quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O CELESTIAL IMPÉRIO DO MEIO (2)



Rui Peralta, Luanda (ver textos anteriores)

VII - A organização dos mercados chineses è, no mínimo, surpreendente, não só pela sua estrutura interna, como pela sua configuração. Um burgo ou uma pequena cidade, rodeado por dezenas de aldeias situadas a uma distância que permite ao camponês ir à cidade e voltar para a sua aldeia no mesmo dia. Esta característica da geometria cantonal chinesa, a zona de irradiação do mercado urbano, constitui a matriz camponesa do país. Os burgos e pequenas cidades, por sua vez, gravitam em torno de uma grande cidade, a curta ou media distância, abastecendo-a e nela cessando às correntes de tráfico longínquo e às mercadorias não produzidas na região.

Este sistema cantonal è evidenciado pelos calendários dos mercados das áreas urbanas, estabelecidos de forma a não existirem coincidências de datas. De um mercado para outro a circulação è intensa. Vendedores e artesoes -  ambos ambulantes - constituem o grosso desta circulação mercantil (os vendedores transportando as mercadorias e os artesoes - contratados nos mercados para prestarem serviço ao domicilio - transportando as ferramentas). A China è, assim, atravessada por mercados regulares, ligados entre si e rigorosamente controlados. Esta circulação capilar assegura o funcionamento da economia e a sua vitalidade, gerando uma mobilidade vertical superior à da Europa (cujo ponto forte assenta na mobilidade horizontal, escassa a Oriente).

Da mobilidade vertical resultou o mandarinato. A porta aberta por ascensão na hierarquia social eram os concursos para mandarim, abertos a todos os níveis sociais e mais acessíveis que as Universidades europeias. Os exames que permitem o acesso às altas funções do mandarinato são uma redistribuição dos papéis sociais. Os que chegavam ao topo apenas ali permaneciam por algum tempo e as eventuais fortunas, conseguidas no desempenho das altas funções, nem sempre eram suficientes para construírem famílias ricas. Alias, as famílias ricas eram suspeitas aos olhos do Estado, o único possuidor de terras, o cobrador de impostos e o monopolista da produção de moeda.

Neste processo de ascensão social, verticalizado ressalta uma das razoes do aparecimento tardio do capitalismo na China. O Estado, apesar da corrupção dos mandarins, foi sempre hostil às elites surgidas no mercado, de mobilidade horizontal e de caracter cosmopolita. Temia a concorrência e o poder que estas elites adquiriam e desde muito cedo, perante a impossibilidade de as dominar, tentou "amarra-las" nas teias da burocracia e dos negócios com o Estado. Largos sectores da burguesia nacional ficaram, desta forma, dependentes e/ou parceiras das camadas burocráticas, o que, num plano secundário, explica a razão pela qual inseriram-se facilmente no PC Chines, de Mao, ou no KMT, de Chang Kay Cheq. Apenas um pequeno sector cosmopolitizou-se em termos ideológicos, assumindo a sua rebeldia como "out siders" surgindo em bloco na fundação da Republica, ao lado de Sun Yat Sen e posteriormente espalhando-se pelas praças financeiras de Hong Kong e Singapura.

Nunca existiu capitalismo na China, apesar do espaço cantonal gerador de elites, de ricas e prosperas burguesias internas. O capitalismo existiu, sim, nas periferias da Insulíndia - onde os comerciantes chineses movimentavam-se livremente - e em Hong Kong, a "sombrinha" que protegeu o capitalismo chines e permitiu a sua entrada no "continente", ou seja, a sua reentrada no espaço cantonal.

VIII - O processo Histórico de modernização da China tem diversos momentos determinantes. Se começarmos no seculo XIX teremos, sucessivamente, a Guerra do Opio e o movimento de Auto-fortalecimento. No seculo XX, a Republica, a Revolução Chinesa, o Grande Salto em Frente, a Revolução Cultural e a "Politica de Portas Abertas" da década de 80. Em Junho de 1989 um novo momento determinante: os acontecimentos da Praça de Tiananmen.

Em 1988 a situação económica chinesa complicou-se. O governo impos fortes medidas de austeridade, tentando retomar o controlo da política económica. O programa das reformas è parcialmente interrompido e as importações reduzem-se. Os fundos de investimento  sofrem fortes constrangimentos e a incerteza toma conta dos investidores estrangeiros. O desemprego disparou e os chineses olhavam com apreensão o seu futuro. Foi neste quadro que ocorreram os acontecimentos da Praça de Tiananmen, em Junho de 1989.

