Danilo F. Fonseca, Cascavel – Opera Mundi, opinião
Para além de debate simplista sobre Boko Haram e corrupção, vitória do ex-ditador Buhari, autointitulado 'convertido à democracia', representa legitimação de nacionalismos africanos e pacto com modelo neoliberal
No
dia 28 de março de 2015 a Nigéria passou por mais um processo eleitoral desde a
sua democratização no final da década de 1990. Com quase 54% dos votos, o
ex-general e ex-ditador Muhammadu Buhari venceu as eleições, desbancando o então presidente
Goodluck Jonathan e o seu Partido Democrático Popular, o qual havia vencido
todas as eleições presidenciais desde a abertura política de 1999.
A
eleição de um ex-ditador, que se autoclassifica “convertido à democracia” pode
parecer estranho aos olhos ocidentais, mas analistas internacionais rapidamente
deram o diagnóstico do porquê de tal processo, apresentando concepções rasas e
que não dão conta de explicar a multiplicidade da sociedade nigeriana e do
próprio mundo africano e as particularidades dos, ainda jovens, Estados
africanos.
Os
diagnósticos hegemônicos da mídia internacional (e replicado pela mídia
brasileira) acerca da eleição de Buhari foram simples e objetivos: Boko Haram e
corrupção. Tais temáticas foram amplamente debatidas no decorrer das eleições
nigerianas, o que levou analistas internacionais a apontarem a insegurança da
população frente ao grupo extremista Boko Haram e a corrupção existente no
Estado nigeriano como sendo os elementos centrais para o eleitor escolher um
ex-ditador para a presidência, afinal de contas, ele representaria uma posição
supostamente mais firme e intolerante frente à corrupção e ao grupo extremista.
Atreladas
a tais percepções, também é comum estes diagnósticos da imprensa estarem
acompanhadas de criticas a uma suposta ineficiência da democracia no continente
africano, como se esta fosse menos madura e até mesmo menos democrática, tendo
em vista que ditadores e militares são continuamente eleitos em muitos países,
como é o caso de José Eduardo dos Santos em Angola, ou Robert Mugabe no
Zimbábue. Neste sentido, a África teria uma suposta dificuldade de estabelecer
uma alternância de poder, pois, até mesmo onde a reeleição é proibida ou limitada,
ocorre um pleno domínio contínuo de um único partido, como é o caso do
Congresso Nacional Africano na África do Sul, e como era o caso do próprio
Partido Democrático Popular da Nigéria.
Todavia,
o que devemos nos perguntar são os motivos de tal fenômeno. Ou ainda, qual é a
percepção de democracia e Estado que foram historicamente construídas no
continente africano?
Poderíamos
até apontar que, em muitos casos, as eleições nos países africanos possuem uma
dada continuidade devido a intervenções externas. Em alguns casos isso é
evidente, como vimos ocorrer recentemente no Egito, em que, com apoio dos EUA e
dos militares egípcios, a eleição da Irmandade Mulçumana foi cancelada, levando
a novas eleições que conduziram o general Al Sisi ao poder em 2014 — logo após
a marcante primavera árabe em 2010.
Por
outro lado, seria simplista demais condicionar a experiência democrática dos
povos africanos a apenas interesses estrangeiros. Precisamos entender o que é a
democracia africana e a sua percepção de Estado a partir da sua própria
construção histórica.
Colonização
europeia
O
que é muito marcante nesse processo é que a tardia (e sanguinária) colonização
europeia no final do século XIX até aproximadamente a década de 1960, vai,
contraditoriamente, preservar uma série de elementos culturais e tradicionais
dos estados africanos pré-coloniais, fazendo com que a construção política de
grande parte da África passe por uma fusão entre elementos políticos modernos e
práticas costumeiras das sociedades domésticas, a qual podemos destacar o papel
de um líder enquanto o grande articulador de um determinado grupo local.
É
importante ressaltar que a preservação de alguns costumes e elementos
tradicionais das sociedades domésticas africanas ocorreram para que a Europa
conseguisse explorar ainda mais o povo africano durante a colonização,
realizando o que o africanista francês Claude Meillassoux chamou de uma
articulação de modos de produção. É evidente que a manutenção de parte dos
costumes e das tradições africanas se deu também devido à própria resistência
interna das sociedades tradicionais africanas.
Dentro
desta percepção, o caso nigeriano se torna bastante significativo, dada as
particularidades que o país possui, já que os poderes locais se articulam e se rebelam
de múltiplas formas frente ao poder colonial britânico. A conquista da
independência em 1960 leva o país a múltiplos conflitos internos com golpes
militares e guerras civis, com diferentes formas e tentativas de se realizar um
desenvolvimentismo.
