Folha
8 Diário, opinião
Há
quase um ano, publiquei com dois colegas um apanhado desses esquemas, que já
tinham preocupado as autoridades judiciais francesas e brasileiras. O que segue
é um extracto do livro “Os Donos Angolanos de Portugal”.
Francisco
Louçã (*)
Parece
que as autoridades portuguesas se interessaram pelos negócios do General
Kangamba em Portugal. Há
quase um ano, publiquei com dois colegas um apanhado desses esquemas, que já
tinham preocupado as autoridades judiciais francesas e brasileiras. O que segue
é um extracto do livro “Os Donos Angolanos de Portugal” (Jorge Costa, João
Teixeira Lopes e Francisco Louçã, publicado pela Bertrand Editora, primeira
edição em Janeiro de 2014).
Bento
dos Santos, dito Kangamba, é um filho do regime angolano e a sua história
mistura-se com a das personalidades mais marcantes do país. Casado com Avelina
dos Santos, filha do irmão mais velho de José Eduardo dos Santos, é portanto
sobrinho, por afinidade, do Presidente. Escolheu como seu padrinho de casamento
o general Higino Carneiro, governador do Kuando Kubango, figura sempre poderosa
em Angola. Faz
parte da Casa Militar do Presidente, dirigida pelo homem forte do regime, o
general Kopelipa. É dono de um clube de futebol, o Kabuscorp — Sport Clube do
Palanca, para o qual contratou o antigo treinador da selecção de Moçambique, e
financia dois clubes em Portugal, o Vitória de Setúbal (RR, 9.3.2012) e o
Vitória de Guimarães (A Bola, 27.10.2013). Bem relacionado, Kangamba tem estado
no centro da atenção da vida social e empresarial de Angola.
A
ligação ao futebol é o seu cartão de visita. O seu clube sagrou-se campeão
nacional em 2013 e o oficial Jornal de Angola descreve em termos apoteóticos a
consagração do empresário no final do jogo decisivo, ainda antes do final do
campeonato: “Com o apito final foi a festa, com o champanhe a jorrar à grande
no estádio municipal de Benguela, com o presidente do clube, Bento Kangamba a
ser o protagonista dos festejos no relvado. Mas, a ambição do empresário, já
chamado de ‘Abramovich angolano’, é terminar a competição sem qualquer derrota”
(JA, 7.10.2013).
Apesar
de reformado, foi ainda promovido a general de três estrelas uns anos depois,
em Abril de 2012.
O
“Abramovich angolano” nasceu em 1965 e foi portanto poupado pela idade aos
combates da guerra anti-colonial, mas distinguiu-se mais tarde no exército
angolano. Fez dois anos de formação em Cuba, no início dos anos oitenta, de
onde regressou com uma especialização em contabilidade. Tornou-se ,
como contou à Rádio Ecclesia, um “comandante da retaguarda” (RE, 5.7.2012). A
partir de 1985 foi para Luanda, onde foi responsável pela logística e fez uma
carreira meteórica, tendo chegado a brigadeiro, posto em que se reformou, em
condições que vamos analisar adiante. Apesar de reformado, foi ainda promovido a
general de três estrelas uns anos depois, em Abril de 2012. Criou entretanto um
universo empresarial, o Grupo Kabuscorp, com interesses no imobiliário, na
exploração de diamantes e noutros sectores económicos.
Esta
brilhante carreira militar tem no entanto algumas nódoas. Kangamba adquiriu
experiência empresarial como responsável pela logística do exército, mas também
viveu alguns dissabores. Acusado de vender em benefício próprio a carne de
frango destinada ao exército, foi posto em tribunal por vendedoras dos mercados
paralelos, que argumentavam ter pago o que não teriam recebido. Mas a acusação
não dispensa a prova nem a condenação, e o general podia ser vítima de inveja e
chantagem, como tem evocado em público (RE, 5.7.2012).
