivemos numa época apressada em terminar, de uma
vez por todas, com os mitos.
Mais do que o santo
– algo que ele próprio afirma jamais ter pretendido ser –, Mandela terá sido um
mito vivo antes, durante e depois de sua longa prisão. Nele, a África do Sul,
este acidente geográfico que é difícil conceituar, encontrou sua Ideia. E se
não houve pressa em se separarem, é porque, em sua nova vida pós-apartheid, a
sociedade sul-africana não pode conviver, sem riscos, com o mito de uma
sociedade sem mitos.
Mas se é preciso aceitar
em Mandela a recusa da santidade, que ele não deixou de proclamar – às vezes,
com certa malícia –, deve-se reconhecer que ele esteve longe de ser um homem
banal. Por não ter sido uma forma comum de opressão colonial ou racial, o
apartheid provocou o surgimento de uma classe de mulheres e homens incomuns,
sem medo, que ao preço de sacrifícios incríveis, precipitaram a abolição do
regime. Se Mandela tornou-se um nome entre eles foi porque, em cada
encruzilhada de sua vida, soube percorrer, mesmo sob a pressão das
circunstâncias e frequentemente de maneira voluntária, caminhos inesperados.
No fundo, sua vida
se resume a algumas palavras: um homem constantemente em vigília, sentinela na
hora do toque de partida e cujos retornos, todos tão inesperados quanto
miraculosos, apenas contribuíram para que se transformasse em mito.
Nos alicerces de um
mito, não há somente o desejo do sagrado e a sede de segredo. Ele floresce pela
primeira vez na proximidade da morte, esta forma primeira de partida e
separação. Muito cedo, Mandela teve essa experiência, quando seu pai,
Mphakanyiswa Gadla Mandela, morreu quase diante de seus olhos. Tinha o cachimbo
na boca e tossia de maneira tão irreprimível que mesmo o tabaco, do qual ele
gostava tanto, pouco serviu para consolá-lo. É então que esta primeira partida
provoca uma outra. Acompanhado de sua mãe, o jovem Mandela sai de Qunu, o lugar
de sua infância e do início de sua adolescência e que ele descreve com uma
infinita ternura em sua autobiografia. Ele voltará à cidade apenas no fim de
seus longos anos na prisão, depois de construir uma casa, toda ela uma réplica
da última prisão em que esteve antes de obter novamente sua liberdade.
Recusando-se a se
conformar com os costumes, ele vai partir uma dúzia de vezes até o final da
adolescência. Príncipe fugitivo, vira as costas para uma carreira como chefe
dos Thembus, seu clã de origem. Ele partirá então para Johannesburgo, cidade
dos minérios então em plena expansão e expoente das contradições sociais,
culturais e políticas engendradas pela semelhança barroca entre capitalismo e
racismo, que em 1948 tomou forma e nome de apartheid. Chamado a se tornar chefe
da ordem e do costume, Mandela se converterá ao nacionalismo como outros se
convertem à religião, e a cidade das minas de ouro tornar-se-á o teatro
principal do reencontro com seu destino.
Começa então um
longa e dolorosa via sacra, feita de privações, de repetidas prisões, de
perseguições intempestivas, vários comparecimentos diante do tribunal, de
passagens regulares pelos presídios com sua prática de torturas e rituais de
humilhação, períodos mais ou menos prolongados de clandestinidade, de inversão
da vida noturna e diurna, de disfarces mais ou menos espontâneos, de uma vida
familiar deslocada, de casas abandonadas – um homem em luta, rastreado,
fugitivo contantemente de partida, guiado unicamente pela certeza de um dia
futuro, o dia do retorno.
Mandela assumiu
enormes riscos. Em sua própria vida, que viveu intensamente, como se tudo fosse
sempre um recomeço e cada vez fosse a última. Mas também com a vida de muita
gente, a começar pela de sua família, que inevitável e consequentemente pagou
um preço inestimável às custas de seu engajamento e convicções. Ela o vinculou
a uma dívida insondável que ele nunca sentiu-se capaz de reembolsar, o que
apenas agravou seu sentimento de culpa.
Ele evitou a pena
de morte. Foi em 1964. Junto a outros acusados, estava preparado para ser
condenado. “Nós previmos essa eventualidade”, afirma ele em entrevista com
Ahmed Kathrada, muitos anos depois de sair da prisão. “Se tínhamos que
desaparecer, que fosse com um ar glorioso. Nos agradou muito saber que nossa
condenação à morte representava a última oferta ao nosso povo e à nossa
organização.”(1) Essa visão eucarística, no entanto, estava longe de ser desejo
de martírio. E, contrariamente a todos os outros, de Ruben Um Nyòbe a Patrice
Lumumba, passando por Amilcar Cabral, Martin Luther King e até Mohandas
Karamchand Gandhi, ele escapou falsamente.
