Rui Peralta, Luanda
O
acto de pensar
Todos
temos a necessidade (e a liberdade) de filosofar, ou seja, de pensarmos com a
nossa cabeça e de puxarmos pelos nossos neurónios a resolução dos problemas que
nos afectam, conceptualizando-os e universalizando-os, o que não implica, de
maneira alguma, a rejeição e/ou a ignorância do outro. Por exemplo: a
Filosofia, tal como se manifestou no Mundo - geograficamente na Grécia, que é
na Europa - não pode ser rejeitada porque é um produto europeu, ou ignorada,
porque desconheço o que está para alem do alcance da minha vista, da minha
audição ou da minha voz. Porque - a exemplo da Filosofia - a Engenharia
mecânica (ou qualquer outra) teve o mesmo berço da Filosofia, ou a Neurocirurgia,
ou a Física Quântica, etc..
Não
que o conhecimento seja neutro (Ciência, Arte, Filosofia, Tecnologia, nada
disso é neutro, nem muito menos o Estado - seja de Direito ou por endireitar -
ou o conhecimento teológico. É por isso que existe a dialéctica e a Razão
Critica: para tomarmos consciência das contradições e debatermos -
desconstruindo - o dogma e o mito. Questões como: "é Deus uma
verdade absoluta?" ou o Estado é uma necessidade podem ser respondidas
afirmativamente ou negativamente, em função do contraditório, mas a
dialéctica da resposta sô foi conseguida devido á razão critica que
questionou).
Estudar
filosofia ou escrever um ensaio filosófico obriga a um confronto constante. A
consciência esboça-se no conflito e assume-se na tranquilidade das águas de um
lago ou num qualquer pôr-do-sol...é por isso que o "Pensador" - essa
primeira manifestação da filosofia africana - encontra-se numa posição
peculiar. A escultura não representa o "Pensador" virado sobre si
próprio, mas sim virado para o mundo. E não é uma questão de "liberdade
artística". O Pensador não é um produto da arte africana. É, sim, a
primeira obra de filosofia no continente africano. O veículo não foi a escrita
mas a escultura...mas não é a filosofia, também, oralmente transmitida? Para
transmitir o conceito o que interessa se utilizo a palavra dita, a palavra
escrita ou a imagem? Em Africa a Filosofia anda em todo o lado e expressa-se
pela palavra dita, escrita, pela imagem na tela, esculpida na madeira ou na
pedra, pela estampa no tecido ou pelo click da fotografia. É filosofia, logo,
pensai senhores...e o africano pensa...não sobre a razão de existir, mas sobre
as razões que o conduziram á sua existência.
A
conversão categorial
Nkrumah
criou o conceito "conversão categorial" para exprimir a necessidade
de mudança na realidade africana, de saltos qualitativos da sociedade africana,
de uma nova categorização do continente que permita responder às análises que
oferecem uma imagem de Africa que tem moldado as mentes africanas (maioritariamente,
ainda, forçadamente isentas da plenitude cidadã): a imagem de uma História
bloqueada e sem saída. Ora o conceito filosófico de Nkrumah é um instrumento
forjado para desbloquear os pretensos bloqueios que supostamente conduzem
o continente a um trilho sem saída, que termina num abismo abrupto.
A
"conversão categorial" coloca a Filosofia no contexto social e ao
estudar a sua História estuda as sociedades que geraram as suas diversas
e plurais interpretações e conceptualizações e os discursos que a Filosofia
representa no todo social e na luta de classes, ou seja nos grupos de
interesses que manifestam-se na sociedade e que interagem no conflito,
afastando o conceito putrefacto do academismo apolítico e do discurso
a-filosófico tecnocrático. É através da exposição histórica que o estudante
africano apodera-se, apropria-se do conhecimento ocidental e aprende a
contextualizar-se como sujeito africano. E ê através dessa apropriação que como
sujeito histórico que abandonou a posição de objecto unidimensional a que o
colonialismo o tentou reduzir que descobre a universalidade das suas raízes.
Nesse
exacto momento, tal como aconteceu noutros momentos da História da Filosofia,
de Tales de Mileto a Marx, Stirner e Nietzsche que a intervenção filosófica
penetra no cerne dos domínios privados, omnipotentes, omnipresentes e
omniscientes da teologia. Deus e os deuses são, então, colocados em questão, ou
pelo menos questionados quanto ao seu papel. É o conflito entre pensamento
filosófico e doutrina teológica.
Esta
ferramenta analítica da Filosofia africana permite quebrar um mito que foi
imposto pelas colonizações: a religiosidade africana. Teólogos cristãos e
islâmicos fizeram desta suposta religiosidade um instrumento que serviu
duplamente os seus objectivos. Primeiro permitiu-lhes eliminar, ou reduzir, a
influência pagã africana, o seu mundo de múltiplos espíritos e espectros, a sua
representação da natureza. Depois permitiu-lhes surgir como discurso ideológico
dominante. Efectivamente cristianismo (catolicismo ou protestantismo) e
islamismo são ideologias oficiais das respectivas colonizações. O cristianismo
foi a ideologia oficial do colonialismo e o discurso que serviu de cobertura ao
comércio de escravos levado a efeito pelos europeus, assim como após esse
período serviu de pretexto á instalação dos aparelhos administrativos
coloniais. Com o Islão o efeito foi o mesmo no que respeita ao tráfego de
escravos, á penetração das caravanas e á eliminação sistemática e sistémica que
o Islão através dos séculos efectuou no Norte de África.