No
entanto, o próprio Supremo Tribunal Militar condenou-o a dois anos e oito meses
de prisão em 2000, tendo dado como provado que recebera em 1996 cinco
contentores com óleo alimentar, atum, sardinha, frigoríficos, mobiliário,
equipamento desportivo, colchões e outros produtos enviados pelo empresário
português Manuel Lapas Correia, gerente da Filapor, e que os usara para venda
em proveito próprio, tendo pago unicamente uma parte dos duzentos e cinquenta
mil dólares devidos. Pressionado para pagar a dívida, o brigadeiro Kangamba teria
falsificado documentos que lhe confeririam poderes para negociar em nome da
Direcção Logística do Estado-Maior, de modo a obrigar o exército angolano a
cobrir a diferença, o que veio a desencadear a sua acusação e condenação por
burla, falsificação de documentos e conduta indecorosa (acórdão STM 2/98 de
27.10.2000). Cumpriu dois anos de prisão e foi expulso do Comité Central do
MPLA e do partido. O brigadeiro tinha caído em desgraça.
A
19 de Junho de 2002, outra condenação: quatro anos de prisão, por burla, desta
vez tendo como alvo duas empresas, a Nutritiva e a Lokali. O mesmo esquema, o
mesmo fracasso, a mesma condenação.
Na
sequência do primeiro processo, também o Tribunal de Sintra, em Portugal,
decidiu muito mais tarde, a 7 de Maio de 2012, a apreensão de bens
de Kangamba para garantir a indemnização à Filapor, que não teria sido paga: um
apartamento em Oeiras, dois Mercedes e seis contas no BCP e BES que
totalizariam cerca de quinze mil euros. Kangamba, já general, seria ao mesmo
tempo assalariado de uma empresa a Lapigema, Lapidação e Comércio de Gemas,
Lda., com sede na Rua Tomás Ribeiro, em Lisboa. Mas , porque só receberia o salário mínimo
português, 485 euros, o tribunal considerou este valor impenhorável.
Em
2009, tudo passou e em Luanda a sua condenação e prisão já estava esquecida e
perdoada. Popular dono de um clube de futebol, organizador de jovens e
influente figura do bairro Palanca, Kangamba regressa ao Comité Central do
MPLA. É nomeado secretário para a organização e mobilização periférica e rural,
no comité provincial de Luanda. É eleito deputado à Assembleia Nacional em
2012, apesar de protestos de alguns grupos de oposição que alegam, sem
vencimento, que a Constituição impede candidaturas de quem tenha sido condenado
a mais de dois anos de prisão. Em Abril de 2012, nas vésperas das eleições,
tinha sido promovido a general de três estrelas pelo Presidente. Em 2013, como
vimos, ganhou o campeonato nacional de futebol.
Casado
com Avelina dos Santos, aproxima-se dos círculos íntimos do poder. Avelina é
directora-adjunta do gabinete do Presidente, além de ser sua sobrinha. Homem de
família, Kangamba compra um apartamento de luxo em Lisboa, alegadamente para o
sogro, por dois milhões de euros, na urbanização Jardins do Cristo Rei, em
Moscavide, onde será vizinho de outras figuras angolanas. Para si, compra um
apartamento de doze milhões de euros em Madrid, no condomínio de La Finca , onde terá como
vizinhos Cristiano Ronaldo e outros futebolistas. Terá ainda comprado uma
vivenda no Mónaco, além do referido apartamento em Oeiras (Maka, 27.7.2013). O
general é um modelo de “acumulação primitiva”, declarando em Portugal o salário
mínimo e tendo contas registadas que se ficam pelos quinze mil euros, mas
conseguindo boas poupanças e prósperas aplicações imobiliárias.
