sábado, 28 de junho de 2014

UE-Portugal: Incluir no PIB prostituição e drogas suscita reservas éticas e técnicas



Ana Tomás – jornal i

Associações e investigadores questionam fiabilidade dos novos métodos de contabilização e criticam visão economicista destas actividades

Melhorar as estimativas de cálculo do impacto que actividades como a prostituição, o tráfico de droga ou o contrabando têm no produto interno bruto (PIB) é uma tarefa complexa. Há quem tema mesmo que as recentes orientações do organismo de estatística europeu, o Eurostat, para que os estados-membros da União Europeia passem a incluir a partir de Setembro no seu PIB projecções sobre o peso dessas actividades, não só não reflictam a realidade como conduzam a uma lógica proibicionista e persecutória, em vez de relançarem o debate sobre a regulamentação do trabalho sexual e das drogas leves.

O sociólogo Bernardo Coelho, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) e especialista na temática da prostituição, considera que estas novas projecções, resultantes de simulações e hipóteses e com uma representação estimada de 0,4% do PIB (676 milhões de euros), são um paradoxo, uma vez que as regras do Eurostat passam a vigorar em países onde existem políticas de criminalização da prostituição. "Fazer uma coisa sem fazer a outra é completamente inaceitável", afirma em declarações ao i.

O economista Filipe Garcia lembra que as regras de cálculo do PIB já contemplavam a contabilização de actividades irregulares e ilegais e que o que se pretende agora é melhorar os métodos estimativos para aferir o seu contributo para a riqueza nacional. "Tudo o que possa contribuir para um cálculo mais apurado do PIB é positivo", explica o economista da IMF - Informação de Mercados Financeiros, embora reconheça que "a contabilização das actividades denominadas ENO - Economia não observada - recorre a métodos indirectos que agregam observação com pressupostos sobre a realidade". São estes pressupostos que são questionados por Bernardo Coelho. "Como é que uma actividade que é tratada como uma actividade subterrânea pode ser contabilizada? Só pode ser contabilizada tendo por base os relatórios policiais, dados oficiais, e a partir daí fazer uma estimativa estatística. Se fizerem uma rusga e detiverem trabalhadores e clientes, vão contabilizando isso e fazer alguma extrapolação do que seria de esperar da contribuição da prostituição para a riqueza nacional. Aí está aberto o caminho é para um aumento da repressão."

O investigador refere que o que se está a desenhar é uma "lógica abolicionista, proibicionista, criminalizadora da prostituição", desde logo porque a prostituição aparece associada a actividades criminosas que nunca vão ser legalizadas. "Podem estar aqui actividades como o tráfico de armas, que nada têm a ver com a prostituição, ou outro tipo de actividades ilegais, e é aí que ela é colocada", alerta.

Também Joseph Silva, da Marcha Global da Marijuana Lisboa (MGM), organização que defende a legalização da canábis, entende que esta nova metodologia representa um cálculo "fictício" das contas públicas, já que o Estado não tem instrumentos para contabilizar a riqueza gerada pelo tráfico. "Toda a contabilidade que se vá fazer basear-se-á em estimativas, que não corresponderão à totalidade da realidade mercado, simplesmente porque é um mercado protegido pela clandestinidade." Para a MGM, estas orientações reforçam ainda "o falhanço da política proibicionista" que tem vindo a ser seguida pelo governo, mantendo o problema e conduzindo ao seu agravamento.

Questionado pelo i sobre se os novos cálculos poderão relançar, pelo menos, o debate sobre a legalização das drogas leves, Joseph Silva mostra-se céptico, mas ressalva que dependerá da forma como se analisarem estes resultados. "Se olharmos para o contributo, com base nos resultado já obtidos para a contabilidade nacional com o mercado ilegal e da projecção futura possível que se poderá fazer já num mercado legal, e em que os resultados nos dirão que os ganhos para a economia nacional serão maiores do que são agora, podemos dizer que sim, que favorecerá a legalização". No entanto, ressalva que, se a linha seguida politicamente fosse a de ganhos para o PIB através da legalização, "não estaríamos a levantar esta questão, porque há muito que já teria sido legalizado".

Ainda que cauteloso, João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), admite que esta nova forma de contabilização possa relançar a discussão, sobretudo porque surge numa altura em que começam a aparecer novos modelos regulamentares.

"Penso que não é possível iludir esse debate neste momento. Até agora temos todos funcionado num paradigma proibicionista e há experiências no Uruguai e em alguns estados dos Estados Unidos em que se entra num paradigma de regulação. Tal como outros países seguiram com muita atenção a experiência descriminalizadora de Portugal, penso que é a nossa vez de acompanharmos essas experiências, que estão a ensaiar uma nova via. Que resultados e impacto têm nos níveis de consumo, nos problemas de saúde ocasionados por esse consumo, ao nível da criminalidade e no possível arrecadar de receitas fiscais? É preciso avaliar com rigor todas estas vertentes e talvez essas experiências possam vir a ser inspiradoras para outros países", defende.

Já no caso da prostituição, o modelo que começa a ressurgir é o da abolição da actividade, com base na experiência do Norte, que assenta na criminalização dos clientes e que inspirou a aprovação recente pelo Parlamento Europeu de uma recomendação aos estados-membros no sentido de criminalizar a compra de serviços sexuais a prostitutas com menos de 21 anos, que Portugal rejeitou. O sociólogo considera que essa recomendação não previne o problema do tráfico nem resolve o problema da exploração sexual como é advogado, considerando abusiva a confusão entre as duas realidades e alertando para uma maior marginalização da prostituição com esse tipo de medidas. "É essa a avaliação que se vai fazendo da experiência, nomeadamente na Noruega, desde que foi implementada a criminalização dos clientes. A prostituição perdeu visibilidade mas não desapareceu. Significou perda de condições para quem se prostitui." Por essa razão, a APDES, membro fundador da Rede sobre Trabalho Sexual, entende que a inclusão desta actividade nos cálculos do PIB deveria "beneficiar a transição do trabalho sexual para o mercado de trabalho formal, conferindo aos trabalhadores do sexo direitos e deveres", e não reflectir apenas "uma perspectiva simplista e desumana do fenómeno, por considerar apenas dimensões financeiras".

"O facto de se tratar de um mercado paralelo, remetido à marginalidade e à invisibilidade, não permite estimar o número real ou aproximado de pessoas que se movimentam neste sector e o seu consequente impacto económico. O enquadramento legal do trabalho sexual deverá promover melhores condições laborais e de vida e o acesso a direitos laborais por parte destas populações e fornecer indicadores que permitam uma aproximação à real expressão do fenómeno, como o número de trabalhadores, de clientes atendidos ou preços praticados."

Bernardo Coelho diz, por isso, que esta nova contabilidade do PIB vai afectar sobretudo a prostituição de rua, por ser a mais exposta, e talvez algumas casas de alterne. "Há toda uma panóplia de outras formas de prostituição que são muito difíceis de contabilizar se a prostituição não for profissionalizada. O que me preocupa mais nem é dificuldade metodológica do cálculo da prostituição no PIB, é o que está por detrás, tratar isto como uma actividade ilegal e criminosa. Por si só esta medida, que é uma medida estatística, não traz abertura suficiente para que se possa pensar uma transformação do enquadramento jurídico normativo da prostituição e se houver poderá ser no sentido da criminalização do cliente", remata.

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