É na prisão de
Robben Island que ele colocará em prova esse desejo de vida, no limite do
trabalho forçado, da morte e do banimento. A prisão tornou-se o lugar da
extrema provação, a do confinamento e do retorno do homem à sua expressão mais
simples. Nesse lugar de destituição máxima, Mandela aprendeu a habitar a cela
na qual passou mais de vinte anos como um ser vivo forçado a viver num caixão
(2).
No decorrer de
longas e atrozes horas de solidão, empurrado à beira da loucura, ele
redescobrirá o essencial, aquilo que gira em torno do silêncio e do detalhe.
Tudo para ele falará de novo: uma formiga que corre para não sei onde, a
semente enterrada que morre e ressuscita dando a ilusão de um jardim, um pedaço
de coisa, não importa qual; o silêncio dos dias sombrios que parecem não se
mover, o tempo que se estende indefinidamente; a lentidão dos dias e o frio das
noites; a fala rara; o mundo exterior do qual não se ouvem senão murmúrios, o
abismo que foi Robben Island, e os traços da penitenciária agora na sua face
esculpida pela dor, em seus olhos apertados pela luz do sol refletida no
quartzo, nas suas lágrimas que não vertem mais, a poeira sobre a face
transformada em espectro fantasmático e em seus pulmões, na ponta dos pés, e
acima de tudo este sorriso alegre e brilhante, esta postura altiva, ereta, de
pé, o punho cerrado, pronto a abraçar novamente o mundo e fazer sussurrar a
tempestade.
Privado de quase
tudo, ele lutará passo a passo para não ceder o resto de humanidade que seus
carcereiros queriam a todo custo extrair dele e exibir como o último troféu.
Reduzido a viver com quase nada, ele aprende a economizar tudo, mas também a
cultivar um profundo desapego das coisas da vida profana, inclusive os prazeres
da sexualidade. Até o ponto em que, prisioneiro de fato, confinado entre pouco
mais que dois muros, ele não é, contudo, escravo de ninguém.
Homem de carne e
osso, Mandela viveu no entanto próximo ao abismo. Ele penetrou na noite da
vida, o mais perto da escuridão, à procura de uma ideia, de como aprender a
viver livre da raça e da dominação do mesmo nome. Suas escolhas o levaram à
beira do precipício. Ele fascinou o mundo por ter saído vivo do país das
sombras, jorrando vigor ao anoitecer de um século envelhecido e que não soube
mais sonhar.
Tudo, como os
movimentos operários do século XIX, ou ainda as lutas das mulheres, nossa
modernidade enfrentou pelo sonho da abolição que antes sustentou os escravos. É
este sonho que prolonga, no início do século XX, os combates pela
descolonização. A práxis política de Mandela se inscreve nesta história
específica das grandes lutas africanas pela emancipação humana.
Tais lutas
assumiram, desde as origens, uma dimensão planetária. Seu significado jamais
foi unicamente local. Ela foi sempre universal. Mesmo quando mobilizaram atores
sociais em um país ou território nacional bem circunscrito, elas tiveram como
ponto de partida a solidariedade forjada em escala planetária e transnacional.
Estas são as lutas
que, a cada vez, permitiram a extensão ou ainda a universalização de direitos
que, até então, haviam sido o privilégio de uma raça. É o triunfo do movimento
abolicionista ao longo do século XIX que dá fim à contradição que representavam
as democracias escravagistas modernas. Nos Estados Unidos, por exemplo, as
lutas pelos direitos civis abrem passagem ao aprofundamento da ideia e da
prática de igualdade e cidadania.
Encontramos a mesma
universalidade no movimento anticolonialista. Que visa ele, de fato, senão
tornar possível a manifestação de um poder próprio de gênese – o poder de
colocar-se de pé, de viver numa comunidade, de se autodeterminar? Tornando-se o
símbolo de uma luta global contra o apartheid, Mandela prolonga essas
significações. Aqui, o objetivo é fundar uma comunidade para além da raça.
Ainda que o racismo retorne a formas mais ou menos inesperadas, o projeto de
igualdade universal encontra-se mais do que nunca à nossa frente.
É preciso ainda
dizer algo sobre a África do Sul que Mandela deixa para trás. A passagem de uma
sociedade de controle a uma sociedade de consumo representa, sem dúvida, uma
das transformações mais decisivas desde sua libertação e o fim do apartheid.