Mas
- e aqui está a dinâmica da contradição - o cristianismo e o Islão foram também
armas da luta de libertação nacional dos povos africanos. Em muitos países
africanos o Islão assume-se como uma componente fundamental e de vanguarda na
emancipação africana.
Por
isso a necessidade do Estado africano ser laico. E este laicismo não representa
qualquer agressividade para com a religião, mas gera-se em função da sua
importância na sociedade. A consciência africana em formação não é
necessariamente ateísta, mas pode muito bem funcionar sem Deus ou com Ele, seja
Deus ou os deuses e os espíritos, imanações, causa ou produto. Fundamental é o
alargamento da luta e a construção do projecto africano.
A
Filosofia desempenha um papel essencial na elaboração da consciência africana e
na construção de instrumentos de mobilização para um longo processo de
emancipação que tem como objectivo a edificação da cidadania africana. A
superestrutura da sociedade africana actual é composta por três vertentes
culturais principais: a tradicional, a islâmica e a cristã. Na ausência de um
capitalismo nacional os trilhos do desenvolvimento - conquistada a
independência e estabelecida a soberania popular - têm de levar em conta esta
realidade. Os projectos de construção de infraestruturas nas áreas comunitárias
ou de estruturação dos mercados rurais, por exemplo, têm de levar em conta as
tradições comunalistas e igualitárias da sociedade africana tradicional que
sobreviveram á erosão colonial (esta sobrevivência deve-se a terem mantido
quase intactas as crenças e costumes, ou por terem adoptado o Islão ou o
cristianismo aos seus costumes e formas de relacionamento social). O objectivo
a não perder de vista é a construção de uma sociedade democrática avançada, tanto
do ponto de vista político como económico, social e cultural, o que só é
possível no seio de uma África unificada.
Através
da Filosofia a África independente, a partir das suas próprias interrogações,
elabora um sistema de conceitos que constituem os alicerces do seu futuro. Para
isso África necessita de filosofar...livremente.
Etnofilosofia:
uma arma do neocolonialismo
No
arsenal ideológico do neocolonialismo existe uma mistificação que assenta numa
pretensa filosofia africana que bastaria descrever e reabilitar para
desabrochar como uma orquídea. Tal doutrina foi inaugurada pelo padre Placide
Tempels, numa obra intitulada "La Philosophie bantoue", publicada em 1949 pela
Presence Africaine. Esta obra produziu imensos rebentos e não é estranha á vaga
dos socialismos africanos (e está na origem do afrocapitalismo). A
etnofilosofia, ao afirmar que na Africa pré-colonial existia uma metafisica
africana que seria culturalmente construída pelos bantos (do Congo no caso do
padre belga Tempels) assumia uma inversão da atitude colonial em relação às
culturas africanas. Ao invés da habitual negação estas culturas passaram a
exercer a função do Olimpo. E Tempels era o arauto desse universo composto por
uma hierarquia bem delineada, cujos elementos eram fornecidos pelas tradições
dos povos bantos. Tempels, educadamente, chamava a atenção para a "missão
civilizadora cristã europeia", atenção que nunca deixou de ser feita pelos
seus seguidores africanos (como o padre católico ruandês Albert Kagami ou o padre
católico congolês Lufuluabo). Um traço comum á etnofilosofia é a tentativa
sincrética (algo que aprenderam com o mestre de Senghor, o padre católico
francês e paleontólogo Teilhard Chardin. Estabelecida a hierarquia a
etnofilosofia tentou a experiencia sincrética dos jesuítas europeus na China do
século XVIII.
Em
breve pulularam diversas metafisicas bantos, cada uma com a sua localização
(geografia variável) mas sempre assente no princípio "um povo ou etnia,
uma metafisica", nada de pluralidades. A etnofilosofia decifra uma
eventual filosofia banto a partir dos elementos metafísicos tradicionais destes
povos (feitiço, espirito, identidade, espectro), ou seja parte do inquérito
etnológico ou antropológico e chegam à filosofia de Chardin, Tempels, Kagami e
outros. É como fornecermos saliva, pensando que estamos a participar num estudo
sobre glândulas salivares e o estudo, afinal, ser da Coca-Cola, sobre o efeito
da Diets na saliva.