Apesar
de tais conflitos, tudo isto gesta, no final do século XX e início do século
XXI, um país que possui uma economia fortalecida, muito devido à exploração do
petróleo, se tornando o país mais rico do continente africano, ao mesmo tempo
em que é um país com imensas desigualdades, produzindo grandes tensões sociais,
entre os mais de 170 milhões de habitantes.
Por
outro lado, a Nigéria também se constitui como um país com grande variedade
cultural, possuindo mais de 400 grupos étnicos e centenas de línguas distintas.
Mas por outro lado, sendo um país dividido principalmente entre cristãos e
mulçumanos, sendo os primeiros habitantes do sul do país, e os segundos da
região norte. Tal divisão religiosa leva também, em alguns momentos, a poucos
grupos assumirem uma postura extremista — radicalismo este que já existia há
alguns anos, mas que começa agora a ter maior destaque na imprensa
internacional. Porém, não podemos de modo algum afirmar que as tensões e
conflitos na Nigéria (e em outros países africanos) seriam decorrentes da
diversidade étnica destes países, já que tais tensões se dão a partir de
complexos processos históricos que possuem múltiplos fatores para a produção de
conflitos, sendo que a diversidade étnica pode ser ou não um destes fatores.
Diferentes
tipos de nacionalismo
Algumas
das questões postas na construção de uma democracia para os países africanos,
que também encontram tal diversidade cultural, linguística, religiosa e social,
seriam: como construir uma representatividade? Como encontrar um representante?
Muito
das respostas a estas perguntas estão na tentativa de se construir uma
identidade nacional dos povos africanos no decorrer do processo de
descolonização e também durante o período independente. Frente à imensa
pluralidade de muitos países africanos, o modo encontrado para se conviver com
tais diferenças étnicas, segundo os nacionalistas africanos, seria a partir da
construção de uma identidade que estivesse acima das identidades étnicas,
produzindo assim, diferentes tipos de nacionalismo. A partir de tal processo,
os principais dirigentes de partidos ou organizações nacionalistas acabam sendo
entendidos como os principais representantes destas novas nações.
Sendo
a figura de um líder algo central na construção dos Estados africanos, é comum,
principalmente em momentos de crise, aos povos africanos optarem nas eleições
por figuras que tragam uma representação de sua sociedade enquanto nação, e não
apenas enquanto o seu grupo étnico, assim, ainda hoje, figuras nacionalistas
são rememoradas como representantes legítimos.
No
caso nigeriano, os principais líderes nacionalistas, das décadas de 1950 e
1960, já faleceram, e o presidente eleito Buhari se tornou um cadete apenas
após a conquista da independência. Todavia, muitas vezes, a figura militar, ou
a própria instituição do Exército em si, acaba se tornando aquilo que existe de
mais nacional para a população, frente à diversidade e pluralidade da Nigéria,
se tornando pertinente aos olhos dos eleitores o voto em um militar ou
ex-militar.
No
entanto, o que é curioso no caso nigeriano (e também em outras
territorialidades africanas) é que alguns destes militares se dizem
“convertidos à democracia”, como é o próprio caso de Buhari. Para
compreendermos tal processo de conversão, precisamos entender também a própria
guinada dos Estados africanos desenvolvimentistas das décadas de 1960, 1970 e
1980 para uma reestruturação aos moldes de Estados neoliberais.
Os
diferentes nacionalismos africanos gestam, após a expulsão dos colonizadores,
Estados desenvolvimentistas duros e autoritários (tanto com regimes
capitalistas, quanto socialistas) que possuíam como principal objetivo o
desenvolvimento estrutural e econômico dos países. Porém, tais Estados sofrem
uma guinada neoliberal na década de 1990, o que faz com que os antigos
políticos desenvolvimentistas também realizem uma conversão ao neoliberalismo e
à democracia liberal representativa. Temos muitos casos que realizam tal
guinada ao neoliberalismo, como é caso de alguns partidos governistas como o
ANC da África do Sul, do MPLA em Angola, do NRM em Uganda, entre muitos outros.
Desta
forma, a eleição de Muhammadu Buhari é muito simbólica, dado que ele representa
uma legitimidade nacional proveniente dos nacionalismos africanos, ao mesmo
tempo em que o novo presidente se “converteu” às novas tendências neoliberais
que o continente africano cruza, compactuando, inclusive, com privatizações das
riquezas dos povos africanos, no caso nigeriano, o petróleo, que cada vez mais
passa a ser explorado pelas potências ocidentais.
*
Danilo F. Fonseca é professor do colegiado de História da Unioeste
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná), doutor em história com a tese
“Etnicidade e Luta de Classes na África Contemporânea: África do Sul (1948 –
1994) e Ruanda (1959 – 1994)"
Na
foto: Presidente eleito, Muhammadu Buhari, e seu vice, Yemi Osinbajo, recebem o
diploma oficial após vitória em pleito na Nigéria /Efe
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