sábado, 12 de abril de 2014

ARGENTINA ARGENTINA



José Martins* – Revista Rubra

Não é fácil falar do capital quando ele está em forte expansão. Seu triunfante movimento material abafa penosamente as possibilidades do pensamento crítico. Há quase cinco anos as principais economias dominantes – EUA, Alemanha e Japão – ampliam velozmente a produção e a acumulação. Os lucros batem recordes nas suas cadeias produtivas globais de valor e de mais-valia. Entretanto, o mesmo não se pode dizer das principais economias dominadas, conhecidas como “emergentes” pela propaganda liberal. Aqui, ao contrário, o que se passa é a desaceleração da acumulação.

No embalo do desenvolvimento desigual e combinado, os festejados Brics, até algum tempo atrás os queridinhos de nove entre cada dez economistas, transformam-se agora nos patinhos feios da retomada global. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul lutam contra turbulências financeiras e cambiais. Essa é a beleza do sistema capitalista: imensa capacidade de destruir e amaldiçoar suas imundícies com a mesma rapidez com que elas foram construídas e glorificadas.

Acrescente-se aos Brics outras importantes economias, como Argentina, Turquia, Indonésia, Venezuela, etc., e temos à nossa frente esse quadro paradoxal de travamento da totalidade das economias dominadas (mais-valia absoluta) no mesmo momento em que as economias dominantes (mais-valia relativa) aceleram suas máquinas. Essa liquidação do crescimento na periferia em plena fase de expansão da economia global é uma particularidade muito importante do atual ciclo econômico, iniciado no segundo trimestre de 2009.

Essa particularidade deve definir em grande medida a forma e profundidade da próxima explosão global. Funde-se a outras particularidades deste ciclo – notável enfraquecimento das finanças públicas das economias dominantes e de intervenção dos seus bancos centrais; crescente ingovernabilidade imperialista em amplos espaços geopolíticos; esfacelamento do Estado social no centro do sistema, etc.

Depois das ações nos mercados emergentes terem caído para os níveis mais baixos em cinco meses, e suas moedas sofrerem fortes desvalorizações, calcula-se que mais de US$ 2 trilhões foram queimados nos mercados de capitais globais neste ano. Não é uma quantia desprezível. Colapso dos preços no conjunto das economias emergentes. Porém, no meio destes abalos, as vicissitudes cambiais e elevação dos preços na Argentina são noticiadas como um caso isolado ou, pelo menos, como o caso mais grave desta síndrome de liquidação de valor do capital. Vale a pena verificar mais de perto o que se passa na terceira maior economia da América Latina.

POPULISMO DO CAPITAL – O terrorismo da mídia econômica imperialista – The Economist, Financial Times, Bloomberg, The Wall Street Journal, etc. – retrata as atuais turbulências cambiais argentinas como resultadas de uma economia estagnada, que nos últimos dez anos (era Kirchner) acumulou erros de política econômica, populismo, protecionismo, nacionalismo etc. Por isso, resultados econômicos ruins que agora se manifestam como repetição da grande crise vivida entre 2000 e 2002. Errado: uma verificação dos dados reais das economias emergentes mostra muita gente graúda com os fundamentos econômicos bem mais deteriorados que a Argentina – e se alguém imagina que a Argentina teve uma participação destacada naquela queima de capital global citada acima, veja a recente evolução de algumas importantes bolsas de valores.

Surpreendentemente, o que se verifica é uma supervalorização do capital financeiro na economia argentina, que se mantém neste ano (+ 9,10 % até 06/02/2014). Quer dizer, o processo de pulverização do capital financeiro nos “emergentes” ocorreu efetivamente nas demais grandes economias – Turquia, Índia, China, Brasil, etc. Essa paradoxal valorização do capital na Argentina (e a desgraça da sua população) fundamenta-se na particular articulação das suas classes dominantes com o imperialismo e no claro favorecimento da política econômica dos Kirchner aos seus interesses privados, nos últimos dez anos. Por isso, por trás daquela estrondosa valorização das ações, neste período, encontra- se uma expansão não menos estrondosa do seu Produto Bruto Interno (PIB).

No quarto trimestre de 2011, o PIB do país havia subido a um patamar seis vezes maior que oito anos antes – terceiro trimestre de 2003. No mesmo período, pelo mesmo critério de medição, os PIBs de Brasil e México subiram a um patamar apenas duas vezes e meia maior, com taxas mais baixas de acumulação.

Se for verdade que predominou alguma política populista do governo argentino nos últimos dez anos, pecado denunciado em todas avaliações liberais imperialistas sobre a situação atual, o que se verifica pelos seus resultados é que que essa forma de governo da era Kirchner foi excepcionalmente conveniente à acumulação do capital e, por supuesto, aos lucros das classes dominantes. É uma tradição do peronismo. A política de Peron, contam argentinos inteligentes, se assemelhava a de um motorista que ao se aproximar de uma encruzilhada dava sinal de pisca à esquerda e… entrava à direita.

Mas o neoperonismo da era Kirchner parece bem menos espetacular que o primitivo do generalíssimo: “O kirchnerismo reconstruiu o Estado imaginando um capitalismo regulado, subsidiando a burguesia e esperando um funcionamento eficiente. Forjou um regime com pilares para-institucionais e as semelhanças com o peronismo primitivo não se estendem à relação com os trabalhadores. O kirchnerismo procura desembaraçar-se da marca que mantinha tradicionalmente o movimento operário dentro do peronismo. Procura congraçar- se com os capitalistas para estabilizar um regime desligado das demandas sociais. É verdade que favoreceu no início a reconstituição dos sindicatos, mas com o proposito de debilitar os piqueteiros. Quando os grêmios recuperaram seu peso, o oficialismo embarcou em uma política de fratura das centrais sindicais”[1].

Continuaremos a seguir com o segundo ato da tragédia.

*José Martins, economista, editor do boletim Crítica Semanal da Economia do Núcleo de Educação Popular de São Paulo, professor na UFSC

CRÍTICA SEMANAL DA ECONOMIA

EDIÇÃO Nº 1178/1179 – Ano 28; 2ª/3ª Semanas Fevereiro 2014.
Núcleo de Educação Popular 13 de Maio – São Paulo, SP.

[1] Claudio Katz, Anatomia del Kirchnerismo, in La Pagina de Claudio Katz, 11/1/2013, katz.lahaine.org

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