segunda-feira, 26 de maio de 2025

Portugal | DIREITO À HABITAÇÃO - Portugueses regressam às barracas do tempo salazarista*

Cândida Almeida* | Jornal de Notícias, opinião

As memórias do Estado Novo reportam-nos a um país ditatorial, colonialista, empobrecido, inculto, meio analfabeto e isolado do Mundo, “orgulhosamente só”. As chamadas ilhas, pretensas casas de um só espaço, pequeno, sem quaisquer condições de habitabilidade, pululavam na cidade do Porto e sua periferia. Em Lisboa e arredores, multiplicavam-se as barracas, igualmente sem quaisquer condições de decência humana. Nelas viviam famílias inteiras, de parcos ou nenhuns recursos económicos. Em cumprimento do programa das Forças Armadas, decorrido um ano sobre o dia da libertação, em 25.4.1975, realizaram-se as primeiras eleições absolutamente isentas e democráticas. Tiveram por objetivo a eleição de deputados, encarregados de elaborar uma Constituição “que corresponde à aspiração do país”, consta do seu preâmbulo. Em 2.4.1976, aquela Assembleia Constituinte, reunida em sessão plenária, aprovou e decretou a CRP, que veio posteriormente a sofrer algumas alterações de mera adaptação às exigências democráticas e atualizantes da vida do país. Nesta Carta Fundamental contemplam-se, de forma expressa e abrangente, todos os direitos fundamentais dos cidadãos, imediatamente aplicáveis, e outros, que se entendeu, durante muitos anos serem meramente programáticos. Entre estes últimos emerge e releva o direito à habitação. Reza, ao vento que ninguém parece escutar, o seu art.°º 65.°ºque todos têm direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Este direito tem como suporte obrigatório o Estado, ao qual incumbe levar a cabo uma política de habitação; a construção de habitações económicas e sociais, em colaboração com as regiões autónomas e as autarquias locais; estimular a construção privada com subordinação ao interesse geral, coletivo, fomentar a criação de cooperativas de habitação e autoconstrução, entre outras medidas.  Relativamente ao arrendamento das casas, incumbe ao Estado adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de rendas compatível com o rendimento familiar. Não é o mercado que ordena, são o poder central e o poder local que têm a obrigação de regulamentar, controlar e fiscalizar a realidade deste sector. Ao que se assiste hoje é, em minha opinião, um rotundo fracasso no cumprimento interessado e diligente de um direito tão fundamental à vida e à dignidade humana. Estas obrigações do Estado já ultrapassaram, há muito, o período de tempo aceitável e suscetível de se considerar programático o direito dos cidadãos a uma vida digna, a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado. A realidade hoje contraria tais obrigações a cargo do Estado, deixando ao relento pessoas que trabalham, mas cujo ordenado não é suficiente para pagar rendas especulativas ou compras de casas inacessíveis. É tempo de cumprir o direito à habitação, sob pena de não se cumprir Abril.

* Ex-diretora do DCIAP

* Título com extensão de PG

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