terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A PALESTINA GLOBAL



Rui Peralta, Luanda

I - Sob forte contestação dos USA e de Israel, a Autoridade Palestiniana (AP), submeteu a sua admissão ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e assinou diversos tratados internacionais. A AP procura, desta forma, levar a julgamento os responsáveis israelitas (políticos e militares) sob a acusação de crimes de guerra nos Territórios Ocupados. Em retaliação, Israel, suspendeu a transferência de fundos para o pagamento de salários da função pública palestiniana. A decisão da AP foi após os USA e Israel terem travado uma moção do Conselho de Segurança da ONU, que exigia o fim da ocupação e o estabelecimento do Estado Palestiniano em 2017.

Riad Mansour o chefe da delegação palestiniana na ONU, afirmou que "esta é uma opção pacífica e civilizada. Os que cumprem a lei não têm medo (...) Mais de 500 crianças foram vitimas da ocupação israelita no passado Verão e mais de 3 mil foram feridas e mortas, além de  largos milhares de civis mortos e feridos". O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu assegurou que "Israel não permitirá que soldados e oficiais do IDF (Forças de Defesa de Israel) sejam condenados pelo TPI", na mesma altura em que um porta-voz do Departamento de Estado, em Washington D.C. considerava a decisão palestiniana como "inteiramente contra-produtiva e causadora de graves danos nas relações com Israel", o que originou uma resposta por parte de Wasiel Abu Youssef, responsável da OLP em Ramallah que assegurou que nada afetará "a determinação da AP e do Povo Palestiniano em busca da liberdade e da independência".

II - Dos 15 membros do Conselho apenas dois votaram contra a resolução que exigia o fim dos territórios ocupados (USA - que tem direito a veto - e Austrália), mas a abstenção da Nigéria (que mudou de posição, depois do presidente Goodluck Jonathan ter recebido chamadas telefónicas do primeiro-ministro israelita, do Secretário de Estado Kerry e do presidente Obama) foi decisiva para o chumbo da proposta de resolução apresentada pela AP. Mas esta proposta foi, também contestada por diversos sectores palestinianos, que acusam a AP de fazer demasiadas cedências a troco de nada e de fragilizar a segurança palestina. Na proposta da AP estava implícita uma terceira força militar na região (NATO?) que assumiria algumas funções que são agora desempenhadas pelas forças palestinianas.

O "chumbo" desta proposta pelo Conselho de Segurança acabou por ter um efeito positivo entre os palestinianos (internamente a proposta dividiu a resistência) e permitiu o apoio da grande maioria das forças palestinianas à decisão da AP em aderir ao TPI.  Mas - e voltando á proposta de resolução - se a AP estava a ceder em matéria de segurança interna palestiniana - ao ponto de propor que uma terceira força efectuasse algumas dessas funções e havendo campo aberto para que esse papel fosse entregue á NATO -  porquê a intransigente posição norte-americana, de repúdio á resolução, ao extremo de pressionar a Nigéria? A resposta a esta questão encontra-se, obscurecida nas entrelinhas, nas palavras da embaixadora dos USA na ONU, Samantha Power, quando explicava a objecção norte-americana: "Votamos contra não porque somos indiferentes aos esforços diários de implementação dos acordos estabelecidos entre Palestinianos e Israelitas, mas porque sabemos que esses acordos só subsistirão quando ambas as partes alcançarem as bases de entendimento através de negociações directas, sem intermediários".

Perante a surpresa de todos, Samantha Power atirou os palestinianos para a toca do lobo, como se o diálogo bíblico entre o cordeiro e o lobo, nos jardins do Éden, fosse a única solução para o problema. Para os USA a posição é simples: não assinam nada que seja apresentado pelos palestinianos, mesmo que isso represente um enfraquecimento da Palestina, ou seja, mesmo que a Palestina opte por desaparecer do mapa... Não! A política das administrações norte-americanas obedece a outra lógica: o cordeiro é o alimento do lobo. A alcateia que encha a barriga que depois logo se vê o que resta do rebanho...

III - O significado da adesão da Palestina ao TPI é enorme e muito mais eficaz que qualquer resolução do Conselho de Segurança ou moção da Assembleia-geral. O TPI é, ainda, uma instituição fraca, forçada à inercia, permeável às influências, debaixo de intenso fogo cruzado e de falsas acusações, rodeada por discursos populistas, nacionalistas e inflamatórios, mas ganha confiança e adquire significado nas dinâmicas globais. A possibilidade dos responsáveis militares e políticos de Israel serem convocados ao TPI para prestarem declarações é real, por isso a pressão exercida por Israel e USA sobre a AP para impossibilitar a adesão palestiniana ao TPI.

A posição da AP é também relevante porque abre as portas a outros povos e nações, permitindo-lhes repor a verdade histórica ou fazer jus às suas queixas-crime. Seria uma oportunidade para os paquistaneses - vitimas dos drones - exigirem justiça, ou para os iraquianos vítimas da invasão norte-americana, ou para os sírios, vitimados pelos raides aéreos norte-americanos, camuflados de combate ao terrorismo. Os curdos terão com certeza muito que exigir da Turquia, mas não só, do Iraque, Irão e Síria, em todos estes países foram cometidas atrocidades contra os curdos. Ou os arménios vitimas de genocídio.

