sábado, 14 de fevereiro de 2015

A GRÉCIA E A NOVA CULTURA POLÍTICA



Rui Peralta, Luanda

I - A Grécia, país que apesar de pertencer á União Europeia e de encontrar-se no núcleo duro, a  Eurolândia é uma economia periférica (Foi nesta posição - de periferia - que foi tratada pela Alemanha e pelas instituições europeias). Este posicionamento periférico tem razões Históricas:  A Grécia nunca completou nenhuma das formas de capitalismo, ou seja, a sua burguesia mercantil não foi forjada no mercantilismo, mas em modos de produção anteriores.

A primeira forma do modo de produção capitalista - o mercantilismo - afirmou-se no último decénio do século XV e prolongou-se até finais do século XVIII, antecedendo a revolução industrial. A forma mercantilista caracterizou-se pela hegemonia do capital mercantil dos centros dominantes do Atlântico, moldando as periferias da época (com especial incidência o Novo Mundo, o continente americano), submetendo-as á lógica de acumulação de capital.

A forma industrial assume a sua preponderância nos finais do século  XVIII e prolonga-se até á  II Guerra Mundial. Foi uma forma que definiu as centralidades e as periferias do capitalismo (países industrializados / países rurais). As periferias, nesta fase, participavam na Divisão Internacional do Trabalho através da agricultura e da produção mineira. Mas o capitalismo industrial continha uma segunda característica: a centralização dos sistemas industriais no Estado-Nação (o Estado burguês). A burguesia industrial grega, quase inexistente não confinou qualquer esboço de revolução industrial.

O país passou por períodos de grande instabilidade na ordem pós II Guerra Mundial, sendo a actual democracia ateniense um produto tardio dessa fase (segunda metade da década de 70).  No período pós II Guerra Mundial a terceira forma de capitalismo assume o controlo da economia-mundo. Essa forma, que termina na década de 90, caracteriza-se pela industrialização das periferias asiáticas (excepto o Japão, que inseriu-se na segunda forma de capitalismo e que não era uma economia periférica mas, sim, central) e sul-americanas. Este é um período onde são desmantelados os sistemas produtivos nacionais centralizados que, desde aí, serão inseridos num sistema mundial integrado.

A democracia conduziu a Grécia á inserção no projecto europeu, mas como nenhuma das formas anteriores de capitalismo fora aprofundada e esgotada, a burguesia nacional grega desenvolvia relações de carácter oligárquico. A democracia política representou a sobrevivência desta oligarquia e permitiu-lhe o folego necessário que impediu a democracia económica, ou pelo menos uma redistribuição mais racional do rendimento. A oligarquia adaptou-se aos ventos europeus e - reforçada - conduziu a Grécia para a tragédia da corrupção. Os governos do PASOK nunca colocaram em causa os privilégios oligárquicos e foram atirados para o deslumbramento ilusório, corrompidos pelos negócios da oligarquia. Daqui á bancarrota foi um passo...

A recente vitória eleitoral do Syriza (Coligação da Esquerda Radical) reconduziu o povo grego á esperança. Esta vitória foi produto de duas circunstâncias externas: a posição alemã (que relembrou velhos fantasmas) e o golpe de misericórdia que o Banco Central Europeu (BCE) desferiu no governo da Nova Democracia (direita), ao excluir o país do novo mecanismo de compra da divida por emissão monetária, a não ser que a Grécia se submetesse a um novo programa de "ajuda". Alemanha e BCE aceleraram o processo de erosão provocado pela austeridade, o que levou á implosão do sistema político grego.

II - O Syriza tem origem no Synaspismos (Coligação Esquerda e Progresso), uma aliança entre os dois partidos comunistas (KKE, o partido "do exterior", assim chamado porque foi pró-URSS e pelo grande numero dos seus militantes que exilaram-se na URSS e o partido "do interior", uma dissidência do KKE ocorrida durante a Primavera de Praga e que na década de 70 e 80 assumiu posições eurocomunistas). O KKE - "exterior" - afastou-se da coligação e o Synaspismos passou a ser liderado pelos eurocomunistas, coligados a outros partidos de esquerda. Dos 13% de votos obtidos em 1989 e 10% em 1990 do Synaspismos (resultados obtidos com a presença do KKE na coligação), o Syriza inicia-se no plano eleitoral com cerca de 3% dos votos. Em 2007 obtém 5% e em 2009 elege o seu primeiro deputado, com 6%.

A erosão da economia grega e do sistema político, o agravamento das condições de vida, o aumento da intensidade dos conflitos sociais, a desagregação institucional e os falhanços sucessivos dos governos representativos dos interesses oligárquicos e da Troika, transformaram o Syriza numa força politica alternativa. A debanda a que se assistiu nas fileiras do PASOK (Partido Socialista Pan-Helénico) levou o eleitorado socialista a apoiar o Syriza. A capitulação da direita grega (Nova Democracia) face á troika e as impopulares medidas de austeridade (que incidia particularmente sobre as camadas mais desfavorecidas da população) fez o resto...A vitória eleitoral do Syriza era o resultado previsível.