Sob o apartheid, o controle consistia em rastrear e restringir a mobilidade dos
negros. Passava pela regulação dos espaços nos quais eles eram confinados, o
objetivo era extrair deles a maior quantidade de trabalho possível. Foi esta a
razão pela qual surgiram micro ambientes que serviam tanto como recintos quanto
como reservas. O contato entre os indivíduos eram ou proibidos, ou regidos por
leis estritas, sobretudo se esses indivíduos pertencessem a categorias raciais
diferentes. O controle passava pela modulação da brutalidade ao longo de linhas
raciais que o poder queria rígidas.
No apartheid a
brutalidade tinha três funções. De um lado, ela visava diminuir a capacidade
dos negros de assegurar sua reprodução social. Eles não estavam jamais
capacitados para reunir os meios indispensáveis a uma vida digna, com acesso a
alimentação, moradia, educação, saúde ou ainda direitos elementares de
cidadania.
Esta brutalidade
tinha, por outro lado, uma dimensão somática. Ela visava a imobilizar os
corpos, a paralisá-los e feri-los se fosse necessário. Enfim, ela atingia o
sistema nervoso e tendia a exterminar a capacidade de suas vítimas de criar seu
próprio mundo simbólico. Sua energias estava, a maior parte do tempo, voltada
para as tarefas de sobrevivência. Eles eram forçados a viver suas vida sempre
no modo da repetição. Este era, na verdade, o trabalho que o racismo devia
supostamente cumprir.
Essas formas de
violência e de brutalidade foram objeto de uma internalização mais profunda do
que gostaríamos de admitir. Elas são, desde 1994, reproduzidas de maneira
molecular no nível da existência comum e pública. Elas se manifestam em todos
os níveis de interação social cotidiana, quer se trate das esferas íntimas da
vida, das estruturas do desejo e da sexualidade, ou ainda da irreprimível
vontade de consumir todos os tipos de mercadoria.
O desejo frenético
de consumir é tomado pela essência e substância da democracia e da cidadania. A
passagem de uma sociedade de controle a uma sociedade de consumo tem lugar num
contexto marcado por diversas formas de privação pela maioria dos negros.
Extrema opulência e extrema privação coexistem, e o fosso que separa os dois
estados tende mais e mais a ser negociado pela violência e pelas diversas
formas de apropriação.
A democracia pós
Mandela é composta em sua maioria por negros sem trabalho e outros
desempregados, que não exercem o direito de propriedade sobre quase nada. A
longa história do país é ela própria marcada pelo antagonismo entre dois
princípios, o governo do povo para o povo e a lei dos proprietários.
Até pouco tempo
atrás, estes últimos eram quase que exclusivamente brancos e era isso que dava
às lutas a conotação racial. Este não é mais inteiramente o caso. A classe
média negra emergente, no entanto, não está na posição de desfrutar com toda
segurança dos direitos de propriedade recentemente adquiridos. Eles não estão
certos de que a casa comprada a crédito não será retomada amanhã, seja pela
força, seja por circunstâncias econômicas desfavoráveis. Este senso de
precariedade constitui uma das marcas da sua psicologia de classe.
O velho movimento
de liberação, o Congresso Nacional Africano (African National Congress, ANC),
acaba preso nas armadilhas de um processo de mutação ainda mais contraditório.
O cáculo feito pelas classes no poder e pelos proprietários do capital é que a
pobreza da massa e os níveis elevados de desigualdade poderiam, em determinadas
condições, conduzir a problemas, a greves episódicas e numerosos acidentes
violentos. Mas isso não resultou senão numa grande contracoligação capaz de
questionar o compromisso fundamental de 1994, que transferiu o poder político
ao ANC, e consagra a supremacia econômica e cultural da minoria branca.
A África do Sul
entra em um novo período de sua história, no qual os modos de acumulação não
operam mais por meio da desapropriação direta como nas guerras de despossessão
do século XIX. Elas passam pela captura e apropriação privada dos recursos
públicos, pela modulação da brutalidade e por uma relativa instrumentalização
da desordem. A constituição de uma nova classe dirigente multiracial se faz
então por uma síntese híbrida dos modelos russo, chinês e africano
pós-colonial.
Nesse meio tempo, o
espaço público se rebalcaniza progressivamente. A geografia demográfica do país
se fragmenta. Abandonando o interior do país, inúmeros brancos se aglutinam nas
costas, notadamente na província de Cabo-Oeste. Eles têm medo do processo
excessivo de africanização do país e sonham em reconstruir aqui o alicerce de
uma república branca, livre das armadilhas do apartheid mas dedicada à proteção
dos privilégios de outros tempos.