Durante Tiananmen e logo apos o processo de reformas foi suspenso, as importações estancadas e os fundos de investimento foram encerrados. As reações do investimento estrangeiro foram diversas. Algumas empresas fecharam as portas (a Johnson & Johnson, ou a Pennzoil),umas temporariamente, outras definitivamente. Houve empresas que continuaram os seus negócios no país, mantendo as fábricas abertas  (caso da Procter & Gamble, que meses depois expandiu os seus negócios na China, mas longe de Pequim) e outras seguiram o exemplo da 3M (Minnesota Mining and Manufacturing), suspendendo por alguns dias as actividades em Pequim, mas mantendo as operações em Xangai. Por sua vez empresas como a IBM e a MTS Systems esperaram para ver o que os acontecimentos produziam na China e a reacção dos USA e do mercado europeu (na época a Comunidade Europeia).

IX - Em 1990 o processo de reformas foi retomado, o que levou o Banco Mundial a retomar os financiamentos a projectos locais. A Coca-Cola e  a H. J. Heinz anunciaram novos empreendimentos, enquanto a Peugeot e  a Continental Can reabriram as suas unidades em plena capacidade. A GE, a Boeing e a Xerox aumentaram as suas vendas, a Avon inundou Guangzhou (Cantão) com os seus produtos os Big Macs eram vendidos na Praça Tiananmen. As licenças comerciais voltaram a surgir e as exportações aumentaram. No 1° trimestre  de 1992 o investimento estrangeiro aplicou 6,5 biliões de USD em 3837 empresas (o dobro de 1991 e o quadruplo de 1989).

A economia chinesa revelou uma elasticidade surpreendente na década de 90. Na década anterior o investimento expandiu-se a uma média anual de 10%. Em 1989 - 1990 abrandou para 5%, mas em 1991 o crescimento medio anual do PIB foi de 7%. A produção industrial e o comércio retomaram um crescimento de dois dígitos. As indústrias rurais atingiram um crescimento de 23% e o país passou a permanecer na lista dos 10 maiores exportadores mundiais.

Em 1992 o comércio representou 1/4 do PIB. As importações e as exportações mantiveram o seu crescimento de dois dígitos, alcançado no ano anterior. O saldo comercial foi de 8,1 biliões de USD, as reservas em divisas foram de 30 biliões de USD e o índice de serviço da divida estabeleceu-se nuns modestos 10%.

Afinal os acontecimentos da Praça de Tiananmen, embora sem efeitos nas reformas politicas  com sentido liberal ou na produção de um quadro multipartidário e pluralista, acabaram por impulsionar as reformas económicas e catapultaram, no Partido e no Estado, as tendências reformadoras. Os sagrados princípios confucianos da "harmonia", do equilíbrio e da "estabilidade", passavam na sociedade chinesa sob o olhar imperturbável de Mao, o mesmo olhar reprovador que recaiu sobre os manifestantes na Praça, olhar que tornou-se atento quando recaiu sobre  os bastões que os reprimiam e aprovador quando os tanques dominaram a Praça.

Claro que o olhar de Mao recaiu, também, sobre as calculadoras das corporações internacionais, que faziam contas aos acontecimentos. Foi nesse exacto momento que entrou Confúcio...

X - No início de 1992 Deng Xiao Ping atribuiu os problemas da China aos "erros esquerdistas" e á recusa do Partido em "servir-se do capitalismo". Propôs a solidificação e o incremento da reforma económica e para isso convocou o Congresso Nacional Popular apelando para que este a mantivesse "inabalável durante 100 anos".

Os subsídios à importação e à exportação foram retirados, forçando as unidades produtivas e comerciais a serem "mais eficientes". Foram abertos novos mercados grossistas de trigo, milho e madeira. Xangai, Guangzhou e Shenzhen (uma Zona Económica Especial perto de Hong Kong) modernizar as tocas de stocks. Foi adoptado o sistema de posse de terra vigente em Hong Kong, baseado no empréstimo do uso da terra a longo prazo. A moeda foi autorizada a flutuar e surgiu um sistema bolsista formal.

Passaram a ser visíveis, na década de 90, duas Chinas: a China das elites burocráticas do Estado-Partido, cujas empresas estatais sugaram ao erário publico,  em 1991, cerca de 11 biliões de USD em subsídios, pretensos financiamento e ajudas diversas. A China dos burocratas, que prestam generosas atenções ao comércio externo mas apenas até ao ponto de este fornecer o ultimo grito tecnológico, que na maioria dos casos não tem possibilidades de ser absorvida, implementada e suportada pelo sector. Depois vem a outra China, fora do plano burocrático estatal, a China da modernização, composta pelas empresas estatais descentralizadas, pelas empresas privadas e pelas cooperativas, um país composto por Zonas Económicas Especiais, "Cidades Abertas" (como Danien e Tianjin, no mar Amarelo) e as principais áreas costeiras meridionais.

São duas Chinas onde a luta de classes e os mecanismos de rejuvenescimento das elites funcionam a diferentes velocidades e sentidos. Duas Chinas para "eternizar" os factores da competição, condição indispensável (depois do capital e do trabalho) à reprodução, condição essencial da expansão do capitalismo e da  sua pretensa "irreversibilidade" (os mitos do "fim da Historia" e do "pensamento único").

XI - Um dos fenómenos mais interessantes da China actual è a internacionalização do yuan. O que torna este processo profundamente interessante è o facto de ele ocorrer em paralelo com o outro fenómeno deveras interessante: a desdolarizaçao global, resultante das debilidades (já cronicas) da economia norte-americana.

Assistir aos dois fenómenos em simultâneo ê como presenciar o movimento das placas tectónicas. A  deslocação dos centros financeiros è um movimento ora lento e subtil, ora rápido e brusca, mas sempre imprevisível. Acontecem raros momentos como o que ocorre actualmente, que podem ser presenciados, observados, estudados e analisados. A internacionalização do yuan ocorre  também em paralelo com outros processos em curso na economia-mundo, para além da desdolarizaçao, mas consequências da deslocação, tais como a incerteza reinante nos mercados financeiros internacionais, a suspensão da reforma do FMI e a fragilidade da retoma económica mundial.

Os efeitos dos factores voláteis que caracterizam os mercados internacionais nos últimos anos são amortizados pela desdolarizaçao e reduzidos pela internacionalização progressiva do yuan, à medida que  este atinge uma dimensão  sistémica. Actualmente mais de 40 bancos centrais mantêm o yuan como moeda de referencia na acumulação de reservas, a par das divisas dominantes (libra esterlina, euro, dólar e yen). Quando em 1999 o euro entrou em circulação, 70% da composição das reservas dos bancos centrais manteve-se em dólares e cerca de 1,5% na rubrica "divisas diversas" (rand, dólar australiano, dólar neozelandês, dólar namibiano, franco suíço, coroa dinamarquesa, etc.). Em finais de 2013 a composição das reservas alterou-se: o dólar representa 60% e a rubrica "diversas" cerca de 7%, em grande parte devido ao yuan.

È evidente que a expansão comercial chinesa è a causa principal da internacionalização do yuan. Este factor levou, alias, a que o Banco central chines estabelecesse swaps com 25 bancos centrais, obrigando o yuan a seguir na senda da globalização. Existem, è certo, diversos riscos neste processo, sendo o mais problemático o duplo superavit da China (contas correntes e conta capital).

Não existem, em abono da verdade, outros caminhos a seguir. Se a China não injectar a sua moeda na economia-mundo acabará por "asfixiar-se" na acumulação de moeda (devido ás suas reservas exorbitantes em divisas). Esta acumulação pode resultar em pressão inflacionária, devido ao excedente de moeda.

Numa tentativa de corrigir esta situação o governo chinês promove a abertura gradual da conta de capital, colocando o yuan à disposição dos investidores estrangeiros. Como resultado os depósitos em yuans multiplicaram-se por 10 nos últimos 5 anos, havendo até final de Março deste ano mais de 3 mil contas interbancárias, sendo colocados cerca de1700 milhões de yuans entre empresas e clientes individuais.

Mas é fora da Ásia que a moeda chinesa encontra os seus apoios mais importantes: na União Europeia...

XII - Londres, Paris e Luxemburgo são cidades onde o comércio de yuans tem um especial relevo. Londres, recentemente, realizou a primeira emissão de bónus soberanos em yuans, fora da China, servindo estes fundos para financiar a acumulação de reservas em yuans do Banco de Inglaterra e por sua vez o BCE estuda a possibilidade de incluir o yuan nas suas reservas internacionais.

O estreitamento dos laços económicos entre a China e a U.E. criou uma maior cooperação financeira entre ambos, o que explica a forma tranquila com que o yuan se estabelece nas praças europeias. U.K. e Alemanha registaram uma subida de 120% nos pagamentos em yuans, entre 2013 e 2014, enquanto a França e o Luxemburgo registaram um aumento de 40%, segundo dados de Agosto, publicados pelo SWIFT (Sociedade para as Comunicações Interbancárias  e Financeiras Internacionais).

Também na Rússia o yuan encontrou um aliado, que as sanções económicas impostas a este país, pela U.E. e pelos USA, transformaram em parceiro estratégico. Em Outubro último foi assinado um swap entre os  bancos centrais de Pequim e Moscovo num montante de 25 mil milhões de USD, ligeiramente inferior ao swap com o Brasil (30 mil milhões). Este swap irá incrementar o comércio bilateral China/Rússia, que no ano passado foi de 89 mil milhões de USD.

Estamos perante tempos de alteração no Sistema Monetário Internacional, mas pouco mais do que isso, por enquanto. Aos deslumbrados convém avisar que o capitalismo, mesmo que mude de língua e de moeda, não deixa de ser o que è: capitalismo. Brechas no campo imperialista? Ilusão! Os USA podem perder terreno na geoeconomia, mas mantem o domínio geopolítico e geoestratégico. O resto são sombras chinesas para encantar as crianças...

(Continua)

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