Todo esse espectro (vasto, que passa pela Indochina, pela guerra da Coreia e por África pelos crimes e agressões cometidos pelo neocolonialismo) é aberto pela adesão da Palestina, para além da vitória diplomática que representa para a causa palestiniana. USA e Israel são dois Estados que não aderiram ao TPI, mas que exercem uma enorme pressão sobre a instituição. A adesão palestiniana comporta um outro importante factor: alteração de forças no interior da instituição. E esta alteração deverá ser aproveitada pelos países africanos, no sentido de reforçarem a capacidade do TPI e assim terem uma componente essencial ao seu longo e sinuoso caminho e uma arma decisiva para a batalha do desenvolvimento, que a retirará da situação periférica na economia-mundo: a Justiça.

IV - Ahmed Assaf, porta-voz da Al-Fatah, quando do chumbo da proposta de resolução da AP, expressou a indignação da sua organização face ao Conselho de Segurança da ONU: " (...) o Conselho de Segurança falhou na protecção dos seus objectivos e dos seus princípios. Isto acontece porque existe uma grande potência mundial que protege a ocupação israelita e que pratica o mais elevado nível de terrorismo". Esta acusação é um facto.

A política norte-americana condiciona o funcionamento do Conselho de Segurança (como a do TPI e de outra qualquer instituição internacional). E utiliza os mais diversos meios para o fazer. Vejamos o que se passou no Conselho de Segurança sobre esta questão: Quem levou a proposta da AP a votação foi a Jordânia. O lógico seria a proposta ir a votação em Janeiro, quando a Venezuela e a Malásia (dois convictos apoiantes da causa palestiniana) substituíram a Argentina e a Coreia do Sul (ambos os Estados abstiveram-se), mas a Jordânia optou pelo pior timing. Sabendo os fortes laços entre Washington e a monarquia hachemita jordana, esta precipitação foi intencional, para que a proposta não entrasse em Janeiro. Mesmo assim USA e Israel tiveram de subornar a Nigéria.

O suborno efectuado á Nigéria está directamente ligado á intensidade com que o fascismo islâmico alastra no território nigeriano, Camarões e Chade. Israel é um dos principais fornecedores de armamento e equipamento militar e de segurança, para além de ser o principal formador de quadros das força armadas nigerianas e das forças de segurança. Goodluck Jonathan foi, portanto, uma presa fácil para o predador-mor norte-americano e sua cria israelita.

Os USA têm um longo historial de pressão, suborno e chantagem na ONU. Em 1990, por exemplo, quando o Conselho de Segurança discutia a primeira guerra do Golfo, apenas dois países votaram contra a invasão ao Iraque: Cuba e Iémen. Estes votos contra, mais o "nim" francês e alemão, levaram a que a matéria fosse adiada. Os USA agiram de imediato e suspenderam a ajuda humanitária ao Iémen. Em Janeiro de 1991 o Iémen muda de posição e abstêm-se, permitindo que o Conselho de Segurança aprove a invasão. E a lista de Estados que cedem ao suborno e á chantagem é extensa. Assim como extensas são as dificuldades em que os povos destes países vivem. É uma longa balada, em tom menor, a submissão...

V - Num mundo onde a violência se instala nas relações entre Estados, nas relações centro/periferia, nas relações governantes/governados, Estado/cidadão, nas relações de classe, onde uma guerra suja é já prática corrente, consubstanciada pela permanência e eternização do desemprego (em algumas comunidades já considerado "modus vivendi"), pelo fosso abismal entre ricos e pobres; num mundo em que novas e sofisticadas práticas de domínio imperial comportam velhos hábitos coloniais, onde as elites tratam a "massa populacional" proletária e proletarizada de acordo com o calendário eleitoral, flutuando as massas entre o lixo  imundo e o lixo supérfluo; num mundo onde a Humanidade teima na Esperança de uma vida condigna, o papel das instituições internacionais assume uma relevante importância no âmbito das dinâmicas externas e também nas dinâmicas internas.

O complexo e controverso momento em que se encontra a economia-mundo representa uma viragem na correlação de forças. Mas esta viragem pode ser efectuada em dois sentidos opostos: pelo diálogo e consequente reforço das instituições democráticas ou pela violência. A opção depende do rumo dos acontecimentos presentes. Os povos do mundo, os pobres do mundo, sentem que é possível um mundo diferente, sem as amarras da pobreza e sem as algemas da submissão. Do centro á periferia da economia-mundo um frémito de revolta e uma ansia de liberdade acumula-se no sentir dos indivíduos e nas revindicações das multidões, nos anseios das pessoas e nas aspirações dos cidadãos. Ou o Estado de Direito é efetivado e as instituições são apropriadas pela soberania popular, ou a farsa em que as elites transformaram o Estado de Direito vai ter um final triste, na rua, onde a soberania do povo se assume quando não tem casa própria.

E como os ventos da História afirmam que não há "amanhãs que cantam", mas sim um presente que se conquista...

Bibliografia
Abunimah, A. The Battle for Justice in Palestine FreePress, 2014
Bennis, P. Understanding the Palestinian - Israeli conflict: a Primer IPS, Washington D.C. 2014
Bennis, P. Calling The Shots: How Washington dominates today's United Nation's IPS, Washington D.C. 2011
Institute for Policy Studies, Archives
The Electronic Intifada, Archives
The Guardian, Archives

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