Não
me identifico com a representação degradante e 'caricatural' que Charlie Hebdo
faz do mundo islâmico com toda a carga racista e colonialista.
José
Antonio Gutiérrez D. - semanariovoz.com – em Carta Maior
Começo
esclarecendo, antes de mais nada, que considero uma atrocidade o ataque às
redações da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e que não acredito, em
qualquer circunstância, ser justificável transformar um jornalista, por mais
duvidosa que seja sua qualidade profissional, em um objetivo militar. O mesmo é
válido na França, assim como na Colômbia ou na Palestina. Tampouco me
identifico com qualquer fundamentalismo, nem cristão, nem judeu, nem muçulmano,
nem tampouco com o bobo-secularismo afrancesado, que considera a sagrada
“République” uma deusa.
Faço
esses esclarecimentos necessários porque, por mais que insistam os gurus da
alta política que na Europa vivemos em uma “democracia exemplar” com “grandes
liberdades”, sabemos que o Grande Irmão nos vigia e que qualquer discurso que
fuja à cartilha é castigado duramente. Mas não acredito que censurar o ataque
contra a Charlie Hebdo seja sinônimo de celebrar uma revista que é,
fundamentalmente, um monumento à intolerância, ao racismo e à arrogância
colonial.
Milhares
de pessoas, compreensivelmente afetadas por esse atentado, fizeram circular
mensagens em francês dizendo “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), como se esta
mensagem fosse o último grito em defesa da liberdade. Pois então, eu não sou
Charlie. Não me identifico com a representação degradante e “caricatural” faz
do mundo islâmico em plena época da chamada “guerra contra o terror”, com toda
a carga racista e colonialista que isso traz. Não posso ver com bons olhos essa
constante agressão simbólica que tem como contrapartida uma agressão física e
real, mediante os bombardeios e ocupações militares a países pertencentes a
esse horizonte cultural.
Tampouco
posso ver com bons olhos essas caricaturas e seus textos ofensivos quando os
árabes são um dos setores mais marginalizados, empobrecidos e explorados da
sociedade francesa, tendo recebido historicamente um trato brutal: não me
esqueço de que no metrô de Paris, no começo dos anos 60, a polícia massacrou a
pauladas 200 argelinos por demandar o fim da ocupação francesa em seu país,
algo que já havia deixado um saldo estimado de um milhão de “incivilizados”
árabes mortos.
Não
se trata de inocentes caricaturas feitas por livres pensadores, mas sim de
mensagens produzidas pelos meios de comunicação de massas (sim, ainda que se
coloque como alternativa, Charlie Hebdo pertence aos meios de massas)
carregadas de estereótipos e ódios, que reforçam um discurso que entende os
árabes como bárbaros aos quais é preciso conter, desaraigar, controlar,
reprimir, oprimir e exterminar.
Mensagens
cujo propósito implícito é justificar as invasões a países do Oriente Médio
assim como as múltiplas intervenções e bombardeios que, pelo o Ocidente, são
orquestradas em defesa da nova partilha imperial. O ator espanhol Willy Toledo
disse, em uma declaração polémica – por apenas evidenciar o óbvio –, que “O
Ocidente mata todos os dias. Sem fazer barulho”. E isso é o que Charlie e seu
humor negro ocultam sob a forma de sátira.
Não
me esqueço do número 1099 da Charlie Hebdo, na qual se banalizava o massacre de
mais de mil egípcios por uma brutal ditadura militar, que tem o consentimento
da França e dos EUA, mediante uma uma capa que diz algo como: “Matança no
Egito. O Corão é uma merda: não detém as balas”. A caricatura era a de um homem
muçulmano todo furado, enquanto se protegia com o Corão. Haverá quem ache isso engraçado.
Também, na sua época, os colonos ingleses na Terra do Fogo acreditavam que era
engraçado tirar fotografias junto com indígenas que eles haviam “caçado”, com
amplos sorrisos, espingarda na mão, e com o pé sobre o cadáver sangrento ainda
quente.
Em
vez de engraçada, essa caricatura me parece violenta e colonial, um abuso da
tão fictícia como manipulada liberdade de imprensa ocidental. O que aconteceria
se eu fizesse agora uma revista cuja capa dissesse o seguinte: “Matança em Paris. Charlie Hebdo
é uma merda: não detém as balas” e fizesse uma caricatura do falecido Jean
Cabut perfurado com uma cópia da revista em suas mãos? É claro que seria um
escândalo: a vida de um francês é sagrada. A de um egípcio (ou a de um
palestino, iraquiano, sírio etc.) é material “humorístico”. Por isso, não sou
Charlie, pois para mim a vida de cada um dos egípcios perfurados é tão sagrada
como a de qualquer desses caricaturistas hoje assassinados.
Já
sabemos o que vem de agora em diante: haverá discursos para defender a
liberdade de imprensa por parte dos mesmos países que em 1999 deram a bênção ao
bombardeio da OTAN, em Belgrado, da estação de TV Pública sérvia por chamá-la
de “o ministério de mentiras”; que se calaram quando israel bombardeou em
Beirute a estação de TV AL-Manar em 2006; que se calam diante dos assassinatos
de jornalistas críticos colombianos e palestinos. Logo, da bela retórica
pró-liberdade virá a ação liberticida: mais macartismo dito “antiterrorismo”,
mais intervenções coloniais, mais restrições a essas “garantias democráticas”
em vias de extinção, e, é claro, mais racismo.
A
Europa se consome em uma espiral de ódio xenófobo, de islamofobia, de
antissemitismo (os palestinos são semitas, de fato) e este ambiente se faz cada
vez mais irrespirável. Os muçulmanos já são os judeus do século XXI na Europa,
e os partidos neonazistas estão se fazendo novamente respeitáveis 80 anos
depois graças a este repugnante sentimento. Por tudo isso, em que pese a
repulsa que me causam os ataques de Paris, Je ne suis pas Charlie.
Tradução
de Daniella Cambauva - Créditos
da foto: reprodução
1 comentário:
Excelente post!Parabéns! Por tudo isso e por muito mais, eu também NÃO sou Charlie!
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