domingo, 12 de abril de 2015

RESULTADO DAS ELEIÇÕES NA NIGÉRIA: DEMOCRACIAS ELEGEM DITADORES?



Danilo F. Fonseca, Cascavel – Opera Mundi, opinião

Para além de debate simplista sobre Boko Haram e corrupção, vitória do ex-ditador Buhari, autointitulado 'convertido à democracia', representa legitimação de nacionalismos africanos e pacto com modelo neoliberal

No dia 28 de março de 2015 a Nigéria passou por mais um processo eleitoral desde a sua democratização no final da década de 1990. Com quase 54% dos votos, o ex-general e ex-ditador Muhammadu Buhari venceu as eleições, desbancando o então presidente Goodluck Jonathan e o seu Partido Democrático Popular, o qual havia vencido todas as eleições presidenciais desde a abertura política de 1999.

A eleição de um ex-ditador, que se autoclassifica “convertido à democracia” pode parecer estranho aos olhos ocidentais, mas analistas internacionais rapidamente deram o diagnóstico do porquê de tal processo, apresentando concepções rasas e que não dão conta de explicar a multiplicidade da sociedade nigeriana e do próprio mundo africano e as particularidades dos, ainda jovens, Estados africanos.

Os diagnósticos hegemônicos da mídia internacional (e replicado pela mídia brasileira) acerca da eleição de Buhari foram simples e objetivos: Boko Haram e corrupção. Tais temáticas foram amplamente debatidas no decorrer das eleições nigerianas, o que levou analistas internacionais a apontarem a insegurança da população frente ao grupo extremista Boko Haram e a corrupção existente no Estado nigeriano como sendo os elementos centrais para o eleitor escolher um ex-ditador para a presidência, afinal de contas, ele representaria uma posição supostamente mais firme e intolerante frente à corrupção e ao grupo extremista.

Atreladas a tais percepções, também é comum estes diagnósticos da imprensa estarem acompanhadas de criticas a uma suposta ineficiência da democracia no continente africano, como se esta fosse menos madura e até mesmo menos democrática, tendo em vista que ditadores e militares são continuamente eleitos em muitos países, como é o caso de José Eduardo dos Santos em Angola, ou Robert Mugabe no Zimbábue. Neste sentido, a África teria uma suposta dificuldade de estabelecer uma alternância de poder, pois, até mesmo onde a reeleição é proibida ou limitada, ocorre um pleno domínio contínuo de um único partido, como é o caso do Congresso Nacional Africano na África do Sul, e como era o caso do próprio Partido Democrático Popular da Nigéria.

Todavia, o que devemos nos perguntar são os motivos de tal fenômeno. Ou ainda, qual é a percepção de democracia e Estado que foram historicamente construídas no continente africano?

Poderíamos até apontar que, em muitos casos, as eleições nos países africanos possuem uma dada continuidade devido a intervenções externas. Em alguns casos isso é evidente, como vimos ocorrer recentemente no Egito, em que, com apoio dos EUA e dos militares egípcios, a eleição da Irmandade Mulçumana foi cancelada, levando a novas eleições que conduziram o general Al Sisi ao poder em 2014 — logo após a marcante primavera árabe em 2010.

Por outro lado, seria simplista demais condicionar a experiência democrática dos povos africanos a apenas interesses estrangeiros. Precisamos entender o que é a democracia africana e a sua percepção de Estado a partir da sua própria construção histórica.

Colonização europeia

O que é muito marcante nesse processo é que a tardia (e sanguinária) colonização europeia no final do século XIX até aproximadamente a década de 1960, vai, contraditoriamente, preservar uma série de elementos culturais e tradicionais dos estados africanos pré-coloniais, fazendo com que a construção política de grande parte da África passe por uma fusão entre elementos políticos modernos e práticas costumeiras das sociedades domésticas, a qual podemos destacar o papel de um líder enquanto o grande articulador de um determinado grupo local.

É importante ressaltar que a preservação de alguns costumes e elementos tradicionais das sociedades domésticas africanas ocorreram para que a Europa conseguisse explorar ainda mais o povo africano durante a colonização, realizando o que o africanista francês Claude Meillassoux chamou de uma articulação de modos de produção. É evidente que a manutenção de parte dos costumes e das tradições africanas se deu também devido à própria resistência interna das sociedades tradicionais africanas.

Dentro desta percepção, o caso nigeriano se torna bastante significativo, dada as particularidades que o país possui, já que os poderes locais se articulam e se rebelam de múltiplas formas frente ao poder colonial britânico. A conquista da independência em 1960 leva o país a múltiplos conflitos internos com golpes militares e guerras civis, com diferentes formas e tentativas de se realizar um desenvolvimentismo.