Apesar
desta opulência, o general não terá pago as suas dívidas. A indemnização
imposta pelo tribunal e que devia ter sido paga à Filapor, nunca chegou aos
destinatários. O ministro da Defesa de Angola, o general Kundy Paihama, teria
mesmo escrito, a 17 de Dezembro de 2001, ao então secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros Luís Amado, para “express(ar) o meu sentimento de
reprovação pela prática criminosa do réu supracitado cujo comportamento mereceu
condenação do Supremo Tribunal Militar”. O ministro sugeria ainda as
formalidades a seguir para obter o pagamento da indemnização (Maka, 13.7.2012).
Sem sucesso.
Dez
anos depois desta carta, o empresário Manuel Lapas Correia andava pelo tribunal
de Sintra a pedir o arresto dos bens do general e, em desespero de causa,
conseguiu a retenção de um avião da TAAG no Porto, que só obteve autorização
para descolar depois de ter assegurado uma caução de 360 mil euros – uma parte
do devido pelo general Kangamba. Segundo o empresário, “há danos irreversíveis
que durante mais de uma década foram provocados intencionalmente pelas
autoridades angolanas. Eu estou causticado porque é uma luta desigual, estou
cansado.
Normalmente
os Estados comportam-se de uma forma desprezível perante os seus cidadãos e
[isso] culmina quase sempre com o abate dos cidadãos pela exaustão” (DN,
20.9.2012). Explica Manuel Correia que algum do pagamento teria ficado retido
na embaixada de Angola em Portugal, o que o autorizaria a pedir a retenção de
bens do Estado angolano, como é o caso do avião da companhia nacional. Dez anos
depois, era a medida do seu desespero. Kangamba não pagou as suas dívidas.
Novos
problemas – e não menos graves – surgem em dois outros países. Em 14 de Junho
de 2013, dois carros foram apreendidos, com poucas horas de diferença, em
portagens no sul de França. Num deles, foram encontrados dois milhões de euros,
em quarenta sacos de cinquenta mil cada. No outro, foram encontrados mais 910
mil euros. Oito homens foram detidos. Pelo menos cinco deles, angolanos, cabo-verdianos
e portugueses, estariam relacionados com o general Kangamba, segundo a polícia
francesa (La Provence ,
10.7.2013).
Um
dos carros tem matrícula portuguesa e é de Portugal que provêm ambos. Carlos
Silva, angolano de nascimento e português por naturalização, está num deles: é
apresentado como o secretário de Kangamba, tem um cartão do patrão, e alega que
leva o dinheiro para o general jogar no casino. Kangamba, como vinte amigos,
estava instalado no Hotel Metrópole, em Monte Carlo. O
general teria pago 86 mil euros pelos 22 quartos para os seus amigos (Le
Parisien, 12.7.2013). A imprensa francesa descreve que a polícia tentou deter o
general, acusando-o de branqueamento de capitais e associação criminosa, mas
que este usou o passaporte diplomático para abandonar o país. Kangamba desmente
esta versão e afirma que não foi acusado, que não é o dono desse dinheiro e que
não houve tentativa de o deter (Agora, 30.7.2013). De onde vêm os três milhões
de euros, como é que viajam de Portugal para França, não sabe nem faz a mínima
ideia.
Três
meses depois, em 25 de Outubro de 2013, nova acusação: desta vez é a justiça
brasileira, que emite um mandato de captura em nome do general, acusado de ser
o responsável por uma rede de tráfico de mulheres brasileiras, para se
prostituírem em Portugal, Angola e outros países, supondo-se que esta
actividade teria produzido um lucro de 45 milhões de euros desde 2007. Foram
emitidas dezasseis ordens de prisão. A Interpol ficou encarregue de fazer
cumprir o mandato, mesmo que as autoridades brasileiras tivessem reconhecido
ter pouca expectativa de a polícia angolana vir a executar a decisão judicial,
como seria sua obrigação.
Mais
uma vez, Kangamba desmentiu a acusação. Declara que, nestas notícias, “a
intenção de citar o seu nome visa atingir e caluniar outras personalidades”
(Angop, 26.10.2013), ou seja, envolver o topo do regime angolano.”
(*)
In: Esquerda.net
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