O paradoxal apego
aos padrões psíquicos da época da segregação racial constitui uma resposta
parcial ao processo de transformação do país em uma nação de cidadãos armados,
uma espécie de nação-organização dotada de uma polícia profundamente corrompida
e militarizada. Os ricos se beneficiam de uma aparência de proteção comprada de
milhares de guardas e empresas de segurança privada, propriedade em parte dos
barões no poder e de seus comparsas (3).
Este novo regime de
controle da mercadoria se consolida ao fundo de uma redistribuição drástica dos
recursos da violência. Uma sociedade armada é tudo, menos uma sociedade civil.
É ainda menos uma verdadeira comunidade. Ela é um aglomerado de indivíduos
autônomos, isolados face ao poder, separados pelo medo e pela suspeição,
incapazes de integrar uma massa, mas prontos a colocar-se sob o domínio de uma
milícia ou de um demagogo, ao invés de construir organizações disciplinadas
essenciais para o funcionamento de uma sociedade democrática.
No mais, da vida
como a prática de Mandela, duas lições merecem ser aprendidas. A primeira é que
só existe um mundo, ao menos por enquanto, e esse mundo abarca tudo o que ele
é. O que, consequentemente, é comum a nós é o sentimento ou, ainda, o desejo de
sermos seres humanos inteiros. Este desejo de plenitude na humanidade é alguma
coisa que todos partilhamos.
Para construir este
mundo que nos é comum, será preciso restituir àquelas e àqueles que sofreram um
processo de abstração e de coisificação na história, a parte de humanidade que
lhes foi roubada. Não haverá consciência de um mundo comum enquanto os que
foram imersos em uma situação de extrema pobreza não escaparem das condições
que os confinam à noite da infravida. No pensamento de Mandela, reconciliação e
reparação estão no coração da própria possibilidade de construção de uma
consciência comum do mundo, ou seja, da conquista de uma justiça universal. A
partir de sua experiência carcerária, ele conclui que há alguma humanidade
intrínseca de que é depositária cada pessoa humana. Esta parte irredutível
pertence a cada um de nós. Ela faz com que, objetivamente, nós sejamos talvez
distintos uns dos outros e, ao mesmo tempo, semelhantes. A ética da
reconciliação e da reparação implica, consequentemente, o reconhecimento
daquilo que poderíamos chamar “a parte do outro”, que não a minha, da qual sou
portanto o fiador, quer queira quer não. Desta “parte do outro” eu não poderei
me furtar sem consequências pela ideia de si mesmo, da justiça, do direito e
até da humanidade inteira, ou ainda pelo projeto de universalidade, se for
este, realmente o destino final.
Nestas condições é
inútil erguer fronteiras, construir muros e cercas, dividir, classificar,
hierarquizar, procurar refúgio no rebaixamento da humanidade daqueles que
tínhamos subjugado, errado, como se não parecessem conosco ou com os quais
pensamos que não nos entenderíamos jamais. Há um só mundo, e todos nós somos
herdeiros dele, mesmo que as maneiras de habitá-lo não sejam as mesmas – donde,
justamente a real pluralidade de culturas e de modos de vida. Dizer não
significa absolutamente ocultar a brutalidade e o cinismo que ainda
caracterizam o reencontro de povos e nações. É simplesmente relembrar um dado
imediato, inexorável, cuja origem se situa sem dúvida no início dos tempos
modernos: o irreversível processo de mestiçagem e de entrelaçamento de
culturas, povos e nações.
Frequentemente, o
desejo de diferenciar-se emerge precisamente ali onde se vive de maneira mais
intensa a experiência de exclusão. A proclamação da diferença é então a
linguagem reversa do desejo de reconhecimento e de inclusão. Para os que
sofreram a dominação colonial ou para aqueles cuja humanidade foi roubada em um
dado momento da história, a recuperação desta humanidade passa frequentemente
pela proclamação da diferença.
Mas, como vemos
numa parte da crítica africana moderna, este não é senão um momento de um
projeto maior: o projeto de um mundo em devir, de um mundo à nossa frente, cuja
destinação é universal; um mundo desvencilhado do fardo das raças e do
ressentimento e do desejo de vingança que domina toda situação de racismo.
(*) O autor é
professor de história e de ciência política na Universidade de Witwatersrand em
Johannesburgo. Autor de Crítica da razão negra, das edições La Découverte,
lançado em outubro 2013.
(1) Nelson Mandela,
Conversações comigo mesmo, Seuil, coleções “Points”, Paris, 2011.
(2) Cf. Nelson
Mandela, Um longo caminho para a liberdade, Le Livre de Poche, Paris, 1996
(3) Ler Sabine
Cessou, “Três tumultos por dia na África do Sul”, Le Monde Diplomatique, março
2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário