quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Portugal: O CAMINHO ARENOSO DA CABALA



Pedro Ivo Carvalho – Jornal de Notícias, opinião

Mário Soares disse aquilo que boa parte do PS quer dizer, mas não tem coragem: José Sócrates está a ser vítima de um julgamento político. Desconhecem-se os fundamentos que levaram o fundador do PS a largar esta bomba deflagradora, para além da convicção pessoal, amizade com o visado e vontade férrea de blindar o partido ao escândalo, mas esta é uma linha de pensamento que ameaça fazer o seu caminho.

Falar de um julgamento político como fez Mário Soares é o mesmo que recuperar a malfadada tese da cabala, de que repetidamente Sócrates disse estar a ser vítima. É sugerir que a máquina judicial se mobilizou apenas com o intuito de se vingar do ex-governante. Que não há base documental, não há indícios, que não há suspeita de crime. Improvável, no mínimo.

Certamente que deter um ex-primeiro-ministro na manga de um aeroporto a uma sexta-feira à noite e andar a passear com ele por Lisboa durante dias à vista dos flashes e das câmaras televisivas não contribuiu em nada para a seriedade dos procedimentos judiciais - aliás, suspeito mesmo que tenha havido aqui um desejo retorcido de humilhar o homem perante o país, condená-lo na mesa do café e no sofá de casa.

Agora, não confundamos as coisas. Quem está a ser acusado é o ex-primeiro-ministro e não o sistema judicial. Podemos discutir os meios para atingir os fins, mas não devemos reescrever esta narrativa. Seja ou não ele culpado. Porque foi como tem de ser. A justiça funcionou na detenção de Sócrates. A democracia funcionou na eleição de Sócrates.

O desabafo emocionado de Mário Soares cria, porém, um problema bicudo ao PS. Irá o partido impor uma barreira entre o passado e o futuro? Será possível não falar de Sócrates no congresso deste fim de semana? Poderá António Costa visitar o camarada na prisão num gesto de amizade e, no momento seguinte, convencer os portugueses de que o "seu" PS não tem nada que ver com aquilo? E quanto tempo resistirá a Direita a enveredar por uma campanha negra que contamine o debate eleitoral do próximo ano?

Sim, porque agora está tudo calado. Mas não é por comedimento. O circo arde melhor em lume brando.

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