Apesar de tais conflitos, tudo isto gesta, no final do século XX e início do século XXI, um país que possui uma economia fortalecida, muito devido à exploração do petróleo, se tornando o país mais rico do continente africano, ao mesmo tempo em que é um país com imensas desigualdades, produzindo grandes tensões sociais, entre os mais de 170 milhões de habitantes.

Por outro lado, a Nigéria também se constitui como um país com grande variedade cultural, possuindo mais de 400 grupos étnicos e centenas de línguas distintas. Mas por outro lado, sendo um país dividido principalmente entre cristãos e mulçumanos, sendo os primeiros habitantes do sul do país, e os segundos da região norte. Tal divisão religiosa leva também, em alguns momentos, a poucos grupos assumirem uma postura extremista — radicalismo este que já existia há alguns anos, mas que começa agora a ter maior destaque na imprensa internacional. Porém, não podemos de modo algum afirmar que as tensões e conflitos na Nigéria (e em outros países africanos) seriam decorrentes da diversidade étnica destes países, já que tais tensões se dão a partir de complexos processos históricos que possuem múltiplos fatores para a produção de conflitos, sendo que a diversidade étnica pode ser ou não um destes fatores.

Diferentes tipos de nacionalismo

Algumas das questões postas na construção de uma democracia para os países africanos, que também encontram tal diversidade cultural, linguística, religiosa e social, seriam: como construir uma representatividade? Como encontrar um representante?

Muito das respostas a estas perguntas estão na tentativa de se construir uma identidade nacional dos povos africanos no decorrer do processo de descolonização e também durante o período independente. Frente à imensa pluralidade de muitos países africanos, o modo encontrado para se conviver com tais diferenças étnicas, segundo os nacionalistas africanos, seria a partir da construção de uma identidade que estivesse acima das identidades étnicas, produzindo assim, diferentes tipos de nacionalismo. A partir de tal processo, os principais dirigentes de partidos ou organizações nacionalistas acabam sendo entendidos como os principais representantes destas novas nações.

Sendo a figura de um líder algo central na construção dos Estados africanos, é comum, principalmente em momentos de crise, aos povos africanos optarem nas eleições por figuras que tragam uma representação de sua sociedade enquanto nação, e não apenas enquanto o seu grupo étnico, assim, ainda hoje, figuras nacionalistas são rememoradas como representantes legítimos.

No caso nigeriano, os principais líderes nacionalistas, das décadas de 1950 e 1960, já faleceram, e o presidente eleito Buhari se tornou um cadete apenas após a conquista da independência. Todavia, muitas vezes, a figura militar, ou a própria instituição do Exército em si, acaba se tornando aquilo que existe de mais nacional para a população, frente à diversidade e pluralidade da Nigéria, se tornando pertinente aos olhos dos eleitores o voto em um militar ou ex-militar.

No entanto, o que é curioso no caso nigeriano (e também em outras territorialidades africanas) é que alguns destes militares se dizem “convertidos à democracia”, como é o próprio caso de Buhari. Para compreendermos tal processo de conversão, precisamos entender também a própria guinada dos Estados africanos desenvolvimentistas das décadas de 1960, 1970 e 1980 para uma reestruturação aos moldes de Estados neoliberais.

Os diferentes nacionalismos africanos gestam, após a expulsão dos colonizadores, Estados desenvolvimentistas duros e autoritários (tanto com regimes capitalistas, quanto socialistas) que possuíam como principal objetivo o desenvolvimento estrutural e econômico dos países. Porém, tais Estados sofrem uma guinada neoliberal na década de 1990, o que faz com que os antigos políticos desenvolvimentistas também realizem uma conversão ao neoliberalismo e à democracia liberal representativa. Temos muitos casos que realizam tal guinada ao neoliberalismo, como é caso de alguns partidos governistas como o ANC da África do Sul, do MPLA em Angola, do NRM em Uganda, entre muitos outros.

Desta forma, a eleição de Muhammadu Buhari é muito simbólica, dado que ele representa uma legitimidade nacional proveniente dos nacionalismos africanos, ao mesmo tempo em que o novo presidente se “converteu” às novas tendências neoliberais que o continente africano cruza, compactuando, inclusive, com privatizações das riquezas dos povos africanos, no caso nigeriano, o petróleo, que cada vez mais passa a ser explorado pelas potências ocidentais.

* Danilo F. Fonseca é professor do colegiado de História da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), doutor em história com a tese “Etnicidade e Luta de Classes na África Contemporânea: África do Sul (1948 – 1994) e Ruanda (1959 – 1994)"

Na foto: Presidente eleito, Muhammadu Buhari, e seu vice, Yemi Osinbajo, recebem o diploma oficial após vitória em pleito na Nigéria /Efe

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