sexta-feira, 20 de junho de 2014

Cabo Verde: O espantalho dos “custos da democracia”



Expresso das Ilhas - editorial

Recentemente a questão dos custos da democracia voltou à baila em Cabo Verde. O doutor Carlos Lopes no II Fórum de Transformação referiu-se à necessidade de os ultrapassar para supostamente se tornar expeditas as decisões com impacto no desenvolvimento do país. Numa entrevista na semana passada o primeiro-ministro José Maria Neves afinou pelo mesmo diapasão e propôs “reduzir os custos da democracia”. Preocupa-lhe particularmente a “enorme quantidade de recursos” necessários à instalação do Tribunal Constitucional, da Comissão Nacional de Dados, da Provedoria da Justiça, da Comissão Nacional de Eleições e da Agência de Regulação da Comunicação Social, e os exigidos para a regionalização e para as transferências para os municípios e para os diferentes órgãos de soberania. Sugere que se repense tudo isso e que se fique pelo Estado necessário.

Curiosamente o que vem à mente do PM para cortar são as despesas afectas a instituições que garantem a conformidade da governação com a Lei, a defesa dos cidadãos perante eventuais abusos da administração, a realização de eleições livres e justas e a pluralidade de opiniões e ideias na comunicação social. Para o cabo-verdiano comum, para o utente e para o investidor, gestor ou empresário as dificuldades vêm de outros pontos da máquina do Estado: da burocracia excessiva, da insensibilidade da administração, da ausência de cultura de serviço público, de falta de segurança física e jurídica, de taxas descabidas e de preços de monopólio em factores básicos como energia e água. Como se pode constatar do inquérito do INE, os cabo-verdianos sentem-se bastante confortáveis com a democracia. Já não se conformam tanto é com a incompetência demonstrada pelas autoridades no tratamento de matérias que os afectam no dia-a-dia.

Não é novidade em Cabo Verde aparecer quem queira erguer um espantalho para assombrar a democracia. Durante o salazarismo dizia-se que a existência de partidos políticos e a liberdade de expressão só trariam confusão, perda de tempo e incapacidade de decisão em matérias públicas. Nos 15 anos de partido único fazia-se acreditar que ter mais do que um partido era abrir o caminho para um conflito permanente e pernicioso que não deixaria o país avançar. A realidade de mais de duas décadas de pluralismo e democracia provou precisamente o contrário. Nunca o país cresceu e prosperou tanto como nos anos de liberdade, não obstante as óbvias falhas ainda existentes no funcionamento do sistema político.

Há quem veja no chamado “despotismo iluminado” a via rápida para se ultrapassar obstáculos sociais, culturais e políticos que muitas vezes se colocam no aproveitamento de oportunidades. Se em Singapura tal regime com as suas particularidades, como bem realçou o seu líder Lee Kuan Yew, de luta contra acorrupção e prostituição e de promoção da meritocracia resultou em fazer da ilha um país desenvolvido, na generalidade das experiências noutros países e em todos os continentes foi de um fracasso completo. Como Cabo Verde, muitos países após décadas de um regime déspota depararam com anos de estagnação, com elefantes brancos por pagar  e com a perda sistemática de oportunidades de investimento, de comércio e de exportações. E não é porque a Ruanda ou a Etiópia se habilitaram com um governo mais autoritário para enfrentar os gravíssimos problemas qua ameaçaram desintegrá-los num determinado momento que os torna relevante para a experiência cabo-verdiana. A histórica económica dos últimos anos revela que sustentabilidade e crescimento económico dependem do grau em que o ambiente de negócios, mais o ambiente económico e político criados se mostrarem propícios à soltura das amarras da imaginação e da criatividade, ao fomento da iniciativa individual e à valorização do risco.

O momento que se vive hoje em Cabo Verde não é de insuficiências graves do modelo democrático. É sim, de esgotamento de um modelo económico que privilegiou a captação da ajuda externa e sua distribuição interna pelo Estado em detrimento de uma estrutura económica suportada pelo sector privado mais voltada para exportações e para a criação do emprego emancipador. A macrocefalia do Estado, referido pelo PM  e que se revela nas dificuldades em decidir e executar, resulta em boa medida do sistema de poder e de influência que esse modelo redistributivo gerou. A partidarização de vários escalões da administração pública, de institutos e das direcções de empresas públicas que pressupõe tende a criar de nichos de poder capazes de curto circuitar decisões superiormente tomadas, como muitos já tiveram a oportunidade de comprovar.

A ineficácia actual do Estado estará mais ligada a isso do que à relação de confronto entre o governo e a oposição que é própria das democracias. Cabe pois ao governo ultrapassá-la, fazendo da administração pública sob a sua direcção ou supervisão uma máquina efectiva ao serviço dos cidadãos e do desenvolvimento. Estribar-se na crispação política para não fazer o trabalho pelo qual é o principal responsável, não é opção aceitável. Muito menos quando se compreende pelas dúvidas de fundo quanto ao Tribunal Constitucional e aos outros órgãos referidos de onde vem grande parte da resistência para se chegar a acordo e diminuir a tensão política. Não é curial acusar os outros de fazer oposição pela oposição quando a duplicidade de razões condiciona o nosso posicionamento.

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