III - A única certeza grega é a  incerteza. A Troika asfixia e pressiona a opção democrática do povo grego. Tentou atemorizar a decisão soberana durante o período eleitoral e continua a fazê-lo - apesar dos sorrisos negociáveis - após a decisão popular.

A vitória eleitoral do Syriza e as suas propostas obrigam a uma nova abordagem - por parte da Europa - da crise grega e do contexto da crise da U.E., concluindo que a crise grega é, afinal, a crise da Europa. Essa abordagem obriga a repensar o relacionamento entre centro e periferia no seio da U.E. (e em particular na Eurolândia) e terá, obviamente, repercussões nos relacionamentos centro / periferias na economia-mundo.

As características das "periferias centrais" europeias manifestam a tensão entre os factores avançados das suas economias e as cicatrizes de atraso das suas sociedades. Estas economias não podem ser excluídas do euro e marginalizadas na U.E. Esta representa a possibilidade de desenvolvimento dessas áreas "periféricas centrais" da Europa e o Euro é a unidade monetária que melhor representa a sustentabilidade do seu crescimento.

O plano grego deverá ser atentamente analisado pelo conjunto dessas áreas periféricas. É um plano que assenta em quatro pilares: a divida, as reformas, o investimento e a gestão da crise.

Sobre a divida, a proposta do governo grego assenta no pressuposto da Europa como parceira do desenvolvimento. Nesse sentido propõe uma formula que estabelece a correlação entre o reembolso da divida e a evolução do PIB nominal.

Quanto às reformas serão efectuadas em dois sentidos: eliminação da cleptocracia (responsável pela ruina do país); e politica social que preserve postos de trabalho, condições de trabalho e mantenha as empresas publicas em actividade.

O problema do investimento obriga a Grécia a um plano ambicioso que envolve a Europa, através do Banco Europeu de Investimento (BEI). Mas para que o BEI tenha uma função activa nas políticas europeias de investimento é necessário que se liberte dos condicionalismos da ortodoxia financeira e dos tecno-burocratas europeus e não caia na armadilha neokeynesiana (que seria uma forma de não se sair do mesmo sitio, uma vez que foram essas politicas que conduziram á situação actual da Europa).

Quanto ao quarto pilar, a gestão da crise, ele apenas é possível através da sinergia solidária europeia. Um exemplo possível seria o Euro-sistema, a "mesa redonda" dos bancos centrais da Eurolândia, aplicar no combate à pobreza os excedentes gerados.

Este pacote de propostas do governo grego conta com a oposição de grande parte dos seus parceiros da U.E. mas é uma excelente base de discussão que obriga a uma dura negociação. A Grécia não está a pedir nada e compromete-se a pagar, em Agosto, seis mil milhões de euros, se os tiver. Caso contrário renegociará o prazo e pagará mais tarde, com juros acrescidos. O programa grego não afecta os contribuintes alemães, nem quaisquer outros. Pelo contrário, o programa do governo grego é produtivo, gerador de riquezas e de benefícios diversos para toda a Europa.

Talvez isso não agrade aos representantes dos contribuintes alemães e  assim sendo talvez seja altura dos contribuintes alemães mudarem de representantes...

IV - O verdadeiro défice grego é, como disse o actual ministro das finanças Yannis Varoufakis, um "défice de dignidade". Esse é o fulcro da questão. A Grécia, periferia do centro, Olimpo das oligarquias que encrustavam o aparelho económico, foi tratada como nação indolente pelos seus parceiros da Eurolândia e pelos súbditos da Germânia. A "cura" aplicada pela troika foi um "exorcismo" destinado a eliminar o "demónio pagão".

A sobranceria alemã e a hipocrisia bajuladora dos que devem obediência a Merkel (Passos Coelho e outras luminárias fundidas do cenário da crise Europeia) são o retrato fiel da actual encruzilhada de crises em que se encontra a construção europeia. As negociações entre os credores internacionais e os devedores gregos tomam novas formas e poderão resultar em novos compromissos. Esta não é um processo linear e alguns objectivos poderão ser alterados, mas um facto comportamental salta á vista de todos os contribuintes europeus: a maleabilidade grega e a inflexibilidade germânica.

No fundo o que importa é que a Grécia mexe, após anos de submissão á brutalidade das políticas de austeridade. Os gregos respiram...e podem, agora, ajustar contas

Bibliografia
Amin, S. Os desafios da mundialização Ed.Dinossauro, Lisboa, 2000
Vanoufakis, Y. Le Minotaure planétaire - l'ogre americain, la desunion europeenne et le chaos mondial Ed. Enquetes & Perspectives, Paris, 2014
Expresso, 31 de Janeiro de 2015
La Tribune 20 Janvier, 2015
Financial Times, Archives
http://www.esquerda.net

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