A
mistificação dos etnofilósofos não é mais do que a superestrutura ideológica
dos regimes neocoloniais (Mobutu, com a "autenticidade" e Bokassa, o
"magnânimo imperador', por exemplo, mas também Senghor, com a sua
elaborada teoria da negritude, um criador de metafisicas e de sincretismos
religiosos e políticos, que apenas não se comportou como o sargento Mobutu ou
Bokassa, porque a sociedade senegalesa era portadora de um forte sentido de
responsabilidade politica e cívica, mesmo antes da independência. A forte
estrutura sindical do país foi portadora do estandarte da luta de libertação nacional
e as fortes organizações politicas existentes impediram Senghor de tornar-se
uma figura rocambolesca, como o imperador, o sargento e outros que pulularam
pelo continente, tantos quanto a mistificação etnofilosofica permitia. O mesmo
já não pode ser dito de Boigny, que rocambolescamente como
neocolonialista assumido, um francês entre os africanos, ficou na Historia).
Mas é necessário tomar atenção que este processo etnofilosófico não foi (e é,
sob outras variáveis) exclusivo dos povos africanos e que em Africa o regime do
apartheid era baseado numa etnofilosofia bóer.
As
crias da etnofilosofia (micronacionalismos, socialismos africanos
diversos - como aconteceu nas décadas de 60 e 70 - terceiras vias e o
actual afrocapitalismo) são produtos mal concebidos mas bem embalados e prontos
para o consumo imediato (interno e externo). Têm a característica de olhar com
os olhos dos outros e um frenesi de demonstrar ao mundo a nossa pressuposta
originalidade. Tentam fazer acreditar (e conseguem) no mito da uniformidade
africana e atiram às urtigas o debate interno entre os povos africanos e a
pluridimensionalidade cultural africana.
Aos
filósofos africanos cabe, pois, a tarefa de remover estes obstáculos às
interrogações colocadas pela África do presente. Não é papel do filósofo ser
historiador, antropólogo, sociólogo ou etnólogo, mas tem de conhecer,
obviamente, as mitologias e crenças dos povos africanos, contextualizá-las e
colocar-se no centro do debate, para responder filosoficamente,
conceptualmente, aos desafios colocados pelas mistificações neocoloniais e às
encruzilhadas do desenvolvimento. A filosofia africana é universal e
cosmopolita, por isso é Filosofia, logo os filósofos africanos não podem ficar
encerrados no passado e ao passado, numa posição de contemplação e adoração.
Cabe-lhe, assim, remover este obstáculo à libertação nacional, á democracia e
cidadania africana, á pluridimensional unidade africana. Até porque a
etnofilosofia não está confinada ao espaço banto, conforme o demonstra o
apartheid na Africa do Sul, ou o genocídio no Ruanda. Mas também não está
condicionada ao espaço africano, conforme demonstra o sionismo, ou o
neofascismo (a Ocidente e a Oriente, em particular no Medio-Oriente e na India,
onde a extrema-direita hindu ganhou as eleições), ou o genocídio da
etnofilosofia nazi.
A
etnofilosofia e o neocolonialismo cultural fazem-nos esquecer que no seculo
XVIII o filósofo africano Amo, nascido em Axim, actualmente uma cidade do
Ghana, ensinava na Europa, mais exactamente na Universidade de Winttenberg
(entrou como professor de Filosofia em 1730) e posteriormente na Universidade
de Halle. O exemplo de Amos não é único. Africa sempre deu o seu contributo á
Filosofia universal, nunca ficou reduzida ao conceito etnofilosófico e às suas
mistificações que reduzem tudo a um passado africano mítico, esquecendo o
posicionamento periférico do continente, sempre objecto e nunca sujeito.
A
restituição do passado africano não é para fazer um inventário de relíquias,
nem muito menos para justificar as independências, porque a luta de libertação
nacional não necessita de justificações. A restituição do passado deve ser
feita em função das questões do presente, numa cultura viva em construção
permanente. Qual é a cultura viva que não questiona? Quando a interrogação não
é formulada é porque a cultura morreu... E a propósito quero deixar uma
interrogação no ar (ou seja, uma inquietude nos espíritos): sendo o
afrocapitalismo a etnofilosofia dos tempos africanos actuais, uma etnofilosofia
que pode ser colocada, em grandes quantidades, á disposição dos cidadãos
consumidores - vulgo eleitores - na TV, rádio, jornais, discursos políticos,
mensagens de chefes de Estado, igrejas e mesquitas, uma etnofilosofia que já
não utiliza o pensamento filosófico mas as teses dos gurus da gestão, como vão
os etnofilósofos da actualidade (os etnomarkets do afrocapitalismo, que em
algumas embalagens para consumidores bantos anglófobos ê descrito como black capitalism)
inserir Africa na economia-mundo? Como sujeito (e nesse caso terão de abandonar
as suas crenças, superstições e credos e realizarem profundas reformas de cariz
socializantes, como a reforma agrária, por exemplo, para iniciarem a integração
dos destruturados pelo colonialismo - mercados nacionais) ou continuando a
falácia acumulativa das descapitalizadas burguesias nacionais e dos grotescos
empresários de partido (ou seja como objecto)? Afinal não será o
afrocapitalismo um alienado e mistificador etno-objecto?
(continua)
Nota PG: A parte II desta série de artigos de Rui Peralta será publicada ainda hoje no PG
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